quinta-feira, 30 de abril de 2015

Pensar não impede orar




“ Não estudamos para crer. Estudamos porque cremos."
Anselmo de Cantuária; 1033 - 1109
        

“é preciso "salvar a alma e a mente". A conversão não dissocia os aspectos espiritual e mental. Se por um lado, "O mundo precisa de filosofia", como afirmou o filósofo Eduardo Prado de Mendonça, por outro, como disse o teólogo Joaquim Cardoso de Oliveira, "O mundo necessita urgentemente de teologia"... Precisamos integrar filosofia e teologia.”
Filosofia e Cosmovisão Cristã - Moreland & Graig - Edições Vida Nova;
Prefácio à edição brasileira

Não faz muito tempo... Pensando bem, faz sim. Mas não importa. A verdade é que ainda vive forte em minhas lembranças, a quantidade de vezes que fui parar na cadeira do pensamento. E eu tinha duas. Uma em casa e outra na escola.

A cadeira de casa, pra ser bem sincero, freqüentei pouquíssimo. Em compensação, a da escola foi uma grande companheira nos primeiros anos de minha vida escolar. Lugar quase cativo, para quem, embora não cometesse qualquer indisciplina grave, não parava de falar durante a aula, atrapalhando tanto a professora que tentava explicar a matéria, quanto os demais colegas que tentavam copiar o que era colocado no quadro. Essas aventuras duraram até o final da quarta série primária, atual Ensino Fundamental I, quando nos despedimos quase todos da querida tia Terezinha. Nunca mais a vi... Saudades.

Mesmo que nunca mais a tenha freqüentado, e ainda que a maturidade me tenha silenciado um pouco - só um pouco, a verdade é que a cadeira do pensamento, antes um castigo para minha tagarelice, tornou-se uma agradável pausa para organizar as idéias, que ao longo do dia vão se acumulando e se acomodando como podem, até que sejam guardadas todas em gavetas imaginárias do cérebro. Seria tão bom se fosse simples assim... É claro que como qualquer um, tenho idéias espalhadas pelos diversos corredores da mente, algumas certamente esquecidas e abandonadas em um canto obscuro qualquer.

Assim, a cadeira do pensamento tornou-se, para mim, um hábito de rever atitudes, reformular expressões, pesar atitudes, avaliar crenças, analisar sonhos e medir pretensões. Com o tempo, houvesse ou não lugar onde sentar, o processo de voltar a fita incorporou-se como hábito quase instintivo, uma tarefa internalizada; pensar naquilo que penso.

Aceito se alguém disser que pensar no que se pensa, é o mesmo que voltar a mastigar o que já se engoliu. - Que nojo! Até dirão alguns. Mas não importa, porque é exatamente esse o princípio. Se não me engano, vacas, girafas e outros animais realizam esse movimento em seus processos digestivos. Chama-se ruminação. Obviamente muitos já devem ter ouvido ou lido a respeito. Não teceremos detalhes aqui.

Mas me perdoem os nauseados de plantão, que ainda devem ter diante dos olhos a imagem de um ruminante mastigando. Pensar no que se pensa nada mais é do que ruminar conceitos, mastigar outra vez pensamentos não digeridos totalmente. É trazer à elucubração toda e qualquer idéia que, para ser plenamente entendida, necessite de melhor e mais profunda investigação. É retornar à mente afirmações que ainda não fizeram sentido, ou questionamentos ainda não respondidos satisfatoriamente.

Se quisermos brincar com fogo e ainda mexermos em casa de marimbondos, podemos aprofundar a questão, dizendo, a grosso modo, que pensar no que pensamos é o ato primordial do exercício filosófico. Ou seja, o filósofo é aquele que se dispõe a pensar naquilo que pensa ou que pensam, buscando entender porque se pensa isso em vez daquilo outro, ou porque se pensa em lugar de não se pensar em nada. O filósofo se dedica a investigar e tentar explicar as grandes questões da humanidade, pensando profundamente em tudo que popularmente se pensa corriqueiramente.

Ora, aqueles que foram criados por adultos acostumados aos ensinos proverbiais, devem lembrar que seus pais ou avós diziam: - Cabeça vazia, oficina do diabo. Lembram? Por isso vamos descartar, na partida, a hipótese de não pensarmos em nada, em lugar de pensarmos em alguma coisa. Até porque não me dediquei a escrever até aqui, para simplesmente desligar o cérebro e ir dormir. Resta-nos então o exercício de pensarmos no porque pensamos nisso em lugar daquilo outro, elucubrando sobre tudo que sustenta nossas escolhas e apontam nossas direções.

