segunda-feira, 29 de setembro de 2014

=> Fé mágica ou a mágica da fé?






"Dificilmente haverá alguma palavra na linguagem religiosa – seja ela erudita ou popular - que tenha sido mais incompreendida, distorcida e mal definida, que a palavra . Ela é um desses termos que primeiro precisam ser curados, antes de poderem curar pessoas. Hoje a palavra causa mais desorientação do que cura."
Paul Tillich em Dinâmica da Fé; 1974 - Ed.Sinodal

Às vezes tenho a impressão nítida de que determinadas afirmações bíblicas, bem como suas circunstâncias históricas e ambiência, são total ou parcialmente desprezadas quando determinados temas são abordados em nossas igrejas. Essas circunstâncias auxiliariam na contextualização de tais afirmações, o que orientaria nossas conclusões e observações sobre aquilo que a Palavra traz para a humanidade nos dias de hoje.

Desprezar ambiência e contexto,portanto, nos abandona em um caminho perigoso de entendimento tendencioso, que atende apenas às conveniências daqueles que não só buscam lucrar com a religiosidade alheia - mercadejam com a palavra como diz Paulo em 2 Coríntios 2:17, mas também distorcem seu conteúdo santo, atendendo a seus próprios interesses, sejam eles de convencimento ou manipulação dos que buscam a Deus na singeleza de seus corações.

Utilizando a retórica de Vinícius de Moraes, os oradores de plantão que me perdoem, mas hermenêutica é fundamental. É impossível admitir o uso do texto bíblico como sustentação dirigida e na maioria das vezes forçada, para tentar dar uma base mínima a conclusões equivocadas sobre qualquer assunto que diga respeito ao Reino de Deus. E é nessa triste realidade de usurpação do texto bíblico, que vimos acompanhando as lideranças criarem espetáculos circenses, dando-lhes o nome de "mover de Deus" e "manifestação da fé".

Ora, tais lideranças estão transformando a fé em atos mágicos, dando-lhes contornos de fatos resultantes de declarações, afirmações com palavras calculadamente ditas, e denotações precisamente manipuladas. Transformam a Bíblia numa espécie de  Livros das Magias dos Judeus e Cristãos. A fé na pratica e no conceito dessa gente, não passa de um forte e determinado otimismo, na vontade de obter essa ou aquela vitória. Nosso povo vem sendo orientado a agir com maniqueísmo e superficialidade, tornando a fé uma crença frívola e rasa em sua conceituação.


"Ora, a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem. Pois, pela fé, os antigos obtiveram bom testemunho. Pela fé, entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem."
Hebreus 11:1-3 - RA

A fé não comporta mecanismo de auto-alimentação por adestramento, nem se encaixa em um modelo de repetição, que aceite padronização de expressões que a identifique no cotidiano da vida. Ou seja, não existe uma mecânica da fé do tipo afirmo logo se faz. Nem mesmo existe um padrão para o seu exercício. Fé é uma crença incondicional única, uma convicção, que não depende de circunstâncias existenciais, ou do que podemos ou não declarar. Ela nem mesmo depende de uma ação própria que a possamos revelar ou fortalecer em nós mesmos. A fé nos move por confiança e esperança, ainda que as condições visíveis nos digam o contrário do que esperamos. Sem garantias, senão apenas no amor e fidelidade de Deus. A fé é um ato de abandono de si mesmo diante de Deus em confiança convicta e inegociável. Não existe varinha de condão para a fé, nem Deus se permite ser tentado ou, trocando em miúdos, Deus não se permite ser colocado contra a parede. Ele é soberano. Palavras de ordem e gritos de guerra, portanto, não movem nem jamais moveram a mão de Deus.

Infelizmente não há qualquer fundo de ingenuidade nesse tipo de fé fabricada por conveniências. O que esse emaranhado de falácias e declarações irresponsáveis imaginam criar, é uma espécie de comprometimento de Deus com aquilo que antecipam dizer d'Ele e por Ele, e a prometerem em seu nome. Como se por procuração Lhe assinassem promissórias pelas quais passa a ter responsabilidade de resgatá-las. Tentam colocar o Senhor de todas as coisas em uma saia justa, mediante aquilo que pretender conseguir ou demonstrar aos seus manipulados de estimação. Afinal, Deus é fiel... Ele que se vire para não ter seu nome manchado. É sórdido e nada ingênuo.

