“Bem-aventurados os que têm fome
e sede de justiça, porque eles serão fartos."
Mateus
5:6 - TB
Seguindo nosso passeio pelas pedras e
relevos do Sermão do Monte, nos deparamos com a quarta bem-aventurança. Fome e sede parecem apontar a uma questão meramente social para alguns,
confirmando o caráter anterior atribuído a pobres, presente na primeira
bem-aventurança do discurso. E esse texto, ao longo de anos, de forma
recorrente é utilizado como sustentação ideológica para diversos movimentos sociais
mundo afora.
Não que ele não possa mesmo inspirar
tais ações. Não que seja menos nobre utilizá-lo como instrumento de
conscientização da necessidade de se realizar urgente justiça social em
diversos países por todo o mundo, mesmo em países tidos como desenvolvidos ou
países de primeiro mundo. Nada contra. Mas não podemos parar por aí, pois a
mensagem do texto é ainda mais profunda e enriquecedora, podendo sim promover
uma verdadeira justiça social, ampliando as possibilidades, através de pessoas
profundamente motivadas pela ação da justiça de Deus em suas vidas.
Mas por que o texto não se refere à
justiça social, à mitigação da fome e
da sede dessa gente que necessita tão
direta e urgentemente da ação do estado, e da solidariedade de quem não passou
ou não passa por qualquer privação de necessidades tão vitais? Simplesmente
porque esse não era o contexto e a circunstância em que o discurso do sermão
foi proclamado. Não que a fome e a sede dessa gente não fosse uma preocupação
de Jesus. Era, é, e sempre será. Mas naquele momento, ao proferir aquele
sermão, quem tem a fome e a sede de
justiça, seguiu o contexto do que se reconhece pobre de espírito, acompanhou o ritmo do que chora seu pranto, e caminhou junto ao manso que opta por confiar no cuidado de Deus. Quem tem fome e sede de justiça é um
bem-aventurado.
Então essa fome e essa sede não
podem se referir a um estado de carência de comida ou de bebida. Ou alguém se
oferece a explicar qual seria a vantagem, ainda que futura, de se passar fome e
sede? Sim, porque para quem sente fome e sede só há um bem a perseguir, um só
objetivo; mitigar a fome e a sede o mais rapidamente possível. De modo que não
há qualquer recompensa futura, que possa minimizar essa falta tão absoluta e urgente.
Além disso, caso Jesus estivesse se referindo às necessidades de alimentação e
hidratação, a frase teria sido:
Bem-Aventurados os que passam fome e sede, porque serão saciados. Ora, quem
tem fome e sede precisa de pão e água,
não de justiça, pois não a poderia comer, e nem sequer beber.
É claro, não sou cego às vicissitudes
da vida. A falta de justiça social pode, e na prática provoca mesmo, carências
de diversas e importantes necessidades primárias ao indivíduo alijado de seus
direitos mais básicos. Mas se tais necessidades existem e não são atendidas,
onde estaria o consolo? Em que circunstância se basearia a bem-aventurança
proclamada por Jesus? Numa saciedade futura onde não existirá isso que sofro no
presente? Estaria Jesus dizendo: Passe aí
um pouquinho de fome e sede pela injustiça do mundo, que logo você morre de
inanição, e no paraíso você, ou não precisará de comida e bebida, ou lá haverá
mesa farta e bebida à vontade. Penso que isso seria cruel e cínico, pra
falar apenas o que me vem à cabeça de pronto.
Assim não nos sobram muitas
alternativas. A fome e a sede a que se refere a quarta
bem-aventurança, não é uma carência física, mas uma carência da alma. E não é
apenas uma carência provisória e pontual. Trata-se de um desejo permanente pela
justiça de Deus. Sim, justiça de Deus. Porque se serão fartos no porvir; se tal
saciedade só se dará no futuro, assim como dos pobres será o reino dos céus, e
assim como os mansos que herdarão a terra, se é nesse reino de Deus que
ocorrerá a fartura da justiça pela qual tem fome
e sede, essa justiça só pode ser a
justiça de Deus. Mas por que um desejo permanente? Por que tal carência se
perpetuará até a morte?
O contexto de todo o sermão de Jesus,
aponta para um aprofundamento da conduta espiritual. Comparativamente, Jesus
irá sempre confrontar a superficialidade religiosa e exibicionista dos fariseus,
com a legítima contrição daquele que se reconhece pobre de espírito e carente
de Deus, e por isso pranteiam a fragilidade de suas almas. Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e
fariseus, de modo nenhum entrareis no Reino dos Céus.[1]
Ora, então o que é a justiça de Deus
pela qual devemos ser famintos e sedentos. E que justiça é essa nossa, que
excedendo à dos escribas e fariseus, me fará entrar no Reino dos Céus?
