segunda-feira, 31 de março de 2025

Fé Midiática e o Perigo da Banalização

Por Jânsen Leiros Jr. 

"A Igreja deve falar da mesma forma ao mundo moderno como os profetas falaram a Israel: com fidelidade à Palavra de Deus, e não se curvando às tendências do momento." - Karl Barth, teólogo reformado

"A fé que custa nada não vale nada. Quando a verdade é diluída para torná-la aceitável, a Igreja se torna irrelevante." - A.W. Tozer, teólogo e pastor cristão

"A religião e a cultura sempre caminharam juntas, mas quando a mídia molda a religião em vez do contrário, corre-se o risco de perder a profundidade e a verdade da fé." - Paul Tillich, filósofo e teólogo protestante

"O grande problema da modernidade não é a perda da fé, mas a sua substituição por ilusões superficiais que apelam ao emocional e não ao espiritual." - Carl Jung, psicólogo suíço

"A mídia não apenas reflete, mas também molda as práticas religiosas contemporâneas, criando novas formas de crer e, ao mesmo tempo, esvaziando tradições de seu conteúdo original." - Stuart Hoover, sociólogo da religião e da mídia

Há algum tempo, venho acompanhando com apreensão a disseminação, pela mídia, de conteúdos religiosos – e, em especial, de materiais que se apresentam como cristãos e teológicos. Não é que eu questione a legitimidade do uso da mídia para divulgar temas desse campo; pelo contrário, reconheço seu potencial em difundir valores espirituais e conhecimentos sobre a fé. Eu mesmo o faço aqui pelo blog. Minha preocupação, no entanto, recai sobre o modo como esses conteúdos têm sido veiculados, muitas vezes promovendo afirmações questionáveis e compreensões controversas, com uma ousadia surpreendente e um total e flagrante despreparo ou conhecimento de causa.

A mídia, com seu poder de moldar a opinião pública e espalhar informações com celeridade, exerce uma influência cada vez mais significativa na compreensão teológica contemporânea. A facilidade de acesso aos conteúdos religiosos através de diversas plataformas digitais democratizou a busca por conhecimento espiritual, oferecendo aos indivíduos a oportunidade de explorar diferentes perspectivas e interpretações das escrituras sagradas. No entanto, essa proliferação de informações, predominantemente fragmentadas e superficiais, também apresenta desafios, principalmente entre leigos que privilegiam vídeos curtos, storys e reels, em prejuízo de leitura afim e consistente.

A busca por audiência e o impulso de simplificar conceitos complexos acabam distorcendo doutrinas e disseminando ideias equivocadas. A mídia, ao transformar a fé em um produto de consumo, incorre no risco de banalizar o sagrado e reduzir a espiritualidade a uma mera experiência emocional. A pressão por conteúdo rápido e atraente muitas vezes resulta na vulgarização de questões profundas da teologia, comprometendo a formação de uma fé enraizada e reflexiva.

A influência da mídia na religião não é um fenômeno recente. Ao longo da história, as diferentes mídias disponíveis em cada época – da imprensa escrita ao rádio e à televisão – moldaram e, muitas vezes, instrumentalizaram a compreensão e a prática religiosa para servir a objetivos específicos. A Reforma Protestante, por exemplo, foi impulsionada pela invenção da imprensa, que permitiu a disseminação rápida das ideias de Lutero.

Na era digital, essa influência se intensifica. As redes sociais, os blogs e os podcasts oferecem plataformas para a produção e disseminação de conteúdos religiosos por parte de indivíduos e grupos. Essa democratização da informação permite um diálogo mais amplo e diversificado sobre questões de fé. Por outro lado, ela também facilita a propagação de informações falsas e impulsiona a formação de bolhas ideológicas que reforçam visões estreitas, prejudicando o diálogo genuíno entre diferentes perspectivas religiosas.

Para além dos aspectos negativos, a mídia também pode ser uma ferramenta poderosa para a promoção do diálogo inter-religioso e da compreensão mútua. Programas de TV, documentários e filmes podem apresentar as diferentes tradições religiosas de forma respeitosa e informativa, contribuindo para a construção de uma sociedade mais plural e tolerante. No entanto, para que isso ocorra de maneira frutífera, é fundamental que os indivíduos desenvolvam um senso crítico aguçado para discernir as fontes confiáveis e construir uma compreensão teológica sólida e fundamentada.