O exercício filosófico, portanto, a despeito do que muito se dissemina em diferentes e variados círculos cristãos, sejam eles igrejas, denominações ou seminários, representa a possibilidade de orientar a racionalidade daquilo em que se acredita, não apagando a fé, mas apontando para seus motivos. Tal exercício ampliará oportunamente a compreensão da revelação de Deus, e de sua relação com a humanidade, em contextos e cenários suplementares, que reforçarão o entendimento de suas manifestações e de sua condução da história.

A filosofia, portanto, como instrumento que pode nos auxiliar a pensar em tudo aquilo que cremos, pode e será extremamente útil na construção de uma vida devocional mais consistente, alargando, inclusive, o grau de percepção da vontade de Deus e de sua providência ao longo da existência humana. A filosofia, tanto como exercício investigativo, quanto no âmbito exaustivo de suas disciplinas, é de fundamental importância à saúde e vitalidade de uma vida cristã bem desenvolvida, e religiosamente consistente.


“... a nossa adoração a Deus é mais profunda precisamente em razão de, e não apesar de, nossos estudos filosóficos... A fé cristã não é uma fé apática, cerebralmente morta, mas uma fé viva e inquiridora. Como Anselmo propôs, nossa é a fé que busca compreensão."
Filosofia e Cosmovisão Cristã - Moreland & Graig - Edições Vida Nova

É necessário, portanto, abandonar o hábito recorrente de se demonizar o pensamento filosófico. Precisamos deixar de considerar o raciocínio um perigo, ou um inimigo mortal para a fé. Muito pelo contrário. A fé se robustece à medida da descoberta continuada do amor de Deus e de sua multiforme graça, desvelada por sua providência que age insofismavelmente por todo o mundo habitável.

Precisamos, assim, de uma visão holística de mundo. Uma conexão com a vida real que se vive em uma dimensão real, onde habitam aqueles que dependem de nossa capacidade de influenciar positivamente a sociedade. Não com acusações, mas com exemplos contundentes. Não com críticas, mas com vidas consistentes. Não com chavões, mas com argumentos que lhes possam levar a compreensão do amor de Deus, em Cristo Jesus, nosso Senhor. Afinal, pensar jamais nos impedirá de orar.


No próximo encontro, falaremos dos desafios da igreja na atualidade. Um forte abraço a todos e até lá.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Fardos ainda mais pesados. Jugos insuportáveis!





25 Naquele tempo falou Jesus, dizendo: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos. 26 Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado. 27 Todas as coisas me foram entregues por meu Pai; e ninguém conhece plenamente o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece plenamente o Pai, senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar.  

28 Vinde a mim, todos os que estai cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. 29 Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para as vossas almas. 30 Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo e leve.”
                  Mateus 11:25-30

Estamos diante de um dos convites mais interessantes e revolucionário que Jesus poderia fazer àqueles que buscavam ouvir seus ensinamentos e instruções. Sim, revolucionário, porque o fez após ter declarado que Deus, o Pai, era o único capaz de conhecer plenamente o Filho, assim como o Filho era o único capaz de revelar o Pai a quem Ele quiser. Essa relação Pai e Filho afirmada por Jesus, revelando-se mutuamente diante dos olhos maravilhados de seus ouvintes, jamais fizera parte sequer do imaginário religioso do povo judeu.

No contexto desse convite, a narrativa de Mateus parágrafos acima, nos apresentou Jesus lamentando pelas cidades onde, não obstante ter operado ele mesmo muitos milagres, não houve arrependimento em seus habitantes. Sua comparação com cidades sabidamente alvo da ira de Deus pelo pecado, ressaltou o grau de "cegueira espiritual" em que se encontrava suas populações. Eles se fizeram duros em seus corações, e não compreenderam quem era aquele que estava diante de seus olhos, falando continuamente aos seus ouvidos, mentes e corações.

Em seguida Jesus faz uma oração agradecendo a Deus, que encobre a verdade aos que se intitulam sábios e entendidos, e a revela aos pequeninos. Isso sem dúvida confrontou os mestres da época, pois eles eram a referência de sabedoria e entendimento. Os rabinos se encarregavam do ensino das escrituras aos jovens, bem como de seu conjunto de tradições e costumes religiosos, pretensamente sustentados todos por suas interpretações inquestionáveis da Torá, o Livro Sagrado dos judeus.

