terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A vida que debate a arte que debate a vida. Quem bate? Quem apanha?


“Não sei se arte imita a vida ou a vida imita a arte. Não concebo a arte sem vida e muito menos a vida sem arte. Onde há vida, inspira-se arte. A vida é uma grande obra de arte, na qual existem bons e inexperientes artistas.

Obras de arte são tentativas frustradas e contraditórias (vistas sob a ótica humana) de se querer engarrafar o tempo, engaiolar momentos vividos ou imaginados, de dor ou de amor.

É o homem querendo, pretensiosamente, ser senhor do seu tempo!”

                   Hermes Petrini - Assessor da Pastoral Universitário do Centro UNISAL – Americana
Fonte: http://www.am.unisal.br/publicacoes/artigos-18.asp

Desde a semana passada venho ouvindo com atenção, de diversos colegas, amigos e circunstantes, comentários sobre cenas, conteúdos e mensagens que a minissérie da Globo Felizes para Sempre? vem apresentando. Há os que se dizem horrorizados com a “pouca vergonha” de cenas tórridas e sensuais. Há outros escandalizados pela variedade de traições e de relações confusas, convenientes. E há ainda os extremamente empolgados com a sensualidade dos atores e atrizes (principalmente das atrizes) que contam a trama criada pelo autor.

Tem muita gente que diz ser “um absurdo passarem uma minissérie dessas na televisão”, considerando que determinadas cenas e enredos não são apropriados para serem assistidos por crianças, jovens ou “famílias de bem”. Um arroubo moralista de reação rasa, que mais demonstra medo da influência que pode sofrer, do que uma posição consistente de quem não se interessa por esse tipo de contexto como entretenimento. Sim, um disfarce mentiroso, porque pelo menos nos aparelhos lá de casa existe uma tecla de “liga/desliga”, que obedece inexoravelmente ao meu comando. De modo que, quando começa a transmissão daquilo que não me interessa ou que eu considero inapropriado para mim e para meus filhos, eu simplesmente desligo, ou ainda troco de canal, com outra tecla mágica que me permite trocar a programação sempre que eu desejo fazê-lo.

Mas eu não quero trocar de canal. Não aqui. Não agora. Não quero fechar os olhos para um assunto, esse sim muito mais sério, que precisa ser debatido socialmente; a permanente afirmação de que princípios essenciais para a vida, tanto individual quanto em grupo, não passam de utopias, quimeras ou tabus, sejam religiosos ou impostos por uma sociedade hipócrita, que na prática não resistem às possibilidades e circunstâncias que nos envolvem no cotidiano de nossas realidades.

Tramas como essa que o seriado está propondo, discutem conceitos importantes da vida, como fidelidade, honestidade e lealdade, apenas para não alongarmos muito a lista de princípios que são trazidos à discussão da sociedade, onde suas reais e possíveis aplicações são questionadas. E não digo que eles não possam ser questionados. Não só podem como devem, pois é exatamente no contexto da discussão, que se firmam posições, tanto favoráveis quanto contrárias, dando-nos a capacidade de enxergarmos de nós mesmos, quem somos, o que cremos ou o que queremos assimilar como conjunto de valores para a vida.

Minha preocupação, no entanto, se concentra na maneira como a discussão é apresentada. Ao que parece, numa avaliação superficial do enredo, todas as relações afetivas, todos os casais envolvidos na trama, de uma forma ou de outra não têm uma relação honesta, fiel ou leal com o seu cônjuge. Há algum absurdo nisso em termos de irrealidade, visto que nossa sociedade apresenta exatamente esse cenário como verdade plácida? Não. Mas como arte, que pretende questionar conceitos inerentes ao dia a dia social, um único contra-ponto deveria ser deixado, como exemplo contrário de toda a realidade que se projeta amarga sobre os personagens. Eu explico.