A mágica da fé está em esperar contra a esperança. Em nos manter olhando firmes para o Seu Autor e Consumador. Aquele que por sua vontade sustenta todas as coisas, e nos enche de convicção de nosso futuro ao seu lado, aconteça o que acontecer, pois estamos em marcha, como peregrinos em terra estranha. A mágica da fé, nos faz crer que nossa leve e momentânea tribulação, não nos levará a sucumbir, porque somos viajantes e nosso descanso não é aqui. A mágica da fé e não uma fé mágica, nos faz descansar confiadamente em Deus, crendo que sua providência e cuidado nos conduzirão a vida. Nem a ansiedade nem qualquer atalho, jamais operaram a vontade de Deus.

Que o Senhor que conhece todas as intenções do coração, nos sustente em fé e esperança no seu amor, para que a maturidade de nossa crença nos fortaleça diante dos imprevistos e dificuldades da vida, sem mágicas ou poções, mas com a magia das convicções. 

domingo, 28 de setembro de 2014

X Quero ser mais humano - Por Ricardo Gondim




É curioso como, com o passar dos anos e o aproximar da velhice, nossos valores mudam. Posições que ambicionávamos, conquistas que valorizávamos e pessoas que nos impressionavam, perdem seus encantos. Vamos fechando portas atrás de nós, para euforias juvenis e idealismos inconseqüentes. Já não invejamos o triunfo dos insolentes ou o sucesso dos ufanistas. Hoje, ainda sem ser velho, já consigo sentir indiferença para os sonhos mirabolantes dos messiânicos. Confesso que perdi, inclusive, a vontade de ter a última palavra sobre qualquer assunto e não me empolgo com debates que só dão uma falsa sensação de prestígio.

Esse processo começou, quando enfrentei uma crise, lá por volta dos meus quarenta anos. A própria consciência de que vivia na meia idade, me fez desistir de querer ser herói, conquistador, eleito especial ou semi-deus. E de lá para cá, caminho cada vez mais consciente, que muito dos meus esforços lendo, estudando, trabalhando, madrugando e virando noites, para “não perder tempo”, eram vaidade e correr atrás do vento. Olho para trás e percebo que não foi de minhas poucas conquistas ou dos reconhecimentos humanos, que obtive meus melhores contentamentos. Vieram do amor de minha família e de amigos verdadeiros; gente que não temia partilhar o mesmo jugo que eu.

Assim, fiz alguns ajustes. Redirecionei minha leitura bíblica. Mais do que saber os detalhes exegéticos ou técnicos, ansiei que a Palavra me levasse a uma relação mais íntima com Deus. Reli a Bíblia de capa a capa, procurando o coração paterno de Deus. Dialoguei com pessoas que tratam da Espiritualidade Clássica. Recompus minha vida devocional. Aprendi sobre oração contemplativa e redescobri a meditação bíblica. Devorei alguns clássicos como “A Imitação de Cristo” de Tomás de Kempis, “A Volta do Filho Pródigo” de Henry Nowen, “A Montanha dos Sete Patamares” de Thomas Merton e o “Schabat” de Abraham Joshua Heschel. Eles e outros se tornaram meus mentores nessa nova busca interior.

Talvez, a maior descoberta que faço, nesse tempo que antecede o outono de minha vida, é que minha maior vocação é tornar-me mais humano. Desejo aprender a ser generoso e sereno. Almejo rir, risos contagiantes; quero amar coisas simples e contemplar mais a natureza; saber me deliciar com arte; brincar com crianças, ler poemas e ouvir a melhor música. Preciso ser mais empático com o pobre, acolher o perdido e dar minha mão para o abandonado.