- Quem é esse que nos chama de cegos? Devem ter pensado muitos dos ouvintes de Jesus. - Como pode dizer que esses iletrados e sem conhecimento da lei e dos profetas, podem receber maior revelação do que nós, que a tudo seguimos estritamente conforme tradicionalmente interpretamos? Sim, porque o orgulho que ostentavam de seus conhecimentos e vida religiosa, os enchia de vigor e soberba. Consideravam-se tão inatacáveis em seus comportamentos e reputações, que Jesus se utiliza desse  comportamento, para ensinar que, diferentemente, o indivíduo deve ser sincero e contrito diante de Deus, comparando as orações do publicano e do fariseu.

Era comum naquele tempo, que cada rabino tivesse seu grupo de discípulos, a quem ensinava a Torá conforme suas particulares interpretações,  e outras importantes tradições religiosas judaicas. A esse conjunto de instruções, comportamentos e ritos requeridos pelo rabino a seus discípulos, chamava-se jugo. E tradicionalmente, tendo cada rabino o seu jugo particular, era de entendimento comum que quanto mais e maiores fossem as exigências de um rabino, melhor e mais correto, ou pelo menos mais capacitado era tal rabino. Resumindo, quanto mais pesado fosse o jugo requerido, melhor e mais prestigiado se fazia o rabino.

Temos vivido dias difíceis, em que diversos e variados movimentos e ondas de ideologias surgem, cada qual trazendo novidades e uma série de particulares interpretações do texto bíblico, oscilando entre liberalismo e ascetismo desenfreados. Ora banalizando conceitos historicamente arraigados da ética cristã, ora determinando ritos e procedimentos que nada mais são, do que amarras a que pretendem laçar seguidores de boa fé, convencendo-os a carregar pesados fardos e questionáveis jugos. E pior, arrastam multidões a um dualismo maniqueísta, em que seus fiéis ficam crescentemente confusos quanto a forma de agir e quanto ao conteúdo em que acreditar, relativamente ao evangelho e suas relações pessoais e particulares com Deus.

Vinde a mim, diz o convite de Jesus. Deixem de lado tudo isso que tentam impor a vocês, como sendo a revelação de Deus. Eu sou a revelação de Deus. Somente Eu o posso revelar. Nenhum ritual o revela. Nenhum modo de vida ou receita de bolo nos fará conhecer Deus. Por mais mirabolante que sejam tais modelos e regras, jamais poderão apresentar o Pai, como o Filho o revela. Vinde a mim todos os cansados de seguir regras, listas, modelos, formas, e oprimidos por elas. Os que se sentem sobrecarregados com tantos afazeres religiosos, tantas atividades, tantos compromissos, que não produzem nada além de mero ativismo; incapazes que são de revelarem o Pai e o seu amor.

Jesus nos chamou à paz. Seu convite não foi um engano, uma forma de nos atrair, para depois nos amarrar a conteúdos robotizantes e vazios. Pois sou manso e humilde de coração. Aliás, bem-aventurados os mansos e os humildes de coração, havia Ele mesmo dito poucos capítulos atrás, nesse mesmo evangelho. Ao humilde de coração não cabe ufanar-se de sua condição de salvo. Não cabe a atitude cotidiana do eles e nós, que na prática nos aparta e isola daqueles a quem deveríamos amar e estender a mão, acolhendo-os como nos ensinou o próprio Jesus. Até exércitos de "soldados de Cristo" estão criando em algumas igrejas mundo afora.

Eu pergunto; quem nos enganou? Jesus que nos chamou à paz, que nos ofereceu um fardo leve e um jugo suave, ou esses loucos homicidas, que de tempos em tempos surgem na história da humanidade, dando vazão às suas loucuras em nome de Deus? Cercam-se de proteções e convenientes reverências em uma espiral crescente, erguendo verdadeiros edifícios sobre areia movediça. Fazem de si mesmos semi-deuses, incitando milhares a lutarem, a marcharem , a guerrearem uma batalha que se inicia nas regiões celestiais, mas que terminam separando vizinhos, colegas de trabalho, parentes de uma mesma família, e amigos de anos de convívio e relacionamento. A má notícia é que enganarão a muitos, se possível, até os escolhidos.

