Perseguidos sim. Silenciados jamais



Por Jânsen Leiros Jr.


10 Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.  

11 Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguiram e, mentindo, disserem todo mal contra vós por minha causa. 12 Alegrai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram aos profetas que foram antes de vós."
                      Mateus 5:9-12 - JFA

Chegamos ao final do que lá atrás chamamos de introdução ao Sermão do Monte; as Bem-Aventuranças. Acredito que até aqui conseguimos ser entendidos naquilo que pautou nosso desenvolvimento, tanto em relação ao conteúdo quanto em relação ao propósito; a apresentação de uma lógica diferente na abordagem desse tão famoso discurso de Jesus, começando por mudar o ponto de observação do que deve ser feito, para o que é feito por natureza transformada. Um princípio da ótica do evangelho, onde o que somos não o somos porque nós mesmos construímos, mas porque foi, pelo Espírito de Deus, construído em nós.

Tal inversão, já na partida, altera o conceito de que seremos bem-aventurados, para já somos bem-aventurados, deixando para o futuro apenas as inevitáveis e gratuitas recompensas a cada bem-aventurança relacionada. O que, na prática, nada mais são do que mera pluralidade expositiva, de uma mesma e única realidade à frente; o reino de Deus. Nesse aspecto a tradução de André Chouraqui substituindo bem-aventurados por em marcha, apresenta melhor a questão de um caminho onde já nos encontramos, porque nele fomos colocados, e que nos levará inevitavelmente a um destino certo e previamente revelado.

Mas por que isso? Se as bem-aventuranças não são a relação de atitudes a perseguir, mas as já potencialmente existentes nos redimidos e justificados, que sentido teria serem colocadas no início de um discurso como o Sermão do Monte? Sim, porque em tal sermão parecem desfilar inúmeros comportamentos requeridos aos santos, com vistas a, uma vez seguidos e cumpridos, conduzirem o indivíduo ao reino de Deus. Ou seja, dão a entender que, vividos em suas conformações justificarão seu agente, outorgando-lhe a entrada no reino de Deus. Ora, exatamente por contradição a esse entendimento equivocado. A ética do Sermão do Monte é uma espécie de vida a ser vivida, não uma relação de conduta a ser provada.

A autojustificação é a máxima em quase a totalidade das religiões espalhadas pelo mundo. Um conjunto de regras, uma sequência de ritos, variações de princípios filosóficos que permeiam publicações que sustentam uma ideia central, capaz de reunir pessoas ao redor de um mesmo fim; uma recompensa, seja ela qual for. Uma recompensa pela qual se faça jus, a partir do cumprimento de tudo aquilo que se estabelece como norma de conduta. Ou seja, todos compram, de um modo ou de outro, a sua própria recompensa, ou se preferirem, justificam sua própria herança.

As bem-aventuranças, contudo e portanto, como revelação das características dos redimidos pela justiça de Deus, explicitam de forma contundente que, iniciada a marcha, aquelas serão sempre as características de quem foi feito livre do pecado, mas servo da justiça[1].

Nossa reflexão de hoje, porém, se concentra na perseguição e isso obviamente causa um certo desconforto e um questionamento inevitável. Seria a perseguição uma característica do cristão? Como conciliar bem-aventurança com perseguição? Como juntar uma coisa positiva e uma negativa? Como pode ser bom, passar por uma coisa ruim? Seria isso um contracenso, uma impossibilidade ou um masoquismo? Nem uma coisa, nem outra. Na verdade, a perseguição não passa de um inevitável conflito entre dois sistemas de valores irreconciliáveis.

Na prática, todas as bem-aventuranças são impopulares. Ser pobre, pranteador, manso, ter fome e sede, ser misericordioso, transparente, pacificador e perseguido, em nada se parece com o perfil vanglorioso que as religiões costumam oferecer aos seus adeptos, como conduta e modelo de vida. Tanto quanto o evangelho de autoajuda, que vem crescendo assustadoramente em nossos dias, onde tudo de bom sempre acontece ao crente feliz e sempre vitorioso em seus projetos, sonhos, vontades e batalhas.

Há uma oposição natural ao princípio das bem-aventuranças, a medida que elas representam fraqueza humana e fragilidade diante da crueldade do mundo real. Todos querem ser ricos e não pobres, serem felizes e jamais chorosos. É normal elogiarem o valente e não o manso, bem como se admira a fartura ao contrário da fome e da sede. Não são comuns filmes em que o mocinho injustiçado se vinga de seus algozes? Como então aceitar de bom grado a misericórdia? Num mundo em que negociações são travadas na obscuridade das intenções sempre camufladas, sinceridade e transparência são fragilidades competitivas inaceitáveis. O mundo premia o forte e o guerreiro; aos pacificadores, a derrota! Morte e perseguição, aos que se opõem à necessária e conveniente ordem mundial.

Mas notem, não é sem motivo que o pacificador precede o perseguido. Isso é tanto necessário quanto pertinente, pois somente o pacificador é capaz de sofrer a perseguição e não revidá-la, uma vez que, seguro, confia plenamente em Deus a quem se entrega. Os mansos naturalmente não impõem medo, parecendo presas fáceis a seus eventuais perseguidores. As características essenciais de um cristão expressas nas bem-aventuranças, chocam e criam repulsa no homem natural, provocando-lhe a necessidade e o interesse urgente de anular e até mesmo aniquilar as perigosas ideologias de fragilidade humana, diante de sua constante luta por força e poder.

A perseguição é, portanto, uma chancela da vida cristã. Um sinal de que andamos no caminho certo, de que estamos em marcha. Não necessariamente porque incomodamos inconvenientemente, mas porque confrontamos, sem nem mesmo falarmos, a realidade pecaminosa do comportamento humano, que se rebela contra Deus, e dele se afasta deliberadamente. E não devemos nos vingar de tais perseguições, mas antes alegrai-vos e exultai. A perseguição assim motivada, foi igualmente sofrida pelos profetas bem como por Jesus, de quem somos discípulos. E que maior honra a um discípulo, do que o tornar-se igual a seu mestre?

O Sermão do Monte é assim a desconstrução de uma vida aprendida em um lodo religioso que premiava o aparente e não o real, bem como o superficial e não o profundo. Ele confronta uma religiosidade morta e ineficaz, a uma vida nova e transbordante, porém invertida em seus valores, alternativa em sua essência, e digna de ser apreciada por corações em marcha, mas ao mesmo tempo perseguida pela maldade do presente século. Afinal, o mundo jaz no maligno[2].



[1]  Romanos 6:17-19
[2]  1 João 5:19

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