Nessa jornada espiritual, perdi o medo de me desnudar e mostrar vulnerabilidade. Outrora, eu temia a censura daqueles que poderiam se escandalizar com minha fragilidade. Tentei, muitas vezes, impressionar as pessoas com discursos valentes, quando, inseguro, pedia que Deus segurasse minha mão. Receava que algum psicólogo detectasse disfuncionalidades em mim e na minha família. Acreditava que, se alguém diagnosticasse meu envolvimento no evangelho como uma fuga, perderia toda credibilidade. Evitava contatos íntimos, para que as pessoas não notassem que eu não era tão “resolvido”, como demonstrava.

Na mitologia grega as sereias eram criaturas de extraordinária beleza e de uma sensualidade irresistível. Quando cantavam, atraíam os navegantes que não conseguiam pelejar contra seu poder de sedução. Obcecados por aquela melodia sobrenatural, os pilotos arremessavam seus navios contra as rochas da ilha, naufragavam, e as sereias devoravam os tripulantes. Os gregos relatam que apenas dois conseguiram vencer o encanto de inimigas tão terríveis.

Orfeu, o deus mitológico da música e da poesia, encontrou um recurso. Quando sua embarcação aproximou-se de onde estavam as sereias, ele salvou seus parceiros, tocando uma música ainda mais doce e envolvente do que aquela que vinha da ilha. A outra solução foi encontrada por Ulisses. O herói da Odisséia não possuía talentos artísticos. Sem dons, sabia que não vence-ria as sereias. Reconhecido de sua fraqueza e falibilidade, concebeu outro plano. No momento em que sua embarcação começasse a se aproximar da ilha sinistra, mandaria que todos os homens tapassem os ouvidos com cera e que o amarrassem ao mastro do navio.
Depois que encarou sua fraqueza e incapacidade de enfrentar as armadilhas das sereias, rumou para a ilha conforme o plano. Do mesmo modo, deu ordem aos tripulantes: mesmo que implorasse para que o soltassem, as cordas deveriam ser apertadas ainda mais. Quando chegou a hora, Ulisses foi seduzido pelas sereias como previra, mas seus marinheiros não o libertaram. Quase louco, pedindo para ser solto, passou incólume pelo perigo. O relato mitológico termina afirmando que as sereias, decepcionadas por haverem sido derrotadas por um simples mortal, afogaram-se no mar. O que salvou Ulisses não foi a percepção de sua superioridade, mas a consciência de sua fragilidade. Ele não tentou enganar a si mesmo. Eu também não quero me iludir com os meus dotes órficos. Dependerei que meus amigos me amarrem aos mastros para não ceder aos cantos sirênicos.


Assim, descanso. Sinto-me livre para afirmar que ainda estou em construção. Sou um projeto inacabado e não escamotearei minhas ambigüidades. Agora, quando me sentir cansado, terei liberdade de desabafar como Jesus: “Ó geração incrédula e perversa, até quando estarei com vocês? Até quando terei que suportá-los?”. (Mateus 17.17) Quando precisar lamentar, lamentarei, igual a ele, quando, triste e angustiado, disse: “A minha alma está cheia de tristeza até a morte”. (Mateus 26.37). Quando tiver vontade de rir, rirei e dançarei de alegria.

Hoje, já não me importo de parecer incoerente ou politicamente incorreto. Dizem que os pensamentos dos anciões tendem ao enrijecimento e que os velhos resistem mudar de opinião. Busco não me engessar, apegado às minhas velhas idéias e indiferente às novas. Quero seguir o exemplo de Jesus que, em nome da vida, não temeu contradizer as rígidas normas religiosas – Mateus 12.2-7; não respeitou os preconceitos sociais, quando conversou com prostitutas e acolheu gentios – Marcos 7.24-30; não teve receios de voltar atrás em sua palavra, para atender uma mulher siro-fenícia – Marcos 7.24-30. Permanecerei alerta para não me tornar um dogmático e faccioso; cego por minha obstinação.

Recuso encarnar o personagem de Álvaro de Campo (heterônimo de Fernando Pessoa) no poema “A Tabacaria”. A experiência do poeta foi acordar do próprio passado, como um pesadelo e perceber que perdeu contato com a sua própria alma. Viveu uma mentira da qual não pôde escapar. Perdido de si mesmo, não se encontrou mais.

