Mas então, como se labora uma teologia?





“Ó Senhor... Seja-me permitido enxergar a tua luz, embora de tão longe e desta profundidade. Ensina-me como procurar-te e mostra-te a mim que te procuro. Pois, sequer posso procurar-te se não me ensinares a maneira, nem encontrar-te se não te mostrares. Que eu possa procurar-te desejando-te, e desejar-te ao procurar-te, e encontrar-te amando-te, e amar-te ao te encontrar”
Anselmo de Cantuária - 1078 - destaque; em O que é Teologia?
Coleção Teologia ao Alcance de Todos - MK Editora

Seguindo nosso posicionamento explicitado no texto anterior, e embora consideremos teologia como o ato simples mas voluntário de pensar em Deus, Ele mesmo, Deus, não pode ser objeto material de nosso labor teológico, uma vez que nenhum dos nossos sentidos o pode limitar ou definir nem a forma, nem a essência. Antes, o objeto do empreendimento teológico é a revelação de Deus, onde e como essa possa ser encontrada, bem como sua relação com a humanidade, também expressa e registrada em parte das evidências de sua revelação.

Anselmo de Cantuária, autor do texto acima em destaque, parecia entender isso perfeitamente. Ao pedir para enxergar a luz de Deus e não o próprio, sabe que d'Ele apenas a manifestação lhe seria possível perceber, dada a profunda e intransponível distância que os separava. Mas em maior relevância está o entendimento de que a iniciativa de se apresentar emana do próprio Deus, pois mostra-te a mim que te procuro. O caminho de tal conhecimento também parece depender da orientação do Procurado, pois sequer posso procurar-te se não me ensinares a maneira. O labor teológico se exaure na e da revelação de Deus, e essa atende aos seus propósitos.

2.  Mas então, como se labora uma teologia?

Ora, se Deus por sua magnificência não pode ser nosso objeto de estudo, e sua revelação e relação com a humanidade passa a ser em lugar d'Ele nosso material de nossa investigação, onde procurar tal revelação e os indícios dessa relação, se é que há, com a humanidade?


“Para o cumprimento de sua missão, o teólogo, como um investigador, se baseia em evidências a fim de formular suas hipóteses.”
Elisa Rodrigues; em O que é Teologia?
Coleção Teologia ao Alcance de Todos - MK Editora

É importante aqui fazer duas ressalvas pertinentes para a manutenção da coerência de nossa tarefa. A primeira diz respeito ao exercício teológico encontrado na história de diversas outras civilizações, tanto antigas quanto contemporâneas, importantes e altamente colaborativas em nossa linha de raciocínio. Tais elaborações conceituais serão temporariamente deixadas à margem de nosso exercício, apenas por um momento, por conta da especificidade e concentração no labor teológico cristão por nós empreendido. Considerá-los agora poderia nos dispersar a compreensão e nos obrigaria a abrir um leque muito amplo de possibilidades que nos faria perder o foco. Mas as veremos com especial atenção em trabalhos futuros, e como as deixaremos às margens de nosso exercício, poderemos lançar-lhes mão sempre que oportuno.

A segunda ressalva, e essa diretamente ligada ao que diz o último destaque, faz-se importante pelo significado costumeiro da palavra evidência em nosso contexto coloquial, que difere flagrantemente do ali utilizado. Normalmente a expressão "é evidente" pode ser substituída por "é lógico", ou "sem dúvida", dando-nos a impressão obvia de que estamos tratando de algo indiscutível, insofismável, que se prova irrefutável por assim dizer. Porém no texto em destaque, evidência está se referindo a material sobre o qual se poderá exercer investigação, tendo o mesmo um sentido muito mais voltado ao entendimento forense. O que de certa forma é claramente muito mais adequado ao nosso objetivo.

Assim, nos voltamos ao problema inicial. Quais seriam as evidências sobre as quais poderíamos exercer a tarefa de pensar em Deus, através de sua revelação e de sua relação com a humanidade? Como identificar que um determinado fato ou circunstância é uma revelação, ou evidência da relação da humanidade com a divindade? Que características nos dão indícios de que uma ou outra ocorrência seja uma revelação de Deus, ou um ato relacional com sua criação? Uma vez que fizemos a opção temporária de isolar outras percepções teológicas, podemos nos concentrar no texto bíblico que deverá nos auxiliar preliminarmente.


19 Porquanto, o que de Deus se pode conhecer, neles se manifesta, porque Deus lho manifestou. 20 Pois os seus atributos invisíveis, o seu eterno poder e divindade, são claramente vistos desde a criação do mundo, sendo percebidos mediante as coisas criadas, de modo que eles são inescusáveis;”
Romanos 1:19-20 - JFA


1 Os céus revelam a glória de Deus, o firmamento proclama a obra de suas mãos. 2 Um dia discursa sobre isso a outro dia, e uma noite compartilha conhecimento com outra noite. 3 Não há termos, não há palavras, nenhuma voz que deles se ouça; 4 entretanto, sua linguagem é transmitida por toda a terra, e sua mensagem, até aos confins do mundo.”
Salmos 19:1-4a - KJA

A primeira evidência que destacamos, entre algumas com que podemos trabalhar, considerando as pistas fornecidas pelos próprios autores bíblicos, é a natureza criada. Há quem entenda essa evidência como pouco contundente para revelar Deus em todas as suas possibilidades e atributos, uma vez que pouco se pode afirmar além de seu poder criador. Paulo, contudo, parece não só discordar dessa tese, como demonstra ser partidário de que o que se revela na natureza criada é mais do que suficiente para que alguém conheça Deus e lhe preste culto, sendo possível, portanto, reconhecer-se a divindade revelada.