Afinal, de quem é que somos discípulos? A que evangelho estamos seguindo? O que é que temos pretendido levar aos corações das gentes sofridas e confusas desse mundo caótico e sem Deus? Somos nós solução, ou parte do problema? Somos nós sal que conserva o alimento para que não apodreça, ou temos nós mesmos colaborado na putrefação do que temos apresentado à sociedade? Temos sido luz que orienta o caminho e permite enxergar a salvação, ou não temos passado literalmente de fogo de palha?


Que o Pai que conhece o Filho, bem como o Filho que nos revela o Pai, tenham misericórdia de nós, e nos inspirem a ensinar o evangelho transformador, da multiforme graça de Deus. Para que o mundo veja em nós um Reino dos céus onde Deus domina e reina. E que não sejamos para esse mesmo mundo, apenas um outro lado qualquer, de uma mesma falsa moeda.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Manso, o mais forte e corajoso





“Bem-Aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra."
     Mateus 5:5 - JFA


1 Não te indignes por causa das más pessoas; nem tenhas inveja daqueles que praticam a injustiça. 2 Pois eles em pouco tempo secarão como o capim, e como a relva verde logo murcharão. 3 Confia no SENHOR e pratica o bem; assim habitarás em paz na terra e te nutrirás com a fé. 4 Deleita-te no SENHOR, e Ele satisfará os desejos do teu coração. 5 Entrega o teu caminho ao SENHOR, confia nele, e o mais Ele fará. 6 Ele exibirá a tua justiça como a luz, e o teu direito como o sol ao meio-dia. 7 Aquieta-te diante do SENHOR e aguarda por Ele com paciência; não te irrites por causa da pessoa que prospera, nem com aqueles que tramam perversidades. 8 Deixa a ira e abandona o furor; não te impacientes. Não te inflames, pois assim causarás mal a ti mesmo. 9 Pois os malfeitores serão exterminados, mas os que depositam sua esperança no SENHOR herdarão a terra."
     Salmos 37:1-9 - KJA

A terceira bem-aventurança ecoa o livro de Salmos em seu capítulo 37, que é um hino da literatura sapiencial hebréia. Mas ao acrescentar a repetição de sua essência entre as palavras iniciais do sermão do monte, bem como incluir tal menção entre os que choram e os que têm fome e sede de justiça, Jesus dá novo vigor às pretensões de Davi ao dizer descansa no Senhor e espera n'Ele.

Alguns estudiosos sugerem que a mansidão é um ato de gentileza ou de cordialidade extrema, motivado por uma abnegação dos impulsos naturais de querer chamar a atenção para si, ou fazer valer os próprios direitos. Tal entendimento pode ter influenciado algumas traduções, que em lugar de manso utilizaram humildes. Mas me parece que essa perspectiva é limitada, se utilizarmos o texto de salmo como pano de fundo, e muito mais se contextualizarmos a expressão em meio as bem-aventuranças, exatamente como se encontra.

Seguindo a fluidez do texto, vemos que os pobres, aqueles que se percebem carentes de Deus e de seu socorro, que se entendem sem recursos, choram sua condição de penúria espiritual. Lamentam e pranteiam não só como necessitados e dependentes, mas também e principalmente porque lamentarão sempre e prantearão até o fim. Então, diante dessa condição e encarando tal realidade, o indivíduo pode escolher; ou se rebela, tentando tomar sobre os próprios ombros o encargo de mudar sua sorte, já que tantos outros vivem de forma diferente, ou decide, por confiança insofismável, esperar em Deus e em sua justiça. O manso é aquele que decide confiar em Deus, embora toda a circunstância desfavorável.

O indivíduo olha para um lado e vê a injustiça se prolongando em dias. Olha para outro, e vê os malfeitores enriquecendo às custas de sua perversidade. É claro que lhe passa pela cabeça que manter-se probo e reto pode lhe privar de uma condição melhor para si mesmo e os que dele dependem para existir; sua família. Mas o salmista adverte, não inveje o homem injusto. Mais ainda. Confia e espera em Deus; descansa. Os que esperam herdarão a terra.

Notem que essa promessa é contundente mas conflitante, principalmente no contexto de um povo subjugado pelo domínio romano. Receber a terra por herança, equivale a recebê-la por direito sem precisar lutar por ela. Logo os judeus, acostumados a guerras e a se defenderem de nações inimigas por todos os lados. O que Jesus está propondo é larguem suas armas. Não confiem nelas para estabelecerem a pretensa justiça. Se dependem de Deus e choram por suas sortes, dependam e chorem até o fim, sendo manso e confiantes de que é Ele os fartará daquilo de que são carentes. Não reajam, mas confiem.