“Vivi, estudei, amei, e até cri.
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu...
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi no espelho, já tinha envelhecido“.

Anseio por uma humanidade não fingida, que não tenta transformar a mensagem do evangelho em um espelho mágico, que fala o que desejo ouvir. Lerei a Bíblia também contra mim. Permitirei que, como espada, ela penetre no mais profundo de meu ser, discernindo, inclusive, as intenções nebulosas de meu coração.

Atenderei a admoestação do profeta Miquéias (6.8): “Ele mostrou a você, ó homem, o que é bom e o que o Senhor exige: pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humildemente com o seu Deus”.

Acredito que vem dele, minha teimosia de acreditar que não precisamos esperar morrer para começar a viver. E como passamos rapidamente, sugiro que comecemos já.

Soli Deo Gloria.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

=> Oração para orarmos




Um dia Jesus estava orando num certo lugar. Quando acabou de orar, um dos seus discípulos pediu:
– Senhor, nos ensine a orar como João ensinou os discípulos dele.
Lucas 11:1 - NTLH


Quando vocês orarem, não sejam como os hipócritas. Eles gostam de orar de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas para serem vistos pelos outros. Eu afirmo a vocês que isto é verdade: eles já receberam a sua recompensa. Mas você, quando orar, vá para o seu quarto, feche a porta e ore ao seu Pai, que não pode ser visto. E o seu Pai, que vê o que você faz em segredo, lhe dará a recompensa.
            Nas suas orações, não fiquem repetindo o que vocês já disseram, como fazem os pagãos. Eles pensam que Deus os ouvirá porque fazem orações compridas. Não sejam como eles, pois, antes de vocês pedirem, o Pai de vocês já sabe o que vocês precisam.
Mateus 6:5-8 - NTLH

Uma das características que tornam a fé judaico-cristã diferente de tantas outras, é a crença em um Deus pessoal. Crendo que Deus é uma pessoa, como revelado desde o livro de Gênesis, quando oramos não falamos com uma energia cósmica, com o universo, com um ser superior impessoal e distante, ou com um amiguinho imaginário inexistente. Falamos com um Deus presente. Um Deus sentido. Criador dos céus e da terra... Conversamos com um Pai.

Essa crença que se reveste de certeza única e intransferível a cada encontro com Deus, nos conduz por um acesso direto e sem qualquer intermediação, nos abrindo uma passagem que outrora fora protegida por aqueles que se imaginavam guardiães do sagrado, que insistiam em se fazer, por direito usurpado, detentores do poder de abrir e fechar uma porta pesada, repleta de regras, modelos e conformidades.

Em vez de um ato simples e democrático, porque livre, individual e universal, a oração, como outros tantos exercícios de fé, foi aos poucos transformada em um ato eivado de formalidades, que precisavam ser cumpridas à risca, e realizada com palavras e simbologias que, se ditas da maneira correta, na seqüência precisa, teria mais e melhor eficácia em seus resultados. A oração feita da forma correta, acreditavam, seria capaz de realizar o desejo do orador, uma vez que tocaria convincente o coração de Deus.

Foi com essa esperança que os discípulos pediram a Jesus; “ensina-nos a orar”. Eles imaginavam que Jesus, capaz até então de tantos e variadoss milagres, provavelmente tivesse uma forma perfeita e contundente de orar, de modo que seu desejo sempre se realizasse. Eles esperavam de Jesus um modelo de oração que lhes fosse como varinha mágica, um pulo do gato, eficiente para realizar suas intenções. E afinal, ensinar a orar era uma tarefa dos mestres rabinos.

Além disso, o conhecedor desse modelo nobre e raro de orar distinguia-se em meio a sociedade. Um orador proeminente tinha um destaque tão grande, que seu ato era público e acompanhado com interesse por populares. Imaginem a afluência de gente indo de um lado ao outro, atrás de ouvir a oração deste ou daquele renomado orador; um evento que se repete atualmente em algumas regiões.

