"1 Ó Deus, tu és o meu Deus; ansiosamente te busco. A minha
alma tem sede de ti; a minha carne te deseja muito em uma terra seca e cansada,
onde não há água. 2 Assim no santuário te
contemplo, para ver o teu poder e a tua glória. 3 Porquanto a tua benignidade é melhor do que a vida, os meus
lábios te louvarão.
4 Assim eu te bendirei enquanto viver; em teu nome levantarei
as minhas mãos. 5 A minha alma se farta,
como de tutano e de gordura; e a minha boca te louva com alegres lábios. 6 quando me lembro de ti no meu leito, e medito em ti nas
vigílias da noite, 7 pois tu tens sido o meu
auxílio; de júbilo canto à sombra das tuas asas.8 A minha alma se apega a ti; a tua destra me sustenta.
Salmos 63:1-8 - ARA
O desejo, diria Platão em uma de
suas obras mais conhecidas, O Banquete,
é a busca por aquilo que nos falta. Segundo o filósofo, o desejo parte
da carência pelo que não encontramos em nós mesmos ou pelo que não possuímos. E
se não temos, ou não possuímos, logo buscamos, para suprir a carência. Quanto
maior a carência, maior o desejo. E quanto maior o desejo, maior e mais intensa
é a busca pelo objeto do desejo.
Considerando tal afirmação, se eu desejo
aquilo que não tenho, e se busco pelo que desejo, também podemos afirmar que
ninguém deseja o que já tem, e, portanto, não busca, já que por ter, não o
deseja, não o anseia. O anseio é fruto da carência. Pode parecer repetitivo ou
mesmo óbvio, mas vale a pontuação dessa lógica, porque voltaremos a ela mais
adiante.
No texto que lemos acima, o salmista
declara buscar ansiosamente. Em algumas traduções ele diz buscar intensamente,
em uma demonstração clara de que sua carência por Deus é imensa e profunda. Ele
sofre a ausência de Deus. Ele sente falta. Ele está carente de Deus e
por essa razão seu desejo o conduz a uma busca ansiosa e intensa. De tal modo,
que ele se diz sedento, como que em uma terra seca e cansada.
Uma terra onde “não tem água”, ele afirma, demonstrando que não só tem sede de
Deus, como também não há qualquer outra fonte da qual pudesse lançar mão para
mitigar a falta que lhe consome. “Minha alma tem sede de ti”.
Trazendo um pouco de histórica para
nossa leitura, quando compôs este salmo, Davi se encontrava no deserto de Judá,
fugido da guarda do rei Saul que buscava matá-lo. Ele se encontrava em ambiente
de profunda perplexidade e penúria. Certamente faltava-lhe de tudo: comida, segurança,
conforto, e principalmente água. No deserto a carência se fazia sentir em quase
todas as demandas naturais da vida. Davi, porém, não declara ou não lamenta a
ausência por nenhuma dessas coisas naturais e obviamente necessárias à qualquer
pessoa. Ele poderia dizer eu tenho sede de água, ou eu sinto falta de
um bom bife com batata frita. Ou poderia ainda reclamar que precisaria
dormir em uma cama aconchegante e na segurança de sua casa. Não que Davi não
considerasse essas coisas bem-vindas. Certamente tais privações o incomodavam,
e passava por sua mente o dia em que poderia voltar a satisfazer-se de todas
elas. Mas uma carência era ainda mais incômoda; a falta da presença de Deus.
“Ansiosamente te busco”.
Note que, ao declarar a falta que Deus
lhe faz, Davi demonstra uma dependência vital de sua relação com Ele, a ponto
de dizer sentir sede de Deus, e que onde se encontra, não há qualquer
opção de ser saciado daquilo que somente Deus poderia oferecer. “É uma terra
seca” e, portanto, sem vida. Mais que isso. Davi está pedindo socorro.
Pois se sente sede de Deus e não há como saciá-la, ele irá morrer. Davi sabe
que sem Deus, não terá a menor chance de seguir vivendo, ainda que todas as
demais necessidades e carências lhe fossem supridas, já que é da transcendência
de Deus, que nos alimentamos da perspectiva da superação. “Minha alma tem sede
de Ti”, é como se o salmista dissesse É de Ti, ó Deus, que preciso. E de
mais nada, e de mais ninguém.