A formação teológica séria deve ir além do consumo passivo de conteúdo midiático. A leitura aprofundada de textos teológicos clássicos, a participação em comunidades religiosas e o diálogo com especialistas são elementos essenciais para um aprendizado consistente e equilibrado. A superficialidade e a rapidez da informação digital não devem substituir a reflexão, a meditação e o aprofundamento necessário para a compreensão genuína da fé.

Este é apenas o ponto de partida para uma reflexão mais profunda sobre o impacto da mídia na compreensão da fé e da teologia. Ao longo das próximas semanas, analisaremos com mais detalhe como a mídia tem transformado a prática religiosa, as distorções que ocorrem ao simplificar doutrinas complexas e a necessidade de uma reflexão crítica sobre as informações que consumimos. Nosso objetivo é não apenas compreender melhor esses fenômenos, mas também sugerir caminhos para uma prática cristã mais sólida e fundamentada, capaz de resistir à superficialidade e à comercialização do sagrado.

 


segunda-feira, 24 de março de 2025

Bereshit Bara - o eterno amor criador de Deus

Por Jânsen Leiros Jr. 

Bereshit bara Elohim

  • Hebraico: בְּרֵאשִׁית בָּרָא אֱלֹהִים
  • Grego (Septuaginta): ν ρχ ποίησεν Θες
  • Inglês: In the beginning, God created
  • Português (versão RA): No princípio, criou Deus 

Na teologia cristã, a primeira palavra do Gênesis, Bereshit (בְָרֶאִשִׁיתְ), carrega um significado profundo e essencial para a compreensão da criação. Traduzida geralmente como "No princípio", Bereshit não marca um ponto temporal específico, mas, em vez disso, indica uma intencionalidade divina: um desejo que brota do amor pleno de Deus em Sua eternidade, onde não há noção de tempo, mas um querer divino. Deus, sendo eterno, não é limitado pelo tempo. Assim, o que se revela aqui não é apenas um "início", mas uma vontade divina que se cumpre imediatamente — não por mágica ou sem processos, mas porque nada pode impedir o querer de Deus de se realizar. "Querendo Eu, quem impedirá?" (Isaías 43:13). Não há distância entre o querer e a realização, mas isso não significa ausência de tempo ou processo; ao contrário, Deus age no tempo e em conformidade com ele, mas Sua vontade transcende o tempo, porque Ele é Senhor do tempo.

Santo Tomás de Aquino define Deus como ipsum esse subsistens (o próprio Ser subsistente), enfatizando que Ele é a fonte última e razão de toda existência. A doutrina da creatio ex nihilo (criação a partir do nada) ensina que Deus não utilizou uma matéria pré-existente, mas trouxe a realidade à existência pelo poder de Sua Palavra: "Bereshit bara Elohim..." ("No princípio criou Deus...") — Gênesis 1:1.

No entanto, a questão que se coloca é: se Deus criou todas as coisas do nada, como se dá essa criação? E mais importante, qual a motivação divina para tal ato? A teologia cristã propõe que a criação é, antes de tudo, um ato de amor. Deus, sendo amor em Sua essência (1 João 4:8), cria não por necessidade, mas por um transbordamento de Sua plenitude. Nesse contexto, Bereshit não marca apenas um "início", mas revela um movimento de doação. Deus, que nada precisa, escolhe criar para compartilhar com a criatura o Seu amor.

Ao deslocarmos a compreensão para o "querer" de Deus, entendemos que a criação não está subordinada a um processo temporal ou a uma causalidade física, mas sim a uma vontade divina plena. Em Deus, não há intervalo entre o querer e sua concretização, porque Ele não está limitado pela cronologia. No entanto, isso não significa uma criação instantânea sem processos ou sem o prazer de Deus na construção do momento certo. Deus se alegra nos processos que Ele mesmo institui, respeitando as condições adequadas e o instante plenamente oportuno para Sua ação. A criação, portanto, é um ato de liberdade plena, mas também uma ação ordenada, que respeita as condições estabelecidas por Deus, sem que isso implique em limitações para Ele. A criação não é fruto do acaso, nem de uma sequência de causas físicas ou químicas. O que importa não é o "como" ou o "quando" da criação, mas o "querer" divino, que se realiza sempre no momento ideal, segundo o Seu plano perfeito.