Ao responder seus discípulos, penso que Jesus os decepciona com a simplicidade com que seqüencia as palavras e da ordenação às frases do que, acreditavam, poderia vir a ser um modelo. No entanto, e pra surpresa de muitos alí, senão de todos, não há nessa oração ensinada qualquer menção a feitos próprios senão aos próprios erros; "perdoa os nossos pecados". Orar em secreto, no quarto e às portas fechadas, era uma subversão da realidade religiosa daqueles dias, e em nada poderia ajudá-los a se destacarem na sociedade de então. Da mesma forma, quem suplica pelo pão de cada dia, não tem qualquer abastança, qualquer garantia em si mesmo de qual possa se orgulhar, mas antes flagra dependência total e submissão incondicional à providência divina. Esse modelo de orador fragilizado e contrito, provavelmente,  os decepcionou, pois em nada se parecia com a forma de oração que os mestres da época ensinavam aos seus discípulos.


O que Jesus deixa claro, portanto, é que não há modelo que se estabeleça acima de um coração quebrantado. O reconhecimento do Reino de Deus e de seu domínio sobre minha vida, entrega a esse Deus, antes de qualquer outra coisa, o direito de fazer e atender ao que bem lhe parecer. Não há forma ou modelo mais ou menos poderoso. Não há como manipulá-lo. Não há como colocar Deus contra a parede. Ele sonda os corações e percebe as intenções. Os que almejam destaque e menções honrosas por suas rezas, já receberam suas recompensas.

Assim, a oração precisa ser um ato legitimo de aproximação e relacionamento com Deus. Uma relação que mantida e desenvolvida, se traduzirá na mesma intimidade que levou Jesus a chamá-lo Paizinho, em Marcos 14:36. Numa relação íntima não cabe cerimônia ou formalidades, senão amor, transparência e devoção.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

=> O que esperam de nós?




A questão é: os religiosos devem ter coragem de lidar com um mundo real, que não conta com grandes intervenções. Esse mundo carece de amor, não de panacéias. Um ministro do evangelho não tem o direito de pregar que “em tese” todos serão curados para depois dar de ombros aos que não receberam a benção dizendo: “faltou fé”.
Ricardo Gondim em Pra Começo de Conversa; pág. 153

Toda vez que me deparo com determinados programas de televisão, em que pregadores oferecem milagres por atacado e toda sorte de vantagens pessoais, sempre em troca de alguma “obrigação” travestida de fé condicionada, confesso que sou tomado por uma confusão de sensações, que variam desde o espanto, passando pela indignação e a repulsa.

Há tempos vimos acompanhando com preocupação crescente o avanço do que costumo chamar de Evangelho da Auto-Ajuda. Com declarações positivas de conquistas de bem estar, prosperidade e milagres grandiosos, os pregadores desse evangelho hedonista envolvem suas assistências em histerias coletivas, que pretendem apenas criar o ambiente ideal para uma rasa e momentânea sensação de enlevo espiritual, que na verdade as escraviza na dependência de um estado emocional extremado e rotineiro.


Veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: Filho do homem, dize-lhe: Tu és terra que não está purificada e que não tem chuva no dia da indignação. Conspiração dos seus profetas há no meio dela; como um leão que ruge, que arrebata a presa, assim eles devoram as almas; tesouros e coisas preciosas tomam, multiplicam as suas viúvas no meio dela. Os seus sacerdotes transgridem a minha lei e profanam as minhas coisas santas; entre o santo e o profano, não fazem diferença, nem discernem o imundo do limpo e dos meus sábados escondem os olhos; e, assim, sou profanado no meio deles. Os seus príncipes no meio dela são como lobos que arrebatam a presa para derramarem o sangue, para destruírem as almas e ganharem lucro desonesto. Os seus profetas lhes encobrem isto com cal por visões falsas, predizendo mentiras e dizendo: Assim diz o Senhor Deus, sem que o Senhor tenha falado. Contra o povo da terra praticam extorsão, andam roubando, fazem violência ao aflito e ao necessitado e ao estrangeiro oprimem sem razão. Busquei entre eles um homem que tapasse o muro e se colocasse na brecha perante mim, a favor desta terra, para que eu não a destruísse; mas a ninguém achei.
Ezequiel 22:23-30 - RA
        
A crueldade nesses casos, porém, começa a partir do confronto da dura realidade cotidiana de cada um. O milagre não veio. A intervenção divina prometida pelo pregador não aconteceu. Diante da pergunta velada, emudecida pela vergonha da exposição, tais obreiros se apressam em se defender, dizendo sem o menor constrangimento que faltou fé. Esse maniqueísmo que estabelece a lógica do se eu faço isso logo tenho aquilo, acaba por gerar neuroses e culpas profundas; - eu não tenho fé suficiente.

