Bereshit bara Elohim
- Hebraico: בְּרֵאשִׁית בָּרָא אֱלֹהִים
- Grego
(Septuaginta):
Ἐν ἀρχῇ ἐποίησεν ὁ Θεὸς
- Inglês: In the beginning,
God created
- Português
(versão RA):
No princípio, criou Deus
Na
teologia cristã, a primeira palavra do Gênesis, Bereshit (בְָרֶאִשִׁיתְ),
carrega um significado profundo e essencial para a compreensão da criação.
Traduzida geralmente como "No princípio", Bereshit não marca um ponto
temporal específico, mas, em vez disso, indica uma intencionalidade divina: um
desejo que brota do amor pleno de Deus em Sua eternidade, onde não há noção de
tempo, mas um querer divino. Deus, sendo eterno, não é limitado pelo tempo.
Assim, o que se revela aqui não é apenas um "início", mas uma vontade
divina que se cumpre imediatamente — não por mágica ou sem processos, mas
porque nada pode impedir o querer de Deus de se realizar. "Querendo Eu,
quem impedirá?" (Isaías 43:13). Não há distância entre o querer e a
realização, mas isso não significa ausência de tempo ou processo; ao contrário,
Deus age no tempo e em conformidade com ele, mas Sua vontade transcende o
tempo, porque Ele é Senhor do tempo.
Santo
Tomás de Aquino define Deus como ipsum esse subsistens (o próprio Ser
subsistente), enfatizando que Ele é a fonte última e razão de toda existência.
A doutrina da creatio ex nihilo (criação a partir do nada) ensina que
Deus não utilizou uma matéria pré-existente, mas trouxe a realidade à
existência pelo poder de Sua Palavra: "Bereshit bara Elohim..."
("No princípio criou Deus...") — Gênesis 1:1.
No
entanto, a questão que se coloca é: se Deus criou todas as coisas do nada, como
se dá essa criação? E mais importante, qual a motivação divina para tal ato? A
teologia cristã propõe que a criação é, antes de tudo, um ato de amor. Deus,
sendo amor em Sua essência (1 João 4:8), cria não por necessidade, mas por um
transbordamento de Sua plenitude. Nesse contexto, Bereshit não marca
apenas um "início", mas revela um movimento de doação. Deus, que nada
precisa, escolhe criar para compartilhar com a criatura o Seu amor.
Ao
deslocarmos a compreensão para o "querer" de Deus, entendemos que a
criação não está subordinada a um processo temporal ou a uma causalidade
física, mas sim a uma vontade divina plena. Em Deus, não há intervalo entre o
querer e sua concretização, porque Ele não está limitado pela cronologia. No
entanto, isso não significa uma criação instantânea sem processos ou sem o
prazer de Deus na construção do momento certo. Deus se alegra nos processos que
Ele mesmo institui, respeitando as condições adequadas e o instante plenamente
oportuno para Sua ação. A criação, portanto, é um ato de liberdade plena, mas
também uma ação ordenada, que respeita as condições estabelecidas por Deus, sem
que isso implique em limitações para Ele. A criação não é fruto do acaso, nem
de uma sequência de causas físicas ou químicas. O que importa não é o
"como" ou o "quando" da criação, mas o "querer"
divino, que se realiza sempre no momento ideal, segundo o Seu plano perfeito.
Essa
compreensão amplia a visão teológica do relato de Gênesis. O texto mosaico não
tem a preocupação de descrever o mecanismo da criação, mas sim sua motivação.
A criação não é apenas um evento cósmico; é um ato de amor, um gesto de doação
plena do Criador. Deus não apenas chama a existência, mas chama para a comunhão.
Seu amor transborda na criação como um convite para a criatura participar de
Sua plenitude. Esse padrão de doação se repete ao longo da revelação bíblica:
Deus se entrega na criação, na aliança com Seu povo e, finalmente, na
encarnação de Cristo, que é a suprema expressão do amor divino. "Porque
Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho unigênito..." (João
3:16). A criação, portanto, não é um fim em si mesma, mas o início de uma
história de amor, que culmina na redenção e na comunhão eterna entre Criador e
criatura.