Há uma curiosa e aparente incoerência na
fala de Davi, logo no início do salmo. “Ó Deus, tu és o meu Deus”. Ora, se Deus
é o Deus de Davi, se ele assim O considera, como pode então dizer-se sedento e
carente de alguém com quem afirma ter relação? Os dois versículos seguintes, nos
dão pistas importantes. “Recordo-me dos dias em que te contemplei no santuário,
para me embeber do teu poder e da tua glória” (v. 2 - KJA). A tradução da King
James Atualizada aponta para uma lembrança citada por Davi, relativamente
àquilo que sentia e vivia na presença de Deus antes do deserto, quando
participava da adoração a Deus no santuário. Davi está falando de instantes de
devoção e relacionamento com Deus que, no deserto, ele não consegue ter. Isso é
tremendamente revelador.
A comparação de Davi não está querendo
dizer que Deus não pudesse estar ali com ele, no deserto, já que ele O
encontrava sempre no santuário. Davi estava se referindo exatamente ao exercício
contínuo e pleno do seu relacionamento com Deus, que até então ele entendia somente
ser possível no santuário, de modo que Lhe sentia ausente no deserto, porque
ali, até então, não o havia buscado com empenho. Logo a Ele, o seu Deus.
Crescido no meio de um povo para quem o tabernáculo, uma espécie de santuário
nômade era a morada de Deus, e portanto o lugar onde poderia ser encontrado,
Davi leva um bom tempo sofrendo a carência da presença de Deus.
Nos versículos 2 e 3, portanto, Davi
demonstra perceber-se de que a sede que ele declara sentir, está muito mais
perto e possível de ser saciada do que imaginava. E em lugar de lamentar-se
pela carência, a lembrança da presença de Deus e de sua relação com Ele o enche
de confiança, trazendo paz ao seu coração, e fazendo-o descansar em relação ao
seu medo de morte. “Minha alma tem sede de ti”; “a Ti eu busco dia e noite”. Mas
na verdade eu já te encontrei. “Porque tens sido o meu socorro”. Mesmo
fora e distante do santuário, onde eu achava que estaria longe, teu
cuidado tem me protegido. Por essa razão é que ele podia, “à sombra das
tuas asas”, cantar louvores de alegria. Tu estás comigo. Eu te encontrei,
Senhor meu e “meu Deus”.
Davi precisou entender que não era Deus
quem não estava com ele, mas que ele, Davi, é que não enxergava que Deus seguia
caminhando ao seu lado, mesmo em meio aquele deserto árido, de terra seca e sem
água. Davi sentia sede de um Deus presente, porque ele próprio não percebia as
evidências de seu cuidado e de sua presença, que se traduzia nas mais efêmeras
e imperceptíveis realidades da vida cotidiana, por mais difíceis e
desfavoráveis as circunstâncias que estivesse atravessando.
Davi então buscou Deus e o encontrou.
Como quem anseia por água, dia e noite, ansiosa e intensamente o buscou e o
encontrou. E como foi que o encontrou? Pedindo, buscando, clamando. “Ó Deus, tu
és o meu Deus”. “Todo o meu ser anseia por ti”; quer estar contigo, tem
vontade de estar em tua presença. Eu te busco porque te desejo, te
quero, tenho vontade de estar contigo. E se eu quero tanto, logo busco.
É muito importante atentarmos para o que
significa buscar. Nossa sociedade ocidental não tem tradição no
desenvolvimento da vontade. Trabalhamos a vontade como um desejo
estático, que sonha com alguma coisa que pode fazer bem, mudar mesmo a vida,
mas que, quase sempre, está fora do alcance. Temos por hábito entender a
vontade como um sonho irrealizável, ou uma utopia; um desejo além do possível
ou provável. Ah! Se eu ganhasse na
loteria, viajaria pelo mundo inteiro; ou ainda se eu trabalhasse na
empresa tal, minha vida seria bem mais fácil. Uma ilusão apenas. Um sonho
fugaz, uma vez que nem eu jogo na loteria, e nem estudo para tornar-me o
profissional adequado para o quadro da empresa tal. Da mesma forma, em relação
à comunhão com Deus, vivemos a olhar as estrelas. Ah! se Deus me desse
atenção, ou se eu fosse um escolhido por Ele, adoraria estar em sua presença.
Davi não faz assim. Muito pelo contrário.
Querer é agir na direção do desejo.