Não tenho medo de afirmar que enquanto esses aproveitadores se ocupam em chamar a atenção para grandes e prodigiosos milagres, grande parte dessa gente gostaria e precisaria receber alento para suas duras realidades. Eles precisam de acolhimento, conforto, acompanhamento... Cuidado para suas almas. Em contrapartida, o que ouvem é um dê para receber sem fundo e sem fim. São ensinados e induzidos a terem esperanças materiais. A prosperidade lhes é apresentada como sinal de benção e aprovação de Deus para suas vidas. Logo, se alguém não prospera, não tem de Deus aprovação.

O que acontece com essa gente por fim, é que em vez de terem suas carências da alma mitigadas pelo compadecimento e cuidado de nós cristãos, têm suas vidas dragadas por promessas do que não precisam, e por ilusões que lhes fazem desejar o que sequer imaginavam.

Uma das analogias que mais gosto na Bíblia, é a que assemelha o cristão a um peregrino. Como alguém que sempre está a caminho de algum outro lugar, vivemos e devemos viver com o sentido de transitoriedade de nossas vidas, desapegados a qualquer carga ou bagagem que nos prenda ou dificulte a caminhada. Não é aqui a nossa terra. Não está aqui a nossa promessa. “ajuntai tesouros no céu...”. É para lá que marchamos!


E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações. Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos. Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade. Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos.
Atos 2:42-47 - RA


Todos os que creram pensavam e sentiam do mesmo modo. Ninguém dizia que as coisas que possuía eram somente suas, mas todos repartiam uns com os outros tudo o que tinham. Com grande poder os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e Deus derramava muitas bênçãos sobre todos. Não havia entre eles nenhum necessitado, pois todos os que tinham terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro e o entregavam aos apóstolos. E cada pessoa recebia uma parte, de acordo com a sua necessidade.
Atos 4:32-35 - RA

Os cristãos dos primeiros anos, esses cujas vidas se narram no livro de Atos dos Apóstolos, tinham bem esse sentido escatológico da vida após suas conversões. Eles não precisavam de nada seu, nada próprio, senão para uso comum conforme a necessidade de cada participante. E por que isso? Porque tinham certa e clara suas transitoriedades. E diferentemente do evangelho da auto-ajuda que busca o benefício próprio e a satisfação de seus anseios de posse e prosperidade, o evangelho de Jesus orienta a preocupação com o outro, e nos aponta para o altruísmo eficaz no cuidado com o próximo, “corpo, espírito, alma... coração”.

Onde está o milagre? Está exatamente no desprendimento de nossos mais inquietantes e mesquinhos sentimentos de posse e de consumo. De nos livrarmos do impulso hedonista de colocar nossa satisfação pessoal como fim último de nossas buscas e esforços. Está na transformação do Eu em Nós, no arrebatamento sincero e realizador de um espírito de compaixão. Será por isso que Jesus afirmou que poderíamos fazer milagres ainda maiores que os dele? 
Não será esse, afinal, o milagre que o mundo espera de nós?




sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Certezas e seguranças - A fé criada em gaiolas

Por Jânsen Leiros Jr.

Revisado e ampliado em 15/04/2024 

 

“Somos assim. Sonhamos o voo, mas tememos as alturas. Para voar é preciso amar o vazio. Porque o voo só acontece se houver o vazio. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Os homens querem voar, mas temem o vazio. Não podem viver sem certezas. Por isso trocam o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.