Lançando mão dos entendimentos das civilizações antigas, encontraremos eco dessa percepção natural da divindade revelada. A história desses povos está repleta de divinizações de fenômenos naturais e de elementos da natureza, bem como de animais e tudo o mais que estivesse fora do ser humano. Um primeiro mas muito importante raciocínio de que, fosse a divindade o que fosse, ela estaria fora do homem - um ser totalmente outro. Ora, se tais civilizações eram capazes de prestar culto a esses ídolos divinizados aos quais atribuíam o poder divinal, Paulo entendia que igual caminho poderia ser trilhado na direção de Deus. Até porque, tal revelação está disponível e foi a única evidência à existência de Deus, por muito mais tempo que outras revelações e evidências, que posteriormente vieram somar no processo de auto-revelação divina.

Assim como Paulo e bem antes dele, o salmista assistia em seu cotidiano a declaração da glória em suas obras manifestas. Ainda que sem qualquer expressão, voz ou palavra, a criação revelava ao devotado rei Davi, o Deus que a criou, sendo ela mesma mensagem suficiente para todos os povos e nações, em qualquer canto do planeta, até os confins do mundo. Em nosso artigo A Relevância de um Deus Criador (aqui mesmo no blog), fazemos alusão sobre a importância basilar que o conceito do Deus Criador tem em todo o processo que chamamos de labor teológico.


Aceitando portanto a natureza criada como evidência primeira e suficiente de revelação de Deus e de seus atributos, ou pelo menos de grande parte dele, que outras evidências poderíamos utilizar nesse árduo, porém delicioso empreendimento, no caminho do conhecimento de Deus? Voltemos ao texto bíblico, agora deixando a criação de lado.


97 Quanto amo a tua Lei! Sobre ela reflito o dia inteiro! 98 Os teus mandamentos me fizeram mais sábio que meus adversários, porquanto estão sempre comigo. 99 Tornei-me mais perspicaz que todos os meus mestres, pois meditei em tuas prescrições.100 Tenho mais discernimento que os anciãos, pois obedeço aos teus preceitos. 101 Desviei meus pés de todas as trilhas do mal para guardar a tua Palavra! 102 Não me afasto de tuas ordenanças, pois tu mesmo me ensinas. 103 Quão doces são os teus decretos ao meu paladar! Mais que o mel à minha boca. 104 Graças aos teus preceitos tenho entendimento; por isso, detesto todos os caminhos da mentira!”
Salmos 119:97-104 - KJA

Uma outra evidência bastante contundente e largamente utilizada é o próprio texto bíblico, que nos registra não só as manifestações e revelações de Deus, como o faz em pleno exercício da relação do próprio Deus com a humanidade. A Bíblia, inclusive, nos permite realizar variações de abordagem e método investigativo, ampliando a capacidade de argumentos na elaboração de todo o conteúdo teológico.

É importante ressaltar que não há muitos outros registros escritos sobre manifestações divinas, excetuando-se, como já dissemos acima, os trabalhos realizados por outras civilizações, aos quais nos voltaremos mais adiante. Mas mesmo eles, é importante que se diga, não apresentam circunstâncias muito diferentes das que encontramos no texto bíblico, em termos de possibilidade e variedade de entendimento sobre o que Deus revela de si mesmo, e de como se relaciona com a humanidade. E novamente nos vemos diante de uma coincidência providencial; que em sua grande maioria as civilizações registram um relacionamento da divindade com a humanidade, demonstrando que o labor teológico está na direção certa, ao tentar compreender o que essa relação é capaz de provocar na existência humana, se existem propósitos claros nessa relação, e se existem, quais são eles.

Concentrando-nos portanto na Bíblia, veremos mais adiante com detalhes, que ela possui um texto extremamente rico em registros de revelações e ensinamentos divinos, que podem ser extraídos concomitantes ou isolados, de um mesmo trecho ou de vários, sendo esses mesmos trechos, registros complementares entre si, e jamais contraditórios, que sustentam a quase totalidade das conclusões teológicas, lhes servindo de orientação racional, ainda que a fé lhe seja ambiente e tema recorrente.

Além dessas evidências, há alguns conteúdos multidisciplinares bastante colaborativos ao labor teológico. As pesquisas históricas, as descobertas arqueológicas e mesmo as especulações cientificas, podem servir de apoio ao elemento elucubrativo da tarefa teológica de pensar em Deus. Sempre lembrando que nenhum desses esforços precisam necessariamente esgotarem-se em si mesmos.

A teologia é por definição dinâmica, à medida que, ainda que trate do pensamento sobre o Imutável, trata do entendimento que se tem daquilo que é revelado sobre Ele. Por essa razão, talvez, identificamos tantas variações nos conceitos teológicos ao longo da história da humanidade. Não que Deus se altere ou varie existencialmente, mas exatamente porque a compreensão de sua revelação e relação com a humanidade, tanto influencia quanto sofre influência das diferentes áreas do conhecimento humano, bem como dos contextos históricos, sócio-econômicos, e até políticos em que estejam inseridos.

Assim, considerando tal dinâmica e sua capacidade de acompanhar a contemporaneidade do pensamento humano, a teologia não pode e nem deve intitular a si mesma e ao conjunto de suas conclusões, verdade absoluta de princípios insondáveis e inquestionáveis. Porque se algum efeito benéfico e direto o labor teológico precisa provocar naquele que o exerce, é a condescendência e a tolerância de quem sabe estar lidando com coisas muito mais elevadas, do que a sua pobre e fraca compreensão pode pretender maniatar em complexas definições. Nossa linguagem será sempre insuficiente para expressar a grandeza do que estudamos, ou mesmo para explicar aquilo em que cremos.


Por isso a comunicação da salvação se faz por testemunho e experiência; por isso ela se dá por conversão e não por convencimento. Mas isso já é assunto para outro artigo... 

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