domingo, 2 de outubro de 2016

Caffé com Teologia - Graça, liberdade extrema


=> Deus não desiste de você. Será?



"Não precisamos ir longe na análise da Bíblia para entendermos que a ideia de que Deus não pode desistir de nós é uma verdadeira falácia. Facilmente podemos entender que o Senhor pode, sim, abandonar quem lhe despreza.
Quando passamos a acreditar que Deus não desiste de nós, nossa consciência pode, paulatinamente, ser induzida a acreditar que não corremos o risco de perder a salvação.
Sendo assim, abre-se, diante de nós, um leque abrangente de possibilidades de transgressão dos mandamentos divinos. "


Por Jânsen Leiros Jr.

Me perdoem decepcionar vocês, amigos, mas esse texto é uma tremenda demonstração de legalismo, e de um conveniente pensamento pragmático, muito pouco reflexivo, e de uma assustadora miopia quanto ao amor de Deus e sua contextualização bíblica. Ele se utiliza de um texto ambientado na dispensação da lei, e supõe que a punição à rejeição a Deus, limita o seu amor, ou impõe finitude à sua misericórdia. Além disso, tenta introduzir legalismo em ambiente de graça citando um texto em 1 Coríntios[1]. Legalistas adoram uma lei e um rigor a que eles mesmos não dão conta de seguir; judaizantes. Estou farto de gente se prestando ao papel de guardião da verdade, como se a conhecesse incondicionalmente e a detivesse.
                       
O Novo Testamento está repleto de demonstrações de que Deus não desiste de ninguém. E é claro que Ele teria liberdade soberana para isso, mas não o faz. As parábolas da dracma perdida, da ovelha perdida e do filho pródigo, encerram plena e perfeitamente esse traço do amor infinito e incansável de Deus; amor que não se impõe, mas está sempre de braços abertos a receber todo e qualquer arrependido, seja lá o momento em que tal arrependimento acontecer, ou depois de quantos arrependimentos ocorrer. Até setenta vezes sete, lembram-se? Não há limites para o amor, perdão e reconciliação.

Aqui alguém poderá me interpelar, sacando como pretenso argumento incontestável, o fato de que muita gente se diz arrependido, mas que tal arrependimento nem é genuíno, e assim vivem se "arrependendo" da boca para fora, achando que podem brincar com Deus. É claro que isso acontece aos milhões. Mas tal atitude humana não invalida a imutabilidade do amor de Deus. Se alguém pensa enganar Deus com atuações teatrais, sinto muito, Ele não se relaciona com personagens. Mas por outro lado, tal comportamento humano não provocará a finitude do amor de Deus, e muito menos provocar o seu cansaço em esperar por quem quer que seja. E é claro que, se mesmo esse contumaz mentiroso, encenador de arrependimento arrepender-se genuinamente, Deus que sonda os corações e enxerga até onde não podemos enxergar, poderá e irá perdoá-lo. Seu amor não tem fim; não pode negar-se a si mesmo. Deus é amor.
                       
Na contramão do que o autor tenta passar como verdade insofismável, de que se Deus não desistisse de nós, abriria brecha para uma vida de pecado contumaz, Paulo, em sua carta aos Romanos, afirma que uma vez livres do pecado, fomos feitos servos da justiça. Servos aqui não é escravo no sentido de subjugado, mas de serviçal, no sentido de quem vive a serviço da justiça de Deus. Ora, em sua primeira carta, o chamado apóstolo do amor, João, afirma que os filhos de Deus não vivem pecando. E a razão disso é simples; não temos prazer nisso, porque pelo poder do Espirito Santo que habita em nós, passamos a viver realizando, preferível e prazerosamente a vontade de Deus, perseguindo a santidade, e buscando sempre agradar o coração de Deus. E mais; nós temos a mente de Cristo.
                        
