“Bem-aventurados os
misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia."
Mateus 5:7 - JFA
Seguindo nosso passeio pelo Sermão do
Monte, chegamos à quinta bem-aventurança. E como passamos um tempo longo desde
o último texto, penso ser importante recuperar alguns princípios que entendemos
determinantes, na compreensão do que podemos considerar uma introdução ao
discurso desse sermão.
Podemos começar relembrando que as
bem-aventuranças formam um conjunto harmônico, que apresenta características
correlatas da personalidade transformada, de todo aquele que sinceramente se
devota a Deus. Não se trata de um faça isso
logo aquilo, tão presente na literatura positivista dos mecanismos de
auto-ajuda, mas sim de uma apresentação abrangente do caráter daquele que está
em marcha para o Reino do Céus. É, na prática, a tradução desse caráter em
atitudes relativas a si mesmo, dirigidas em benefício de terceiros, e por fim,
que dizem respeito a seu posicionamento social diante daquilo que crê.
Se lembrarmos bem, ou se alguém
preferir recorrer aos textos anteriores, as primeiras quatro bem-aventuranças
diziam respeito àquilo que o sincero e devotado discípulo pensa e faz, de si e
consigo mesmo. Ou seja, nas primeiras quatro bem-aventuranças o cristão é tanto
o agente, quanto o beneficiado de seu entendimento e conseqüentes atitudes. Mas
nessa e nas duas próximas beatitudes, haverá um benefício estendido a terceiros.
Uma atitude cujo o bem se amplia no
foco do que é correto e probo realizar, deixando assim a mensagem de que tudo o
que melhora em cada um de nós
individualmente, precisa refletir e se traduzir em bem aos outros também.
Tais características introdutórias,
portanto, são reveladoras à medida que coloca a relação do homem consigo mesmo,
com os outros, e com Deus, na base de todo o ensinamento que se desenvolverá em
seguida, definindo-as como a expressão prática da vida cotidiana de uma pessoa
piedosa.
Mas por que razão os misericordiosos
seriam bem-aventurados? Que vantagens a misericórdia poderá trazer ao
misericordioso. A misericórdia seria uma moeda de troca? E que valor teria? De
que adianta ao ser humano agir com misericórdia, se o mundo real pertence aos
implacáveis? Vamos pensar juntos sobre tudo isso.
Podemos começar tentando entender
misericórdia, como palavra sempre presente no contexto religioso daqueles dias.
Ou seja, a palavra utilizada por Jesus estava tão inserida no contexto social
judaico, que nenhuma dúvida causou aos discípulos que o ouviam naquele
instante. E como não é nosso objetivo aqui nos aprofundarmos muito nos
significados possíveis da palavra na tradição e na literatura judaica, ficaremos
com o sentido mais geral e mais amplamente utilizado; o de benevolência da
parte ofendida, à parte que descumpriu um pacto ou uma aliança. Uma graça.
Portanto, no sentido prático, misericórdia é um sentimento de bondade, que se deve
traduzir em atitude bondosa. Mais tarde Paulo relacionará a bondade como fruto
do Espírito[1].
É importante ressaltar, que Jesus não
está estabelecendo uma condição; quem
agir com misericórdia receberá misericórdia. Se assim fosse, a misericórdia
de Deus para conosco dependeria de nossa
atitude, e assim neutralizaria a graça, pois a alcançaríamos por nossos
próprios esforços. Mas antes, a exemplo das características anteriormente
relacionadas, é próprio do cristão piedoso agir com misericórdia, por está em
marcha com aqueles que receberão misericórdia. Ou seja, o cristão deve exercer
misericórdia por gratidão livre e espontânea[2],
dada a sua consciência da misericórdia de Deus que o alcançou.
Entre outros tantos exemplos de
bondade em exercício na narrativa bíblica, há dois pelos quais tenho particular
encanto; o bom samaritano[3]
e a mulher adúltera[4].
Entendo que esses dois acontecimentos exemplificam profundamente o significado
desse sentimento, esclarecendo respectivamente, a misericórdia como ato de bondade, e a misericórdia como ato de
perdão. No primeiro, o samaritano se compadece do estado em que se encontra
aquele homem à margem da estrada. Sem cuidado e abandonado ali, ele certamente
iria morrer. e não obstante a todos os seus importantes afazeres, decide
priorizar o cuidado pleno daquele homem, sem medir custos. Um ato efetivo de
compaixão e bondade. No segundo, há um contraponto particularmente especial;
não seria ilegal apedrejar aquela adúltera. A lei mosaica lhes autorizava a
tanto. Havia ali um delito cujo castigo era o apedrejamento até a morte. Jesus
então apresenta-lhes a misericórdia como a alternativa benevolente, de quem
abandona o direito, em benefício do pecador. Um ato de compaixão e
misericórdia.
Além desses dois exemplos, a Epístola
aos Hebreus apresenta Jesus como o sumo sacerdote misericordioso[5].
E tal misericórdia ganha consistência, na medida em que Jesus, a exemplo de nós
seres humanos, passou por tudo o que passamos, sabendo na carne, as
dificuldades e carências que sofremos em nossa vida real e cotidiana. Ele se
compadece de nós, embora o pecado nos faça merecedores do castigo de morte.
Onde o pecado abundou, superabundou a graça[6].
A bíblia nos ensina que o amor cobre
uma multidão de pecados. Isso nos reporta a uma situação confrontante com a
realidade que vivemos em nossos dias. Vivemos tempos difíceis, em que somos
tocados por um ímpeto de vingança pessoal e social. Talvez motivado por
corações endurecidos, talvez pela falta de ação do Estado, ou as duas coisas
somadas, diariamente flagramos casos em que a vingança, travestida de justiça
pelas próprias mãos, tem feito vítimas nas mais diversas camadas e grupos sociais.
E o que se instaura, na ausência da bondade, da misericórdia e da compaixão, é
a maldade, a indiferença e a intolerância. Afinal, por se multiplicar a
iniqüidade, o amor de muitos esfriará[7].
Misericórdia
quero e não sacrifício[8].
Os fariseus se escandalizavam porque Jesus vivia rodeado por pessoas que os
fariseus consideravam impuras, e portanto contamináveis. Manter-se
"puro" segundo a tradição judaica, requeria restringir determinados
contatos e convívios, principalmente com aqueles que estavam à margem daquela
sociedade. Acontece que a falta de um sentimento de misericórdia, na essência
da relação com Deus, torna nula toda a ritualidade religiosa. E isso incomodava
profundamente o próprio Deus, como relatado no Antigo Testamento[9].
Um cristão sem um coração misericordioso, é um cristão vazio do sentimento mais
básico em um coração transformado; o amor[10].
A verdade é que um coração
misericordioso é uma referência da bondade e do amor de Deus no mundo. E nós,
cristãos, não podemos deixar de ter essa marca. Numa realidade mundial onde o
ódio, a indiferença e a intolerância dominam as atitudes e reações mais
instintivas, a bondade e a misericórdia de Deus precisa estar traduzida em
nossas relações, no compadecimento com todos, acolhendo e cuidando daqueles a
quem o Senhor nos envia.
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