Falar aqui em mansidão tinha como propósito a sustentação do restante do discurso. Oferecer a outra face, caminhar duas milhas se obrigado a uma, não são atitudes senão de mansidão. Atitudes daqueles que escolhem ser mansos, em vez de agirem em seu próprio favor. Mais tarde Jesus irá se oferecer como cordeiro manso ao sacrifício. Ele será manso diante da guarda que o capturará no Getsêmani, diante do Sinédrio reunido para julgá-lo, e diante de Pilatos que o interrogará. Por todo o seu martírio, Jesus exercerá convicto sua mansidão, tendo em foco o propósito de Deus em tudo que ocorrerá à frente, e a providência divina em seu socorro final. Afinal, ele será o primeiro entre muitos que herdarão a terra.


A mansidão é, portanto, o ato positivo em direção à confiança. É uma ação. Alguns podem confundir a esperança com um ato covarde de não enfrentamento do inimigo. Mas nada disso. O manso é antes aquele que por confiança e esperança guerreia consigo mesmo, para em vez de agir precipitadamente em seu favor, aguardar em Deus, certo de seu cuidado e de sua providência. O manso não é um covarde que teme a reação. É aquele que corajosamente espera confiante no amor de Deus. Sua satisfação e o seu prazer está em esperar pela ação do Pai. Os mansos, sem luta, herdarão a terra.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Esclarecendo a Teologia... Ou não - Parte 2





“Ó Senhor... Seja-me permitido enxergar a tua luz, embora de tão longe e desta profundidade. Ensina-me como procurar-te e mostra-te a mim que te procuro. Pois, sequer posso procurar-te se não me ensinares a maneira, nem encontrar-te se não te mostrares. Que eu possa procurar-te desejando-te, e desejar-te ao procurar-te, e encontrar-te amando-te, e amar-te ao te encontrar”
Anselmo de Cantuária - 1078 - destaque; em O que é Teologia?
Coleção Teologia ao Alcance de Todos - MK Editora

Seguindo nosso posicionamento explicitado no texto anterior, e embora consideremos teologia como o ato simples mas voluntário de pensar em Deus, Ele mesmo, Deus, não pode ser objeto material de nosso labor teológico, uma vez que nenhum dos nossos sentidos o pode limitar ou definir nem a forma, nem a essência. Antes, o objeto do empreendimento teológico é a revelação de Deus, onde e como essa possa ser encontrada, bem como sua relação com a humanidade, também expressa e registrada em parte das evidências de sua revelação.

Anselmo de Cantuária, autor do texto acima em destaque, parecia entender isso perfeitamente. Ao pedir para enxergar a luz de Deus e não o próprio, sabe que d'Ele apenas a manifestação lhe seria possível perceber, dada a profunda e intransponível distância que os separava. Mas em maior relevância está o entendimento de que a iniciativa de se apresentar emana do próprio Deus, pois mostra-te a mim que te procuro. O caminho de tal conhecimento também parece depender da orientação do Procurado, pois sequer posso procurar-te se não me ensinares a maneira. O labor teológico se exaure na e da revelação de Deus, e essa atende aos seus propósitos.

2.  Mas então, como se labora uma teologia?

Ora, se Deus por sua magnificência não pode ser nosso objeto de estudo, e sua revelação e relação com a humanidade passa a ser em lugar d'Ele nosso material de nossa investigação, onde procurar tal revelação e os indícios dessa relação, se é que há, com a humanidade?


“Para o cumprimento de sua missão, o teólogo, como um investigador, se baseia em evidências a fim de formular suas hipóteses.”
Elisa Rodrigues; em O que é Teologia?
Coleção Teologia ao Alcance de Todos - MK Editora

É importante aqui fazer duas ressalvas pertinentes para a manutenção da coerência de nossa tarefa. A primeira diz respeito ao exercício teológico encontrado na história de diversas outras civilizações, tanto antigas quanto contemporâneas, importantes e altamente colaborativas em nossa linha de raciocínio. Tais elaborações conceituais serão temporariamente deixadas à margem de nosso exercício, apenas por um momento, por conta da especificidade e concentração no labor teológico cristão por nós empreendido. Considerá-los agora poderia nos dispersar a compreensão e nos obrigaria a abrir um leque muito amplo de possibilidades que nos faria perder o foco. Mas as veremos com especial atenção em trabalhos futuros, e como as deixaremos às margens de nosso exercício, poderemos lançar-lhes mão sempre que oportuno.