Há, na verdade, um perigoso hábito legalista diluído nessas afirmações; a de que precisamos criar certos terrorismos em nossa pregação, de modo a provocar a sensação de que não se pode brincar com Deus. É claro que não se brinca com Deus. E não só isso, mas tenho a certeza de que Ele conhece tais brincalhões. Mas isso não nos habilita a distorcer os atributos de seu amor, em favor de um discurso que tenta dar uma mãozinha a Deus, em sua presumida tarefa de admoestar as pessoas quanto aos rigores de sua lei, ou "limites" de sua paciência. Alguém considera imperfeito ou mesmo insuficiente o trabalho realizado pelo Espírito de Deus no convencimento do pecado, da justiça e do juízo? Ou não dizia Paulo que nem por força e nem por violência, mas pelo Espírito de Deus. Convencimento algum será maior ou mais genuíno, se dermos, por nossa conta, uma pitada de medo e terror.
              
O amor de Deus não desiste de ninguém. "Aquele que vem a mim, de maneira nenhuma o lançarei fora". Novamente é preciso lembrar que Deus sonda os corações. Ele conhece a sinceridade de todos os nossos atos; não se deixaria enganar por quem quer que fosse.
    
- Ah! Mas e se alguém se utilizar do infinito amor de Deus, e achar então que pode pecar à vontade, que depois é só se arrepender que estará tudo certo, perguntaria alguém. Ora, se alguém acha que pode fazer isso, primeiro, nunca conheceu Deus, seu amor ou mesmo a sua graça. Pois quem, sinceramente constrangido pelo amor de Deus e salvo por sua graça, pensaria aproveitar-se da graça para sua própria recreação? Outra vez, os filhos de Deus não vivem pecando. Não têm prazer no pecado. E segundo, ainda que alguém se pretenda a isso, ainda assim o amor de Deus não se tornaria finito, apenas para impedir que seja usurpado por algum espertalhão. Nesse caso ele não terá perdão, não porque o amor de Deus tem limite, mas porque não se arrependeu genuinamente; mas a Deus pertence sondar e julgar tal coração, e então conceder ou não seu perdão.

O que mais me assusta nisso tudo, é a imaginação de que os imutáveis atributos de Deus podem ser manipulados em suas essências, amplitudes ou aplicações, conforme suposta necessidade de tornar mais contundente a pregação do evangelho, ou mais firme e segura a realidade de que sem fé é impossível agradar a Deus. Ora, ao fazermos isso não estamos alterando o conteúdo bíblico? Não estamos distorcendo a Palavra para atender nossas conveniências, por mais probas e bem-intencionadas pudessem parecer? Deus não muda o que é, para atender nossa necessidade de fazê-lo parecer com nossos impulsos humanos, ou para adequar-se a nossos pressupostos rigores muito mais adequados e firmes; há quem pense que Deus, na graça, ficou bonzinho demais com o pecador. - Ah! Se eu fosse Deus. Ou ainda. - Ah! Se Deus fosse como eu. A pregação do medo não opera o poder de Deus.

Por último, ainda se poderia perguntar: Mas não pode alguém achar que, já que temos a graça, podemos errar? Ora, para pensar isso é preciso achar que a graça compactua com o pecado. Pior. Quem assim entende, imagina que a lei é mais eficaz para colocar a humanidade na linha. E se alguém então pensa assim, faz-se igual aos judaizantes tão combatidos pelo apóstolo Paulo, e não entendeu até hoje o evangelho. Porque "ouviste o que foi dito... Eu porém vos digo". No conhecido Sermão da Montanha, Jesus desconstruiu a ideia da lei formal, que tinha ênfase na aparência, e implantou a ideia de que o essencial era muito mais importante, sendo tão mais condenador do que o aparente; a incompreensão de Nietzsche.

Portanto, mesmo que a graça seja ainda mais profunda e reveladora do coração humano, ela é a expressão do amor ilimitado de Deus, que acolherá e perdoará todo aquele que genuinamente se arrepender. E se alguém não se arrepender legitimamente, desse amor e dessa graça não se tornará participante. Simples assim. Aliás, simples como tudo no reino de Deus. Mas nós estamos sempre achando que podemos dar um toque pessoal e melhorar o que Deus já fez. Aliás, querer ser igual a Deus em possibilidades e julgamentos, sempre nos colocou em graves apuros.




[1] 1 Coríntios 10:12
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