segunda-feira, 22 de junho de 2015

Misericórdia quero. Mas quantos mais querem?


Por Jânsen Leiros Jr.


“Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia."
Mateus 5:7 - JFA

Seguindo nosso passeio pelo Sermão do Monte, chegamos à quinta bem-aventurança. E como passamos um tempo longo desde o último texto, penso ser importante recuperar alguns princípios que entendemos determinantes, na compreensão do que podemos considerar uma introdução ao discurso desse sermão.

Podemos começar relembrando que as bem-aventuranças formam um conjunto harmônico, que apresenta características correlatas da personalidade transformada, de todo aquele que sinceramente se devota a Deus. Não se trata de um faça isso logo aquilo, tão presente na literatura positivista dos mecanismos de auto-ajuda, mas sim de uma apresentação abrangente do caráter daquele que está em marcha para o Reino do Céus. É, na prática, a tradução desse caráter em atitudes relativas a si mesmo, dirigidas em benefício de terceiros, e por fim, que dizem respeito a seu posicionamento social diante daquilo que crê.

Se lembrarmos bem, ou se alguém preferir recorrer aos textos anteriores, as primeiras quatro bem-aventuranças diziam respeito àquilo que o sincero e devotado discípulo pensa e faz, de si e consigo mesmo. Ou seja, nas primeiras quatro bem-aventuranças o cristão é tanto o agente, quanto o beneficiado de seu entendimento e conseqüentes atitudes. Mas nessa e nas duas próximas beatitudes, haverá um benefício estendido a terceiros. Uma atitude cujo o bem se amplia no foco do que é correto e probo realizar, deixando assim a mensagem de que tudo o que melhora em cada um de nós individualmente, precisa refletir e se traduzir em bem aos outros também.

Tais características introdutórias, portanto, são reveladoras à medida que coloca a relação do homem consigo mesmo, com os outros, e com Deus, na base de todo o ensinamento que se desenvolverá em seguida, definindo-as como a expressão prática da vida cotidiana de uma pessoa piedosa.

Mas por que razão os misericordiosos seriam bem-aventurados? Que vantagens a misericórdia poderá trazer ao misericordioso. A misericórdia seria uma moeda de troca? E que valor teria? De que adianta ao ser humano agir com misericórdia, se o mundo real pertence aos implacáveis? Vamos pensar juntos sobre tudo isso.

Podemos começar tentando entender misericórdia, como palavra sempre presente no contexto religioso daqueles dias. Ou seja, a palavra utilizada por Jesus estava tão inserida no contexto social judaico, que nenhuma dúvida causou aos discípulos que o ouviam naquele instante. E como não é nosso objetivo aqui nos aprofundarmos muito nos significados possíveis da palavra na tradição e na literatura judaica, ficaremos com o sentido mais geral e mais amplamente utilizado; o de benevolência da parte ofendida, à parte que descumpriu um pacto ou uma aliança. Uma graça. Portanto, no sentido prático, misericórdia é um sentimento de bondade, que se deve traduzir em atitude bondosa. Mais tarde Paulo relacionará a bondade como fruto do Espírito[1].

É importante ressaltar, que Jesus não está estabelecendo uma condição; quem agir com misericórdia receberá misericórdia. Se assim fosse, a misericórdia de Deus para conosco dependeria de nossa atitude, e assim neutralizaria a graça, pois a alcançaríamos por nossos próprios esforços. Mas antes, a exemplo das características anteriormente relacionadas, é próprio do cristão piedoso agir com misericórdia, por está em marcha com aqueles que receberão misericórdia. Ou seja, o cristão deve exercer misericórdia por gratidão livre e espontânea[2], dada a sua consciência da misericórdia de Deus que o alcançou.

Entre outros tantos exemplos de bondade em exercício na narrativa bíblica, há dois pelos quais tenho particular encanto; o bom samaritano[3] e a mulher adúltera[4]. Entendo que esses dois acontecimentos exemplificam profundamente o significado desse sentimento, esclarecendo respectivamente, a misericórdia como  ato de bondade, e a misericórdia como ato de perdão. No primeiro, o samaritano se compadece do estado em que se encontra aquele homem à margem da estrada. Sem cuidado e abandonado ali, ele certamente iria morrer. e não obstante a todos os seus importantes afazeres, decide priorizar o cuidado pleno daquele homem, sem medir custos. Um ato efetivo de compaixão e bondade. No segundo, há um contraponto particularmente especial; não seria ilegal apedrejar aquela adúltera. A lei mosaica lhes autorizava a tanto. Havia ali um delito cujo castigo era o apedrejamento até a morte. Jesus então apresenta-lhes a misericórdia como a alternativa benevolente, de quem abandona o direito, em benefício do pecador. Um ato de compaixão e misericórdia.

Além desses dois exemplos, a Epístola aos Hebreus apresenta Jesus como o sumo sacerdote misericordioso[5]. E tal misericórdia ganha consistência, na medida em que Jesus, a exemplo de nós seres humanos, passou por tudo o que passamos, sabendo na carne, as dificuldades e carências que sofremos em nossa vida real e cotidiana. Ele se compadece de nós, embora o pecado nos faça merecedores do castigo de morte. Onde o pecado abundou, superabundou a graça[6].

