Por Jânsen Leiros Jr.
“Onde estou? O que significa dizer: o mundo? Qual é o sentido dessa palavra? Quem me colocou nesta fria e agora me deixou aqui feito bobo? Quem sou eu? Como eu vim parar neste tal de mundo? Por que eu não fui indagado a respeito disto? Por que eu não fui informado dos regulamentos e normas gerais de funcionamento, mas antes fui simplesmente lançado nas fileiras desta turba, como se tivesse sido comprado de um mercador de escravos? Como eu fui envolvido nesta grande aventura chamada de realidade? E por que deveria eu estar envolvido? Não seria isto uma questão de escolha? E uma vez que me sinto compelido a envolver-me, onde está o gerente? A quem devo apresentar minhas reclamações? E já que a vida é um debate, posso eu pedir que minhas observações sejam levadas em consideração? Se temos que aceitar a vida assim como é, não seria adequado descobrirmos como as coisas funcionam?”.
Obra A Repetição
Søren Kierkegaard
Como afirmamos anteriormente, muitos e competentes estudiosos se debruçaram sobre o Livro de Jó, empreendendo profundas e responsáveis abordagens sobre seu conteúdo. E ainda que haja mais convergências nestes estudos do que divergências, algumas e singulares observações precisam ser pontuadas preliminarmente neste nosso trabalho, para que o exercício a que nos dedicaremos não sofra de insuficiência comparativa ou rigidez de pensamento, diante do que mais à frente apresentaremos como pontos particulares de inflexão.
Entre os especialistas que ao longo de nossas páginas citaremos, estão aqueles cujos pensamentos e afirmações nos parece, independente de concordarmos ou não, melhor estruturam suas convicções. Um deles é Gustavo Gutiérrez, teólogo, que abordou a narrativa do Livro de Jó como uma reflexão profunda sobre a natureza do sofrimento humano, destacando o papel da fé diante das adversidades que a vida nos impõe. Outro, em contraste a isso, é o filósofo Søren Kierkegaard que interpretou o livro como um desafio à fé cega, sugerindo que a história de Jó é uma espécie de inspiração divina para que o comportamento religioso ultrapasse suas próprias convenções. Já na esfera da teologia judaica, o Livro de Jó é frequentemente analisado à luz da justiça divina. O Rabino Harold Kushner, autor de "Quando Coisas Ruins Acontecem a Pessoas Boas", explora a ideia de um Deus que não é responsável pelo sofrimento humano, mas sim um consolador diante das tribulações.
De um jeito ou de outro, nas três abordagens que vimos acima, a análise parte do que acontece ao Jó, e não do que lhe sobrevém pelo que ele é, vive, age ou mesmo pelo que demonstra crer como modelo de existência e relacionamento com Deus. Talvez isso se dê porque sua ilibada e inatacável conduta e reputação o coloque, na maioria das análises, como uma vítima perplexa das circunstâncias, ou no mínimo um inocente envolvido na rixa entre Deus e Satanás, narrada nos primeiros capítulos do livro. Coitado do Jó, tinha nada com isso... estava quieto no seu canto, e vejam onde foi parar...
Não estou, com isso, afirmando ou atribuindo a Jó qualquer culpa, dolo ou responsabilidade direta ou indireta pelo que lhe acontece na história. De modo algum. Pelo menos, não ainda. Entendo, porém, que isola-lo da tensão que a narrativa traz, dando a entender que se trata de alguém apenas envolvido na trama, ou caído de paraquedas, é minimizar ou mesmo desprezar uma oportunidade importante de se entender, com melhores possibilidades, o propósito primordial de sua história, e por que razões sua narrativa encontrou lugar de destaque para inspiração de povos antigos, com força para atravessar séculos e séculos de história. Interessou-se por isso? Eu também. Mas nisso nos aprofundaremos mais adiante, ao comentarmos alguns textos específicos da narrativa de Jó.