Quando ainda lecionava, alguns alunos me procuraram para que eu opinasse sobre um seminário que estavam planejando realizar, cujo tema seria A Verdade. Apresentaram-me então o plano de exposição e os palestrantes, cada um responsável por discorrer sobre uma determinada percepção sobre o que é, e como se aplica a verdade na vida do ser humano. E por fim me perguntaram: - Está faltando alguma coisa? Ao que respondi: - Sim, está faltando o mentiroso. Como vocês querem falar sobre a verdade, sem que o ponto de vista do mentiroso seja trabalhado? Se bem me lembro eles não conseguiram um palestrante que falasse em defesa da mentira.

Obviamente minha resposta a eles foi retórica, mas em termos práticos, o que eu queria ressaltar, é que nenhuma tese, discussão, debate ou obra de ficção que se pretenda falar sobre conceitos sociais, essenciais para a formação do indivíduo pode, por vício de dever, pluralizar as versões sobre uma mesma polaridade, sem que em contrapartida ofereça pelo menos uma única visão em pólo contrário.

Trocando em miúdos, o seriado pode e deve trazer a discussão sobre a felicidade efetiva ou fingida das relações amorosas, e as diferentes formas em se buscar essa felicidade, ou ainda afirmar que na grande maioria das relações, o que existe é apenas uma hipócrita manutenção de uma convenção que não resiste a circunstâncias envolventes. Mas haveria a necessidade de haver um único contra-ponto que fosse. Um único casal no contexto da obra, em que os conceitos e os princípios tivessem trazido felicidade efetiva. Assim, os telespectadores teriam um leque mais amplo e honesto das possibilidades reais de felicidade num casamento, sem considerar, no final, que toda e qualquer relação não passa de uma convenção conveniente, onde traição, promiscuidade e devassidão, se revezam como ingredientes necessários para uma questionável solidez, ou para a desconstrução total das relações afetivas.

Quem tem um pouco mais de trinta anos, deve lembrar que nas décadas de 70/80 fomos bombardeados pela afirmação constante de que a família era uma “instituição falida”. Vivíamos a época da lei do divórcio, da liberação sexual... Ninguém era de ninguém. Comemos essas afirmações. Dormimos sobre elas. Acreditamos mesmo que a família não passava de uma convenção social, que mais servia como uma condição imposta e repressora, e instauramos na sociedade a idéia de liberdade a qualquer custo, ainda que custasse o bem estar de nossos filhos, nossos cônjuges e de nossos futuros. Importava apenas nos permitirmos aos desejos imediatos e que se danassem os outros. Acho que não preciso comentar aqui no que deu.

Agora estamos passo a passo retornando a esse cenário em que determinados conceitos estão sendo bombardeados unilateralmente, sem que haja qualquer possibilidade de contradição ou defesa dos princípios éticos e comportamentais. E isso na exata contramão do politicamente correto e do eticamente aceitável, onde firmar posição a favor da manutenção de determinados conceitos essenciais para a vida em sociedade, passou a “incorreto” e a “inaceitável”. Quem pensa diferente é chamado de “estranho”, quem não se corrompe é considerado “otário”, e quem busca ser fiel e leal ao seu cônjuge, leva o rótulo de “hipócrita” ou ainda de “enrustido”. Basta, mas os exemplos poderiam se multiplicar...

Não sou contra a arte. Não sou contra o autor da minissérie, nem contra seu diretor. Muito menos sou contra seu elenco, que, aliás, extremamente competente. Mas defendo que determinadas abordagens precisam ser plurais, tanto no sentido das trajetórias, quanto o são em suas direções. Pois não se pode chamar de ideologicamente democráticas, abordagens que trilham caminhos que levem a um mesmo destino. Se é para discutir sobre a verdade, vamos incluir quem defenda a mentira. Tanto assim, versando sobre a mentira, é preciso dar voz à verdade. Pois é na confrontação honesta das antíteses que se aprimoram as teses.

Um forte abraço.

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