Os homens preferem as gaiolas ao voo. São eles mesmos que constroem as gaiolas onde passarão as suas vidas”

                      Rubem Alves em Religião e Repressão

Até hoje, em todos os grupos sociais que frequentei, não encontrei ninguém que dissesse preferir prisão à liberdade. Ser livre é preferência universal. É verdade. A liberdade, que já foi cantada em verso, prosa e samba enredo, sempre esteve entre os mais pretendidos e legítimos anseios do ser humano. Já foi musa de guerras, e também por ela legiões intermináveis de pessoas já se sacrificaram. A liberdade é um desejo natural de todo o indivíduo.

Há, porém, armadilhas que volta e meia armamos contra nós mesmos. Elas nos prendem em gaiolas construídas com as sutilezas do conforto, num ambiente de certezas e seguranças que acreditamos ter alcançado, a bem de nossa interminável busca por liberdade. Então o que era para ser um grito de liberdade, tornou-se o arfar por um cantinho seguro no fundo da gaiola. A incoerência é mesmo um traço latente em toda a humanidade. Ora, se o que cremos é o que vemos, como esperaremos?

Essas certezas e seguranças se manifestam no conjunto de verdades em que passamos a acreditar como absolutas e inegociáveis, sem que aceitemos qualquer possibilidade de argumentação em contrário. São molduras que enquadram nossos pensamentos, e que não nos permitem, sair de seus limites de forma alguma, sob pena de cometermos sacrilégios intelectuais, desvios filosóficos ou pecados mortais. É por isso que pensadores e filósofos, durante tanto tempo, foram demonizados pelo senso comum em igrejas e grupos religiosos os mais variados, dado o perigo que representavam. Afinal, pensar fora das gaiolas incentivaria seus pássaros a voarem ou ansiarem por liberdade.

Fazendo e pensando o que tradicionalmente fizeram e pensaram nossos antecessores, os riscos são sempre menores e os desconfortos são também reduzidos. Construímos com zelo e cuidado a rotina de nossas almas, com o sossego de nossas mediocridades previsíveis e seguras. Preferimos as gaiolas aos voos. E não falo hipoteticamente. Esbarro com isso todos os dias em todos os grupos, quer sejam religiosos, políticos, econômicos e sociais. Sim, todos caminham suas trilhas marcadas pelos viajantes da frente. Qualquer caminho pensado, e falo pensado e não tomado, é combatido, morto e enterrado ainda no nascedouro. Não foi mesmo sem motivos a guerra pela reforma.

Ora, segurança e certeza não rimam com fé, nem tampouco a expressam. Mas sim esperança e convicção. Todos os exemplos bíblicos de fé, apresentam indivíduos que saíram de suas confortáveis condições existenciais. De suas rotinas seguras e de suas certezas convenientemente arraigadas. Abriram mão de suas garantias. Todos se lançaram no vazio das incertezas, tendo apenas a convicção e a esperança de que as gaiolas não eram e nem poderiam ser seus destinos últimos. A única segurança e garantia que possuíam, era a esperança de crer contra a esperança. Lançavam-se ao improvável, tendo como garantia a fidelidade daquele que os impulsionava e que criam conduzi-los.

Antes que alguém me acuse de dizer que ter fé é uma crença vazia, explico. Ao dizer "vazio", expresso aquilo que não é visível, aquilo que não detenho, que não é tangível. O vazio do voo se sente e se percebe. Os olhos não comprovam mas o corpo que nele se lança o reconhece e sabe que está ali. A convicção o faz alçar o voo. Aliás, voo só pode ser feito no vazio. Não há como voar através de espaços ocupados por qualquer coisa que possa ser vista ou tocada. A fé não pode ser um espaço ocupado por qualquer coisa que, em lugar de esperança, antes nos seja uma garantia. Mas alguém ainda argumentaria; mas o Espírito não é o penhor, não é a garantia de nossa esperança. Certamente, mas alguém vê o Espírito? Ele então é o nosso vazio em que nada vemos, mas em quem somos plenos de convicção.

A vida cristã não pode ser um emaranhado de certezas e de seguranças concebidas para nos criarem uma sensação de confortável letargia. Estamos o tempo todo sendo sacudidos para fora dessas gaiolas. Enxotados. Para aprendermos a viver no vazio da fé, que se fundamenta inegociável e incondicionalmente, apenas e tão somente, naquilo que eu não vejo, mas que convictamente espero. E como espero!

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