A segunda ressalva, e essa diretamente ligada ao que diz o último destaque, faz-se importante pelo significado costumeiro da palavra evidência em nosso contexto coloquial, que difere flagrantemente do ali utilizado. Normalmente a expressão "é evidente" pode ser substituída por "é lógico", ou "sem dúvida", dando-nos a impressão obvia de que estamos tratando de algo indiscutível, insofismável, que se prova irrefutável por assim dizer. Porém no texto em destaque, evidência está se referindo a material sobre o qual se poderá exercer investigação, tendo o mesmo um sentido muito mais voltado ao entendimento forense. O que de certa forma é claramente muito mais adequado ao nosso objetivo.

Assim, nos voltamos ao problema inicial. Quais seriam as evidências sobre as quais poderíamos exercer a tarefa de pensar em Deus, através de sua revelação e de sua relação com a humanidade? Como identificar que um determinado fato ou circunstância é uma revelação, ou evidência da relação da humanidade com a divindade? Que características nos dão indícios de que uma ou outra ocorrência seja uma revelação de Deus, ou um ato relacional com sua criação? Uma vez que fizemos a opção temporária de isolar outras percepções teológicas, podemos nos concentrar no texto bíblico que deverá nos auxiliar preliminarmente.


19 Porquanto, o que de Deus se pode conhecer, neles se manifesta, porque Deus lho manifestou. 20 Pois os seus atributos invisíveis, o seu eterno poder e divindade, são claramente vistos desde a criação do mundo, sendo percebidos mediante as coisas criadas, de modo que eles são inescusáveis;”
Romanos 1:19-20 - JFA


1 Os céus revelam a glória de Deus, o firmamento proclama a obra de suas mãos. 2 Um dia discursa sobre isso a outro dia, e uma noite compartilha conhecimento com outra noite. 3 Não há termos, não há palavras, nenhuma voz que deles se ouça; 4 entretanto, sua linguagem é transmitida por toda a terra, e sua mensagem, até aos confins do mundo.”
Salmos 19:1-4a - KJA

A primeira evidência que destacamos, entre algumas com que podemos trabalhar, considerando as pistas fornecidas pelos próprios autores bíblicos, é a natureza criada. Há quem entenda essa evidência como pouco contundente para revelar Deus em todas as suas possibilidades e atributos, uma vez que pouco se pode afirmar além de seu poder criador. Paulo, contudo, parece não só discordar dessa tese, como demonstra ser partidário de que o que se revela na natureza criada é mais do que suficiente para que alguém conheça Deus e lhe preste culto, sendo possível, portanto, reconhecer-se a divindade revelada.

Lançando mão dos entendimentos das civilizações antigas, encontraremos eco dessa percepção natural da divindade revelada. A história desses povos está repleta de divinizações de fenômenos naturais e de elementos da natureza, bem como de animais e tudo o mais que estivesse fora do ser humano. Um primeiro mas muito importante raciocínio de que, fosse a divindade o que fosse, ela estaria fora do homem - um ser totalmente outro. Ora, se tais civilizações eram capazes de prestar culto a esses ídolos divinizados aos quais atribuíam o poder divinal, Paulo entendia que igual caminho poderia ser trilhado na direção de Deus. Até porque, tal revelação está disponível e foi a única evidência à existência de Deus, por muito mais tempo que outras revelações e evidências, que posteriormente vieram somar no processo de auto-revelação divina.

Assim como Paulo e bem antes dele, o salmista assistia em seu cotidiano a declaração da glória em suas obras manifestas. Ainda que sem qualquer expressão, voz ou palavra, a criação revelava ao devotado rei Davi, o Deus que a criou, sendo ela mesma mensagem suficiente para todos os povos e nações, em qualquer canto do planeta, até os confins do mundo. Em nosso artigo A Relevância de um Deus Criador (aqui mesmo no blog), fazemos alusão sobre a importância basilar que o conceito do Deus Criador tem em todo o processo que chamamos de labor teológico.