Precisaremos dar uma olhadinha nisso primeiro, antes de prosseguirmos, pois
esse conceito é muitíssimo importante para nossa reflexão.
Antes de mais nada é necessário
desconstruir alguns conceitos atribuídos à justiça em nosso senso comum. O que
entendemos como justiça está intimamente ligado ao conceito forense, em que fazer justiça é retribuir um ato ilegal
e por isso injusto, com aplicação de uma punição estabelecida na lei, de modo
que o infrator "pague" pelo seu ato de injustiça. Portanto, justiça
em nosso contexto cotidiano mais simples, remete à punição de culpados, ou reequilíbrio
de "desigualdades"; dois
pra lá, dois pra cá. Porém não é esse o sentido bíblico de justiça. Nela, os
termos tsedãqâ no Antigo Testamento,
ou dikaiosyné no Novo
Testamento, estão muito mais ligados ao conceito de recuperação de uma
condição, ou um resgate. Como uma
redenção do condenado ainda no corredor
da morte do tribunal celestial.
Como
pode um homem ser justo para com Deus?[2]
- pergunta Jó, acusado de ter cometido alguma injustiça diante de Deus, que
explicasse sua desventura. Mas não somos
todos injustos? - seria uma continuação possível de sua argumentação. Sim, eu
diria a Jó, certamente somos todos injustos perante Deus. Como está escrito: Não há justo, nem sequer um.[3]
Então a punição é justa e adequada. E não há quem possa dela escapar. Pelo
menos não com subterfúgios, barganhas, ou mesmo sacrifícios de adulação. Pois todos nós somos como o imundo, e todas
as nossas justiças como trapo da imundícia; e todos nós murchamos como a folha,
e as nossas iniqüidades, como o vento, nos arrebatam.[4]
Fizeste-me compreender que nem oferendas
e sacrifícios desejaste; não requereste de mim holocaustos para remir meus
pecados.[5]
De modo que não só somos todos injustos, como também não há nada que
possamos fazer por nós mesmos para nos resgatar da punição iminente.
“E creu Abrão no Senhor, e o
Senhor imputou-lhe isto como justiça."
Gênesis
15:6 - JFA
É muito importante notar o que revela
esse pequeno versículo, que mais tarde será citado no livro de Hebreus, já no
Novo Testamento. Ele diz que a justiça
não é realizada por Abraão, mas sim imputada
a ele, atribuída, por um princípio de
natureza e não de origem. Ele passa a estar justo (natureza), mas não foi ele
que realizou tal justiça (origem). A quem pois então pertence a justiça?
Pertence a Deus. E que justiça é essa? Essa justiça é o resgate do homem de sua
condição de injusto, e que por injusto passível da punição.
Ora, quem é que depende da justiça de
Deus? Todos. Mas a quem é que Deus a atribui? A quem crê. A quem reconhece que
depende de Deus e sabe de sua pobreza espiritual. A quem pranteia essa condição
de pobreza e chora. A quem aguarda o favorecimento imerecido de Deus, e não
tenta agir por conta própria, se fazendo justo pelas próprias mãos. Por fim, a
quem se encontra faminto e sedento por ela. Portanto a justiça de
Deus é o resgate de quem crê. É o resgate do faminto e do sedento, fazendo dele
um bem-aventurado.
“1Justificados, pois, pela fé,
tenhamos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, 2
por quem obtivemos também nosso acesso pela fé a esta graça, na qual estamos
firmes, e gloriemo-nos na esperança da glória de Deus."
Romanos
5:1 e 2 - JFA
Eis, portanto, a finalidade última da
justificação; o resgate da relação entre Criador e criatura. A restauração de
uma relação genuína, renovada e legítima. Profunda e muito mais abençoadora.
Insaciável e capaz de fazer dessa fome
e dessa sede, uma motivação decisiva na
direção de uma conduta justa, que exceda à falsidade e à fantasia pseudo-devotada
dos escribas e fariseus. Bem-Aventurado os famintos e sedentos dessa justiça;
desse resgate. Bem-Aventurado os que
se alimentam da vontade de Deus, e saciam suas sedes em poços abertos pela providência
e pelo amor de Deus. Porque aquele que
beber da água que eu (Jesus) lhe der
nunca terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der se fará nele uma fonte
de água que jorre para a vida eterna.[6]
Bem-Aventurado é aquele cuja iniqüidade é perdoada, cujo pecado é coberto.[7]
É portanto dessa relação que temos fome e sede. É desse convívio íntimo que dependemos por predileção.
Bem-Aventurado somos por marcharmos nesse ciclo virtuoso, em que a carência
jamais se esgota, ainda que a fartura jamais se acabe.
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