A bíblia nos ensina que o amor cobre uma multidão de pecados. Isso nos reporta a uma situação confrontante com a realidade que vivemos em nossos dias. Vivemos tempos difíceis, em que somos tocados por um ímpeto de vingança pessoal e social. Talvez motivado por corações endurecidos, talvez pela falta de ação do Estado, ou as duas coisas somadas, diariamente flagramos casos em que a vingança, travestida de justiça pelas próprias mãos, tem feito vítimas nas mais diversas camadas e grupos sociais. E o que se instaura, na ausência da bondade, da misericórdia e da compaixão, é a maldade, a indiferença e a intolerância. Afinal, por se multiplicar a iniqüidade, o amor de muitos esfriará[7].

Misericórdia quero e não sacrifício[8]. Os fariseus se escandalizavam porque Jesus vivia rodeado por pessoas que os fariseus consideravam impuras, e portanto contamináveis. Manter-se "puro" segundo a tradição judaica, requeria restringir determinados contatos e convívios, principalmente com aqueles que estavam à margem daquela sociedade. Acontece que a falta de um sentimento de misericórdia, na essência da relação com Deus, torna nula toda a ritualidade religiosa. E isso incomodava profundamente o próprio Deus, como relatado no Antigo Testamento[9]. Um cristão sem um coração misericordioso, é um cristão vazio do sentimento mais básico em um coração transformado; o amor[10].

A verdade é que um coração misericordioso é uma referência da bondade e do amor de Deus no mundo. E nós, cristãos, não podemos deixar de ter essa marca. Numa realidade mundial onde o ódio, a indiferença e a intolerância dominam as atitudes e reações mais instintivas, a bondade e a misericórdia de Deus precisa estar traduzida em nossas relações, no compadecimento com todos, acolhendo e cuidando daqueles a quem o Senhor nos envia.




[1]  Gálatas 5:22
[2]  Mateus 18:23-35
[3]  Lucas 10
[4]  João 8:1-11
[5]  Hebreus 2:14-18
[6]  Romanos 5:20-21
[7]  Mateus 24:12
[8]  Mateus 9:13
[9]  Oséias 6:6; Amós 5:21-23; Miquéias 6:6-8; Mateus 23:23-26
[10]  I João 2:9-11; 3:14-15; 4:19-20

domingo, 14 de junho de 2015

Unção; poder e capacitação



Por Jânsen Leiros Jr.


14 Então voltou Jesus para a Galiléia no poder do Espírito; e a sua fama correu por toda a circunvizinhança. 15 Ensinava nas sinagogas deles, e por todos era louvado. 16 Chegando a Nazaré, onde fora criado; entrou na sinagoga no dia de sábado, segundo o seu costume, e levantou-se para ler.17 Foi-lhe entregue o livro do profeta Isaías; e abrindo-o, achou o lugar em que estava escrito: 18 O Espírito do Senhor está sobre mim, porquanto me ungiu para anunciar boas novas aos pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos, e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, 19 e para proclamar o ano aceitável do Senhor.20 E fechando o livro, devolveu-o ao assistente e sentou-se; e os olhos de todos na sinagoga estavam fitos nele. 21 Então começou a dizer-lhes: Hoje se cumpriu esta escritura aos vossos ouvidos."
Lucas 4:14-21 - JFA;

No último texto, em que falamos do episódio de Pedro andando sobre as águas no Mar da Galiléia, comentamos que a convicção de Jesus para realizar seus feitos, vinha da ação do Espírito de Deus em sua vida, no cotidiano de seu ministério, durante o tempo em que viveu sobre a terra. Mas por que dissemos isso? Que fatores nos levam a identificar as realizações de Jesus, como dependentes da atuação do Espírito Santo em sua vida? No texto de hoje nos deteremos nesse aspecto de sua vida com maior atenção; Jesus, o ser humano perfeito, segundo a vontade de Deus.

O texto de Lucas é bastante contundente, e apresenta com excelência a convicção que Jesus tinha de quem era, e do que haveria de realizar no mundo; hoje se cumpriu esta escritura. Imaginem o quão corajoso foi Jesus, ao afirmar que ele próprio era o cumprimento daquela profecia, tendo os seus próprios feitos como sinal de seu messianismo.  Tendo somente Lucas a narra esse fato, não há muito como analisar historicamente o ocorrido, de modo a medir com precisão quanto tempo se passou entre o fim dos quarenta dias no deserto, e aquele sábado na sinagoga de Nazaré. Mas é patente que Jesus já havia realizado muitos milagres e acumulado feitos expressivos diante do povo, pois sua alusão ao texto de Isaias[1], relaciona tais sinais à profecia.

De onde vinha tamanha coragem e convicção? Sabidamente Jesus corria o risco de ser considerado blasfemo, e por blasfêmia condenado à morte. Ora ainda que tal destino já lhe fosse familiar, haveria um tempo para que isso ocorresse, tempo ainda não chegado naquele sábado. Vim proclamar o ano aceitável do Senhor. O novo tempo em que Deus dará resgate aos pobres, liberdade aos cativos, visão aos cegos, e o cancelamento das dívidas aos falidos espirituais[2]. Jesus não tinha qualquer dúvida de que a ele estava conferida a responsabilidade de cumprir as escrituras. Mas por quê?