Aceitando portanto a natureza criada como evidência primeira e suficiente de revelação de Deus e de seus atributos, ou pelo menos de grande parte dele, que outras evidências poderíamos utilizar nesse árduo, porém delicioso empreendimento, no caminho do conhecimento de Deus? Voltemos ao texto bíblico, agora deixando a criação de lado.


97 Quanto amo a tua Lei! Sobre ela reflito o dia inteiro! 98 Os teus mandamentos me fizeram mais sábio que meus adversários, porquanto estão sempre comigo. 99 Tornei-me mais perspicaz que todos os meus mestres, pois meditei em tuas prescrições.100 Tenho mais discernimento que os anciãos, pois obedeço aos teus preceitos. 101 Desviei meus pés de todas as trilhas do mal para guardar a tua Palavra! 102 Não me afasto de tuas ordenanças, pois tu mesmo me ensinas. 103 Quão doces são os teus decretos ao meu paladar! Mais que o mel à minha boca. 104 Graças aos teus preceitos tenho entendimento; por isso, detesto todos os caminhos da mentira!”
Salmos 119:97-104 - KJA

Uma outra evidência bastante contundente e largamente utilizada é o próprio texto bíblico, que nos registra não só as manifestações e revelações de Deus, como o faz em pleno exercício da relação do próprio Deus com a humanidade. A Bíblia, inclusive, nos permite realizar variações de abordagem e método investigativo, ampliando a capacidade de argumentos na elaboração de todo o conteúdo teológico.

É importante ressaltar que não há muitos outros registros escritos sobre manifestações divinas, excetuando-se, como já dissemos acima, os trabalhos realizados por outras civilizações, aos quais nos voltaremos mais adiante. Mas mesmo eles, é importante que se diga, não apresentam circunstâncias muito diferentes das que encontramos no texto bíblico, em termos de possibilidade e variedade de entendimento sobre o que Deus revela de si mesmo, e de como se relaciona com a humanidade. E novamente nos vemos diante de uma coincidência providencial; que em sua grande maioria as civilizações registram um relacionamento da divindade com a humanidade, demonstrando que o labor teológico está na direção certa, ao tentar compreender o que essa relação é capaz de provocar na existência humana, se existem propósitos claros nessa relação, e se existem, quais são eles.

Concentrando-nos portanto na Bíblia, veremos mais adiante com detalhes, que ela possui um texto extremamente rico em registros de revelações e ensinamentos divinos, que podem ser extraídos concomitantes ou isolados, de um mesmo trecho ou de vários, sendo esses mesmos trechos, registros complementares entre si, e jamais contraditórios, que sustentam a quase totalidade das conclusões teológicas, lhes servindo de orientação racional, ainda que a fé lhe seja ambiente e tema recorrente.

Além dessas evidências, há alguns conteúdos multidisciplinares bastante colaborativos ao labor teológico. As pesquisas históricas, as descobertas arqueológicas e mesmo as especulações cientificas, podem servir de apoio ao elemento elucubrativo da tarefa teológica de pensar em Deus. Sempre lembrando que nenhum desses esforços precisam necessariamente esgotarem-se em si mesmos.

A teologia é por definição dinâmica, à medida que, ainda que trate do pensamento sobre o Imutável, trata do entendimento que se tem daquilo que é revelado sobre Ele. Por essa razão, talvez, identificamos tantas variações nos conceitos teológicos ao longo da história da humanidade. Não que Deus se altere ou varie existencialmente, mas exatamente porque a compreensão de sua revelação e relação com a humanidade, tanto influencia quanto sofre influência das diferentes áreas do conhecimento humano, bem como dos contextos históricos, sócio-econômicos, e até políticos em que estejam inseridos.

Assim, considerando tal dinâmica e sua capacidade de acompanhar a contemporaneidade do pensamento humano, a teologia não pode e nem deve intitular a si mesma e ao conjunto de suas conclusões, verdade absoluta de princípios insondáveis e inquestionáveis. Porque se algum efeito benéfico e direto o labor teológico precisa provocar naquele que o exerce, é a condescendência e a tolerância de quem sabe estar lidando com coisas muito mais elevadas, do que a sua pobre e fraca compreensão pode pretender maniatar em complexas definições. Nossa linguagem será sempre insuficiente para expressar a grandeza do que estudamos, ou mesmo para explicar aquilo em que cremos.

Por isso a comunicação da salvação se faz por testemunho e experiência; por isso ela se dá por conversão e não por convencimento. Mas isso já é assunto para outro artigo... 
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