Bara:
A Criação como Ato de Doação Divina
Se
Bereshit nos introduz ao princípio absoluto, Bara nos revela a
essência do ato criador de Deus. Diferente do verbo hebraico que poderia ser
traduzido como "fazer" ou "moldar", Bara é usado
exclusivamente para Deus e significa "trazer à existência" algo que
antes não existia. Isso nos leva a uma questão fundamental: de onde vem tudo o
que existe?
A
resposta, dentro da compreensão do amor divino, está na própria essência de
Deus. Ele não apenas decide criar; Ele se doa para que a criação exista. Isso
significa que não há uma matéria preexistente fora de Deus da qual o universo
pudesse ser formado. O "nada" absoluto, como imaginamos, não poderia
coexistir com Deus, pois Ele é o próprio ser absoluto, e nada poderia existir
além d'Ele antes do ato criador. Assim, quando Deus cria, Ele não usa algo externo
a Ele; Ele concede ser àquilo que antes não existia, e o faz como um ato de
amor.
Essa
compreensão nos afasta do panteísmo, que dilui Deus na criação, e nos aproxima
de uma visão panenteísta ajustada: tudo vem de Deus, mas Deus não é tudo. A
criação é uma extensão do Seu amor, não uma redução de Sua essência. Ele não se
esgota ao criar; ao contrário, Ele manifesta sua plenitude ao doar-se.
Esse
princípio se torna ainda mais claro quando olhamos para a progressão da
criação. Deus não apenas cria seres inanimados, mas também doa autonomia às
suas criaturas: "árvores com frutos, e dentro dos frutos suas
sementes" (Gn 1:11), um ciclo perpétuo de vida que não prescinde da fonte,
mas também não é um prolongamento absoluto dela. O mesmo ocorre com o ser humano,
dotado da capacidade de gerar vida, não como um criador absoluto, mas como um
participante desse amor criador.
O
ato criador de Deus, então, não é um mero gesto de poder, mas um
autoesvaziamento amoroso. Se a criação já carrega em si um vislumbre desse amor
doador, a encarnação de Cristo será a expressão máxima desse princípio. Aquele
que "trouxe à existência" o universo através de Bara também se
"esvazia" para restaurá-lo (Fp 2:7).
Assim,
a criação e a redenção se tornam um único ato de amor: Deus que doa ser às criaturas
para que elas existam, e Deus que se doa a Si mesmo para que elas voltem a Ele.
O amor não poderia ser um mandamento imposto; ele é uma resposta natural ao
amor que primeiro nos criou.
Dessa
forma, Bara não é apenas um verbo da criação; é a expressão da própria
natureza de Deus: Aquele que, por amor, doa-se para que tudo o mais exista.
A
Criação Consumada no Amor: O Propósito Final de Deus
Portante,
se em Bereshit compreendemos a intencionalidade divina e em Bara
entendemos a criação como um ato de doação total de Deus, então a plenitude
dessa obra encontra sua expressão final na cruz, no momento em que Cristo
declara: "Está consumado" (João 19:30).
Não
se trata de dizer que a criação se encerrou ali no sentido cronológico, mas sim
que ali se revelou sua finalidade: o amor doador de Deus encontrou sua
realização suprema na entrega de Cristo. O mesmo Deus que trouxe todas as
coisas à existência por um ato de amor, agora se doa plenamente para redimir
sua criação, restaurando nela a relação perdida pelo pecado.
Ao
longo da história bíblica, vemos um movimento progressivo no qual Deus não
apenas cria, mas se envolve, sustenta e direciona sua criação para um ponto de
culminância. Em Cristo, Deus não apenas "fala" com sua criação, mas entra
nela, assumindo sua própria substância para resgatar aqueles que formou.
Esse movimento não contradiz Bara, mas o exalta: a criação começa no
amor doador de Deus e se consuma quando esse amor atinge sua expressão máxima
na redenção.
A
ascensão de Cristo e a descida do Espírito Santo completam esse ciclo, pois,
assim como Deus deu autonomia à criação no princípio, agora Ele concede à
humanidade a possibilidade de corresponder livremente ao Seu amor. O Espírito
não apenas confirma a obra de Cristo, mas também faz dela uma realidade interior
na vida dos que creem, conduzindo a criação não apenas ao seu começo,
mas ao seu propósito final.