Por agora nos concentraremos em enunciar os diferentes temas que costumam ser listados como principais assuntos abordados no livro, e que fundamentam a atenção dispensada a ele mundo afora, com um pequeno resumo sobre o que cada um desenvolve baseado no texto do livro.
O Problema do Sofrimento
Jó enfrenta um intenso sofrimento
físico, emocional e financeiro, que o leva a questionar diversos princípios que
até então determinavam seu modo de viver. Isso levanta questões sobre a
natureza do sofrimento humano, bem como sua origem e seu propósito. Por que pessoas boas sofrem?
A Fé em Meio à Adversidade
A história de Jó questiona a natureza
e firmeza da fé em momentos de provação extrema, explorando como a devoção pode
persistir apesar de circunstâncias calamitosas e desfavoráveis.
A Justiça Divina e seu Sistema Retributivo
A narrativa do livro, segundo alguns,
aborda a questão da aplicação da justiça divina como um processo legal de
retribuição do bem e do mal. Para estes, o livro desafia noções tradicionais de
recompensa e castigo em relação às atitudes humanas; cada um de nós recebe apenas o que merece?
A Relação Pessoal com Deus
O Livro de Jó aponta para a
importância de uma relação pessoal consciente com Deus, optativa e voluntária,
indo muito além de rituais formais ou formatos de repetição. Ele destaca ainda
a necessária e indispensável autenticidade de uma devoção genuína e legitima
por parte de seus adoradores.
O Papel do Apoiador e Conselheiro
Os diálogos entre Jó e seus amigos que
o buscavam consolar, provocam profundas reflexões sobre como oferecer o
conforto e o conselho, e como devem ser aplicados em momentos de sofrimento e
dor inconsoláveis.
A Natureza Insondável de Deus
A narrativa ressalta a impossibilidade
de se compreender os meios e propósitos de Deus em sua totalidade, destacando a
limitação humana em avaliar as motivações de sua providência e as razões de
suas escolhas no tempo. O finito querendo
entender o infinito.
A Paciência de Jó e sua Resiliência
Jó é frequente e popularmente citado como um exemplo de paciência e resiliência diante das adversidades cotidianas da vida. Suas atitudes ao longo da história do livro, nos inspira a reflexões sobre a virtude convicta e persistente em meio às tribulações.
O Valor da
Sabedoria
Por isso posicionado entre os livros
poéticos e sapienciais no Antigo Testamento, boa parte do Livro de Jó é composta
por discursos poéticos e filosóficos, que ensejam inevitável reflexão no
leitor, evidenciando o valor da sabedoria na compreensão da vida e da fé.
A Dimensão Ética da Fé
Uma das mais abandonadas questões nas
comunidades cristãs na atualidade, a narrativa do livro aborda questões éticas
relacionadas à fidelidade a Deus, à integridade moral e à responsabilidade
particular diante do sofrimento alheio, quer individual ou coletivo.
A Restauração e Renovação da Vida
O final do livro que narra a
restauração de Jó, tanto de sua saúde física, quanto de suas condições
financeiras e emocionais, sugere uma mensagem de esperança, apontando para uma
consequente renovação da vida após períodos de tribulação, para aqueles que
persistem e resistem juntos a Deus, em meio e apesar do caos.
Em nossos estudos aqui, nos aprofundaremos em cada um desses temas, buscando olhar de forma responsável para cada um deles, sem necessariamente entender que se excluem entre si como temas abordados. Não obstante, tentaremos aprofundar nossos olhares sobre eles, de modo a encontrar suas aplicações mais diretas e transformadoras, para a vida e para as circunstâncias em que nos inserimos hoje. Mantendo o viés poético e teológico que o texto traz, tentaremos compreender a atualidade do livro, à luz do sentido original aplicado ao seu tempo.
Assim, beba um copo d’água e respire fundo. Os próximos mergulhos serão mais longos e demorados. Vamos precisar de fôlego e vontade, tempo e disposição, para seguir nessa aventura empolgante, de explorar tudo aquilo que pode revelar o Livro de Jó.