No versículo 14, o evangelista diz que Jesus retornou dos quarenta dias no deserto, no poder do Espírito Santo - en tê dunamei, no grego - que trás a idéia de capacitado para realizar algo; autoridade para e poder para. Isso trás à tona a realidade de que, o que Jesus realizava em seu ministério, tanto os milagres quanto a autoridade com que proclamava as boas novas dos céus, o fazia por total e plena capacitação pelo Espírito Santo de Deus, que nele atuava plenamente, à medida que também ele, Jesus, era plenamente submisso à vontade de Deus, dada sua relação íntima e comprometida com o pai.

É importante ressaltar que Jesus não estava investido de todo esse poder realizador por ser Deus, condição à qual abdicou em favor da humanidade[3]. Não por isso, mas porque e exclusivamente, se submetia à condução do Espírito Santo de Deus. A submissão é um paradoxo do comportamento cristão. Quanto mais submisso, dedicado, fraco e dependente, maior a capacitação, o poder realizador, a força e convicção de caminhar conforme a vontade de Deus. Pois quando sou fraco, aí é que sou forte[4].

A narrativa do livro de Gênesis sobre o pecado original, apresenta um homem rebelando-se contra Deus e sua instrução. A desobediência é instrumental, é apenas a forma reveladora da atitude rebelada do homem; serei igualmente deus, conhecedor do bem e do mal. Não dependo mais de Deus. Era o que estava por trás da desobediência, influenciando-a e a determinando como inevitável. A humanidade decidiu livrar-se de Deus, e de sua dependência dele. Viver atendendo às próprias vontades e satisfazendo os próprios desejos. A simples presença de Deus já os incomodava.

Ao contrário de Adão, desde cedo Jesus é treinado na obediência, submetendo-se a seus pais[5], embora já apresentasse indícios de que sabia contundentemente qual seria o seu papel no mundo[6]. Os evangelhos narram inúmeras passagens em que Jesus se retira para orar. Se afasta para estar a sós com Deus. Ele sabe que depende de seus Espírito. Mais. Ele deseja estar com Deus. O prefere a si mesmo. Tem seu prazer em realizar a sua vontade, ainda que essa vontade o conduza inexoravelmente à morte, e morte de cruz. Sua submissão é total. Ele obedece por amor. E na dependência do Espírito de Deus, torna-se capaz e convicto, para realizar tudo o que Deus lhe coloca por tarefa.

Vivemos tempos de falta de convicção, como falei no texto anterior. Mas isso porque nos falta submissão e entrega. O custo dessa entrega é medido. Nossa dedicação, comedida. Concedemos apenas aquilo que não nos é efetivamente essencial para nossos projetos pessoais, ou para a realização de nossos sonhos mais íntimos. Ao contrário disso, nenhuma realização de Jesus foi sem custo. Ele andou de cidade em cidade. Orientava seus discípulos diária e diuturnamente. Curava os enfermos, falava às multidões. E por fim, não bastasse tudo isso, sua dedicação e submissão, custou-lhe a vida. Se possível, passa de mim esse cálice. Porém faça-se a tua vontade[7]. Ele foi obediente até o fim[8].

Sejamos nós igualmente submissos, para que o poder realizador do Espírito do Senhor nos capacite a realizar tudo aquilo que Deus nos propõe. Que nossas vidas espelhem entrega e dedicação, para que convictos, sejamos veículos de bênçãos, para a honra e a glória de Deus.




[1]  Isaias 61:1e2
[2]  No Antigo Testamento, o cativeiro diz respeito ao exílio de Israel (Lc 1.68-74). Aqui, o cativeiro alude ao pecado (Lc 1.77; 7.47; 24.47; At 2.38; 5.31; 10.43; 13.38; 26.18). Jesus deu vista aos cegos, uma referência às Suas obras milagrosas (Lc 7.22), com implicações espirituais (Lc 1.78,79; 10.23,24;18.41-43). Jesus pôs em liberdade os oprimidos. Esse era originalmente o chamado de Israel, mas a nação fracassou em sua tarefa (Is 58.6). O que Israel não conseguiu fazer, Jesus fez. A ilustração aqui remete à realidade física e espiritual. Jesus proclamou o ano aceitável do Senhor, uma alusão ao Jubileu. Este acontecia a cada 50 anos e, nesta época, os débitos eram perdoados, os escravos conseguiam sua liberdade, as terras voltavam para seus donos originais. O Ano do Jubileu permitia que se recomeçasse (Lv 25.10). Jesus ofereceu o cancelamento total da dívida espiritual e um novo começo àqueles que cressem em Sua mensagem.

[3]  Filipenses 2:5-8
[4]  2 Coríntios 12:9-10
[5]  Lucas 2:51
[6]  Lucas 2:49
[7]  Lucas 22:42
[8]  Filipenses 2:8
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