Essa compreensão amplia a visão teológica do relato de Gênesis. O texto mosaico não tem a preocupação de descrever o mecanismo da criação, mas sim sua motivação. A criação não é apenas um evento cósmico; é um ato de amor, um gesto de doação plena do Criador. Deus não apenas chama a existência, mas chama para a comunhão. Seu amor transborda na criação como um convite para a criatura participar de Sua plenitude. Esse padrão de doação se repete ao longo da revelação bíblica: Deus se entrega na criação, na aliança com Seu povo e, finalmente, na encarnação de Cristo, que é a suprema expressão do amor divino. "Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho unigênito..." (João 3:16). A criação, portanto, não é um fim em si mesma, mas o início de uma história de amor, que culmina na redenção e na comunhão eterna entre Criador e criatura.

Bara: A Criação como Ato de Doação Divina

Se Bereshit nos introduz ao princípio absoluto, Bara nos revela a essência do ato criador de Deus. Diferente do verbo hebraico que poderia ser traduzido como "fazer" ou "moldar", Bara é usado exclusivamente para Deus e significa "trazer à existência" algo que antes não existia. Isso nos leva a uma questão fundamental: de onde vem tudo o que existe?

A resposta, dentro da compreensão do amor divino, está na própria essência de Deus. Ele não apenas decide criar; Ele se doa para que a criação exista. Isso significa que não há uma matéria preexistente fora de Deus da qual o universo pudesse ser formado. O "nada" absoluto, como imaginamos, não poderia coexistir com Deus, pois Ele é o próprio ser absoluto, e nada poderia existir além d'Ele antes do ato criador. Assim, quando Deus cria, Ele não usa algo externo a Ele; Ele concede ser àquilo que antes não existia, e o faz como um ato de amor.

Essa compreensão nos afasta do panteísmo, que dilui Deus na criação, e nos aproxima de uma visão panenteísta ajustada: tudo vem de Deus, mas Deus não é tudo. A criação é uma extensão do Seu amor, não uma redução de Sua essência. Ele não se esgota ao criar; ao contrário, Ele manifesta sua plenitude ao doar-se.

Esse princípio se torna ainda mais claro quando olhamos para a progressão da criação. Deus não apenas cria seres inanimados, mas também doa autonomia às suas criaturas: "árvores com frutos, e dentro dos frutos suas sementes" (Gn 1:11), um ciclo perpétuo de vida que não prescinde da fonte, mas também não é um prolongamento absoluto dela. O mesmo ocorre com o ser humano, dotado da capacidade de gerar vida, não como um criador absoluto, mas como um participante desse amor criador.

O ato criador de Deus, então, não é um mero gesto de poder, mas um autoesvaziamento amoroso. Se a criação já carrega em si um vislumbre desse amor doador, a encarnação de Cristo será a expressão máxima desse princípio. Aquele que "trouxe à existência" o universo através de Bara também se "esvazia" para restaurá-lo (Fp 2:7).

Assim, a criação e a redenção se tornam um único ato de amor: Deus que doa ser às criaturas para que elas existam, e Deus que se doa a Si mesmo para que elas voltem a Ele. O amor não poderia ser um mandamento imposto; ele é uma resposta natural ao amor que primeiro nos criou.

Dessa forma, Bara não é apenas um verbo da criação; é a expressão da própria natureza de Deus: Aquele que, por amor, doa-se para que tudo o mais exista.

A Criação Consumada no Amor: O Propósito Final de Deus

Portante, se em Bereshit compreendemos a intencionalidade divina e em Bara entendemos a criação como um ato de doação total de Deus, então a plenitude dessa obra encontra sua expressão final na cruz, no momento em que Cristo declara: "Está consumado" (João 19:30).

Não se trata de dizer que a criação se encerrou ali no sentido cronológico, mas sim que ali se revelou sua finalidade: o amor doador de Deus encontrou sua realização suprema na entrega de Cristo. O mesmo Deus que trouxe todas as coisas à existência por um ato de amor, agora se doa plenamente para redimir sua criação, restaurando nela a relação perdida pelo pecado.

Ao longo da história bíblica, vemos um movimento progressivo no qual Deus não apenas cria, mas se envolve, sustenta e direciona sua criação para um ponto de culminância. Em Cristo, Deus não apenas "fala" com sua criação, mas entra nela, assumindo sua própria substância para resgatar aqueles que formou. Esse movimento não contradiz Bara, mas o exalta: a criação começa no amor doador de Deus e se consuma quando esse amor atinge sua expressão máxima na redenção.

A ascensão de Cristo e a descida do Espírito Santo completam esse ciclo, pois, assim como Deus deu autonomia à criação no princípio, agora Ele concede à humanidade a possibilidade de corresponder livremente ao Seu amor. O Espírito não apenas confirma a obra de Cristo, mas também faz dela uma realidade interior na vida dos que creem, conduzindo a criação não apenas ao seu começo, mas ao seu propósito final.