E Davi quer Deus. Ele o busca “dia e noite”, “intensamente”. Algumas traduções
trazem “de madrugada”, evidenciando o empenho e o esforço empreendido pelo
salmista em sua busca. Afinal, entende Davi, Deus sempre esteve com ele; sempre
próximo. É ele quem precisa sair de si mesmo e ir ao Seu encontro. Ele deseja. Ele
quer. Ele buscará. Não esperará cair do céu.
Confiança é uma atitude de esperança
ativa, estimulada pela narrativa bíblica em diversas passagens; realização
demanda esforço. “Esforça-te”,
“levanta... e anda”,
“sem fé é impossível agradar a Deus”.
A fé nos impulsiona na direção de nossa esperança. Foi assim com os
amigos do paralítico, que destelharam o local onde Jesus estava.
A mesma atitude teve a mulher siro-fenícia para ser curada.
Por isso o salmista busca dia e noite, e de madrugada. Ele se
dispõe a Deus e o reconhece em seus caminhos.
Por que não buscamos? Por que atravessamos
nossos desertos com o discurso retórico de que estamos indo como Deus quer,
em flagrante demonstração de desistência de nós mesmos, ou de nossos sonhos? Somos
fracos de vontade. Somos fracos de querer. O mundo moderno nos
incute a ideia da felicidade a toda prova, e isso nos faz fracos diante
de qualquer circunstância que nos infelicite. Não está gostoso joga fora,
não agradou troca, se te incomoda afaste-se. Tudo precisa ser prazeroso
sempre, sem qualquer dor ou custo. Talvez por isso o jovem rico tenha se
entristecido ao ser desafiado por Jesus. Ele até cogitou seguir o Mestre.
Achava querer isso. Mas diante do custo que tal decisão teria para ele, sua
vontade fraca o fez abandonar seu fraco querer.
Mas quem pode garantir que a busca por
Deus pode me fazer encontrá-lo? Quem garante que meu esforço e empenho nessa
direção poderá me colocar em sua presença? Porque eu oro e nada acontece,
poderá dizer alguém. Rezo, e tenho a sensação de estar falando sozinho,
afirmarão outros tantos. Ora, quem garante que nossa busca por Deus será recompensada
é o próprio Deus.
"17 O sacrifício aceitável a Deus é o espírito quebrantado; ao
coração quebrantado e contrito não desprezarás, ó Deus.
Salmos 51:17 - ARA
"5 Porque tu, Senhor, és bom, e pronto a perdoar, e abundante
em benignidade para com todos os que te invocam.
Salmos 86:5 - ARA
"18 Perto está o Senhor de todos os que o invocam, de todos os
que o invocam em verdade.
Salmos 145:18 - ARA
"12 Porquanto não há distinção entre judeu e grego; porque o
mesmo Senhor o é de todos, rico para com todos os que o invocam.
Romanos 10:12 - ARA
Se então na busca por Deus é possível
encontrá-lo, logo o meu desejo é saciado e a carência por Deus termina, certo?
Sim. Então não há mais desejo por Ele? Não. Calma. Não fiquei louco. Acontece
que desejo saciado não gera desprezo, mas apreço. Se ocorresse desprezo,
logo voltaria a carência e então reacenderia o desejo. Porém o encontro com
Deus finda a busca motivada na carência, mas desperta o apreço, que mantém viva
uma relação de presença permanente. “A tua graça é melhor que a vida”. “Como em
um banquete, na tua presença a minha alma se farta”. “A minha alma se apega a
Ti”. Assim, se antes a carência me impulsionava para a busca, agora o prazer do
encontro e da presença de Deus me preenche de um jeito tal, que não quero jamais
deixar de vivê-la. Se antes eu tinha sede, agora a satisfação transborda. É
isso! O encontro com Deus provoca satisfação transbordante. “Meus lábios te
louvam”; “a ti bendirei”; “em teu nome levantarei as minhas mãos”.
"35 Declarou-lhes Jesus. Eu sou o pão da vida; aquele que vem a
mim, de modo algum terá fome, e quem crê em mim jamais terá sede.
João 6:35 - ARA
"35 Quem crê em mim, como diz a Escritura, do seu interior
correrão rios de água viva.
João 7:38 - ARA
É isso, “pedi, e dar-se-vos-á; buscai e
achareis; batei, e abrir-se-vos-á”.
A verdade é que quem busca encontra. E
se encontra se satisfaz, porque dessedenta a alma. E se para cada busca, um
encontro, para todo encontro, fartura.