Dessa
forma, a frase "Está consumado" ressoa em harmonia com "No
princípio criou Deus". O ato de criação e o ato de redenção não são
distintos em essência, mas sim manifestações do mesmo amor eterno que é a
própria essência de Deus. Tudo foi criado para que o amor divino se derramasse,
e tudo se consumou para que esse amor fosse plenamente recebido.
Assim,
ao refletirmos sobre a criação, vemos o amor como a força motriz e fundamental
que sustenta tudo. E é justamente esse amor, ao longo da história, que nos
convida a uma resposta contínua, até o momento em que toda a criação se unirá
novamente ao Criador.
Criação
e Doação: Deus como Fonte e Matéria da Existência
O
conceito de criação remete a reflexões filosóficas antigas, como o Apeiron
de Anaximandro, que representa um princípio ilimitado e primordial. No entanto,
ao contrário da filosofia grega, a visão bíblica revela um Criador pessoal,
cuja ação é intencional e amorosa.
Atos 17:28 declara: "Porque nele vivemos, nos movemos e existimos".
Isso implica que Deus não é apenas a origem de tudo, mas também Aquele que
continuamente sustenta todas as coisas. Contudo, a tradição cristã rejeita o
panteísmo (a ideia de que tudo é Deus). A criação é distinta do Criador, embora
dependa d'Ele para continuar existindo.
Orígenes e Gregório de Nissa propuseram que a criação é uma manifestação dos
atributos divinos, sem que Deus perca Sua transcendência. O Logos (João 1:1) é
a ponte entre Deus e o mundo criado, a expressão divina que permite a
existência e a redenção. Nesse sentido, Bereshit não indica apenas um
começo temporal, mas um princípio sustentador e permanente, um ato contínuo de
amor e doação.
Deus
se Doando na Criação: Um Amor Kenótico
Se
a criação é um ato de amor, então Deus, ao criar, está se doando. Esse
princípio se encontra na base do conceito de kenosis (autoesvaziamento), que
atinge seu clímax na Encarnação de Cristo (Filipenses 2:7). Deus, que nada
necessita, escolhe dar-Se ao mundo, sustentá-lo e, mais tarde, entrar nele na
pessoa de Jesus Cristo.
Esse amor desapegado também encontra um paralelo no conceito judeu do Tzimtzum,
da tradição cabalística: Deus, para criar, "contrai" Sua presença
infinita, permitindo que algo além d'Ele venha à existência. Embora essa não
seja uma doutrina cristã, ela oferece um paralelo interessante para entender a
kenosis divina: um Deus que, por amor, "abre espaço" para que outros
seres possam existir e escolher livremente amá-Lo.
O
Amor que Sustenta e Convida
Deus
não apenas cria e abandona a criação; Ele a sustenta continuamente (Colossenses
1:16-17). Esse sustento não é um mero mecanismo impessoal, mas um ato de
relação e compromisso. O amor divino não é coercitivo, mas convidativo. Deus
doa a existência, a liberdade e a graça, chamando o ser humano a corresponder a
esse amor.
A parábola do filho pródigo (Lucas 15:11-32) ilustra essa relação. O pai
concede ao filho sua parte da herança, permitindo-lhe sair e experimentar as
consequências de suas escolhas. No entanto, quando o filho retorna, o pai o
recebe com amor incondicional. Assim é Deus: um Criador que dá a existência,
respeita a liberdade de Suas criaturas, mas permanece pronto a acolhê-las de
volta em comunhão.
Conclusão:
O Amor como Princípio e Fim
A
criação é a primeira grande expressão do amor de Deus. Bereshit revela
um princípio não apenas de tempo, mas de intencionalidade amorosa. Deus não
apenas criou, mas sustenta, guia e chama Sua criação ao retorno para Si.
Se a criação nasce do amor e é sustentada pelo amor, então o destino final
também é o amor: a plena comunhão com Deus. Como afirma Agostinho: "Nos
criaste para Ti, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em
Ti" (Confissões, I,1). Se fomos criados por amor e para o amor, só nele
encontraremos nossa plenitude. Bereshit não é apenas um princípio, mas
um convite eterno ao relacionamento com o Criador.
Com
isso, encerramos esta primeira parte sobre a criação. Agora, podemos avançar
para a compreensão dos dias da criação dentro desta mesma linha de raciocínio,
aprofundando como cada momento do gênese reflete esse movimento doador e
redentor de Deus.