Dessa forma, a frase "Está consumado" ressoa em harmonia com "No princípio criou Deus". O ato de criação e o ato de redenção não são distintos em essência, mas sim manifestações do mesmo amor eterno que é a própria essência de Deus. Tudo foi criado para que o amor divino se derramasse, e tudo se consumou para que esse amor fosse plenamente recebido.

Assim, ao refletirmos sobre a criação, vemos o amor como a força motriz e fundamental que sustenta tudo. E é justamente esse amor, ao longo da história, que nos convida a uma resposta contínua, até o momento em que toda a criação se unirá novamente ao Criador.

Criação e Doação: Deus como Fonte e Matéria da Existência

O conceito de criação remete a reflexões filosóficas antigas, como o Apeiron de Anaximandro, que representa um princípio ilimitado e primordial. No entanto, ao contrário da filosofia grega, a visão bíblica revela um Criador pessoal, cuja ação é intencional e amorosa.
Atos 17:28 declara: "Porque nele vivemos, nos movemos e existimos". Isso implica que Deus não é apenas a origem de tudo, mas também Aquele que continuamente sustenta todas as coisas. Contudo, a tradição cristã rejeita o panteísmo (a ideia de que tudo é Deus). A criação é distinta do Criador, embora dependa d'Ele para continuar existindo.
Orígenes e Gregório de Nissa propuseram que a criação é uma manifestação dos atributos divinos, sem que Deus perca Sua transcendência. O Logos (João 1:1) é a ponte entre Deus e o mundo criado, a expressão divina que permite a existência e a redenção. Nesse sentido, Bereshit não indica apenas um começo temporal, mas um princípio sustentador e permanente, um ato contínuo de amor e doação.

Deus se Doando na Criação: Um Amor Kenótico

Se a criação é um ato de amor, então Deus, ao criar, está se doando. Esse princípio se encontra na base do conceito de kenosis (autoesvaziamento), que atinge seu clímax na Encarnação de Cristo (Filipenses 2:7). Deus, que nada necessita, escolhe dar-Se ao mundo, sustentá-lo e, mais tarde, entrar nele na pessoa de Jesus Cristo.
Esse amor desapegado também encontra um paralelo no conceito judeu do Tzimtzum, da tradição cabalística: Deus, para criar, "contrai" Sua presença infinita, permitindo que algo além d'Ele venha à existência. Embora essa não seja uma doutrina cristã, ela oferece um paralelo interessante para entender a kenosis divina: um Deus que, por amor, "abre espaço" para que outros seres possam existir e escolher livremente amá-Lo.

O Amor que Sustenta e Convida

Deus não apenas cria e abandona a criação; Ele a sustenta continuamente (Colossenses 1:16-17). Esse sustento não é um mero mecanismo impessoal, mas um ato de relação e compromisso. O amor divino não é coercitivo, mas convidativo. Deus doa a existência, a liberdade e a graça, chamando o ser humano a corresponder a esse amor.
A parábola do filho pródigo (Lucas 15:11-32) ilustra essa relação. O pai concede ao filho sua parte da herança, permitindo-lhe sair e experimentar as consequências de suas escolhas. No entanto, quando o filho retorna, o pai o recebe com amor incondicional. Assim é Deus: um Criador que dá a existência, respeita a liberdade de Suas criaturas, mas permanece pronto a acolhê-las de volta em comunhão.

Conclusão: O Amor como Princípio e Fim

A criação é a primeira grande expressão do amor de Deus. Bereshit revela um princípio não apenas de tempo, mas de intencionalidade amorosa. Deus não apenas criou, mas sustenta, guia e chama Sua criação ao retorno para Si.
Se a criação nasce do amor e é sustentada pelo amor, então o destino final também é o amor: a plena comunhão com Deus. Como afirma Agostinho: "Nos criaste para Ti, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em Ti" (Confissões, I,1). Se fomos criados por amor e para o amor, só nele encontraremos nossa plenitude. Bereshit não é apenas um princípio, mas um convite eterno ao relacionamento com o Criador.

Com isso, encerramos esta primeira parte sobre a criação. Agora, podemos avançar para a compreensão dos dias da criação dentro desta mesma linha de raciocínio, aprofundando como cada momento do gênese reflete esse movimento doador e redentor de Deus.

 

 

 

 

 


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