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sexta-feira, 1 de agosto de 2014
É o Cofre mais que o Tesouro?
Por Jânsen Leiros Jr.
Revisado
e ampliado em 27/05/2024
"Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; mas ajuntai para vós outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam, nem roubam; porque, onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração."
Mateus 6:19-21
Um
dos registros mais edificantes do ministério de Jesus é o conhecido Sermão da Montanha[1].
Entre outros aspectos, esse sermão resume a proposta de uma vida totalmente
outra que Jesus apresentou aos seus discípulos e a todos que o ouviam. Muitas
vezes contrapondo costumes sociais e religiosos até então aceitos, ele propõem
uma atitude radicalmente contrária, mudando o foco do pensamento. Do eu para o nós, do meu para o nosso, e do singular para o plural.
É
nesse contexto de inversão da lógica da atitude humana, que Jesus propõe a
substituição do lugar onde se guardar
o “tesouro” que acumulamos por toda a via. Portanto a atenção aqui não é o que eu guardo, mas sim onde eu guardo. A atenção está não no
tesouro, mas no cofre, ainda que o
local onde depositar o tesouro vá, inevitavelmente, influenciar na pertinência
do que será relevante entesourar.
Tesouro,
qualquer que seja o contexto, é tudo o que eu acumulo. E entesourar sempre foi
um costume muito comum na sociedade hebraica. Acostumados desde sempre a
bruscas variações das condições de sobrevivência em suas terras, o povo hebreu
desenvolveu o costume de guardar uma boa parte de tudo o que produzia ou tinha
acesso, para eventuais períodos de escassez[2].
E era comum que utilizasse menos do que o necessário para viver, para que
entesourasse uma parte cada vez maior. A prática prudente e previdente, no
entanto, por vezes era substituída por uma inquietação exacerbada, que promovia
a usura e a ganância. E nesse contexto de deturpação da gestão responsável dos
recursos, a preocupação voltava-se para o bem-estar pessoal ou no máximo de seus
familiares diretos e próximos. Na sofreguidão de garantir um futuro próspero e
seguro a qualquer custo, era comum encontrar quem agisse com mesquinhes e
avareza[3].
Mas é claro, tais distorções ocorrem em qualquer sociedade ou em qualquer grupo
étnico, não sendo um comportamento exclusivo ou definidor de caráter dos
hebreus.
O
cofre, portanto, longe de ser um
objeto ou um local, é antes uma atitude. E não estamos falando aqui de ganância,
avareza ou mesquinhes tão somente. Isso seria óbvio demais, e plenamente
rejeitável pela sociedade daquela época. Jesus não condenava aqui a vontade de ter mais, mas sim a inquietação por garantir ter quando necessário ou sempre desejado. Condenava
a atitude ensimesmada de tentar ansiosamente se garantir pelas próprias mãos. Esse cofre na terra é frágil. Sujeito a roubo, à deterioração e à
desvalorização. Pior! Louco, esta noite
te pedirão a tua alma, e o que tens preparado (entesourado em teus
celeiros, em teus cofres na terra) para
quem será?[4]
O cofre na terra será sempre inseguro e incerto. E o tesouro que ali estiver será fruto da inversão de prioridade sobre
o que realmente importa, e da falta de confiança em Deus; não andei ansiosos por coisa alguma[5].
O
tesouro guardado no céu, por sua vez, não pode ser roubado e nem sofrerá
qualquer dano. Note, contudo, que não há qualquer mudança no tesouro. Não há
juízo de valor sobre o que efetivamente se acumula. Apenas o local onde o
tesouro é guardado se altera. Ora, se o tesouro guardado no céu está em um
cofre totalmente outro que o da terra, o que eu acumulo no céu, seja lá o que
eu esteja entesourando, será guardado com confiança e generosidade, com
descanso e boa vontade, e plenamente disponível para uso no Reino, para alimento
e cuidado com o próximo. O tesouro no céu não
me pertence. E não é resultado de minha ansiedade e inquietação pela vida.
É, na verdade, fruto de minha confiança na providência, cuidado e amor de Deus
para com todos. Inclusive comigo mesmo.
Por
isso a afirmação final de Jesus onde está
o teu tesouro, aí estará também o teu coração. A vida pulsa conforme as
emoções e não ao sabor da razão. As atitudes do coração precisam e devem
acumular tesouro no cofre do céu. O descanso no cuidado de Deus que promove
generosidade e desprendimento, é o desejado refrigério da alma e o conforto
apaziguador do coração.
[1] Evangelho
de Mateus capítulos 5 a 7; Lucas 6:20-49
[2] A
combinação de fatores geográficos, históricos, sociais e religiosos moldou a
prática hebraica de armazenar recursos. Essa prudência e previdência eram
essenciais para a sobrevivência em um ambiente frequentemente inconstante e
hostil. Além disso, essas práticas foram integradas na tradição e nos
ensinamentos religiosos, reforçando a importância de uma gestão sábia dos
recursos enquanto se confia na provisão divina.
Condições Geográficas e Climáticas
1.
Clima e Agricultura: A região da
Palestina, onde o povo hebreu vivia, tem um clima mediterrâneo com verões
quentes e secos e invernos suaves e chuvosos. A agricultura dependia fortemente
das chuvas sazonais, e qualquer variação climática poderia causar escassez de
alimentos.
2.
Secas e Fomes: A história bíblica
registra várias ocasiões de seca e fome que afetaram a sobrevivência do povo
(Gênesis 41:54-57; Rute 1:1). Esses eventos ensinaram os hebreus a serem
previdentes e a armazenarem recursos durante períodos de abundância.
Contexto Histórico e Social
3.
Invasões e Conflitos: O território hebreu
era frequentemente invadido por nações vizinhas, resultando em destruição de
colheitas e recursos. Os hebreus aprenderam a armazenar alimentos e outros bens
para sobreviverem durante e após esses conflitos (Juízes 6:3-4).
4.
Peregrinações e Deslocamentos: Durante a
história bíblica, os hebreus experimentaram períodos de nomadismo e
peregrinação, como a jornada pelo deserto após o êxodo do Egito (Êxodo 16). A
necessidade de carregar e armazenar provisões durante essas jornadas reforçou o
hábito de guardar recursos.
Práticas Religiosas e Culturais
5.
Legislação Mosaica: As leis de Moisés
incluíam instruções sobre a sabática e o ano de jubileu, onde a terra deveria
descansar e as dívidas serem perdoadas (Levítico 25). Isso incentivava uma
gestão prudente dos recursos para garantir a sobrevivência durante esses
períodos.
6.
Coleta e Armazenamento de Maná: No
deserto, Deus forneceu maná diariamente e instruiu os hebreus a coletarem
apenas o necessário para cada dia, exceto na véspera do sábado, quando deveriam
armazenar para dois dias (Êxodo 16:4-5, 22-26). Essa prática ensinou a
importância de confiar na provisão divina enquanto ainda mantinham a
responsabilidade de gerenciar recursos adequadamente.
Influência na Mentalidade Coletiva
7.
Parábolas e Ensinos: Os ensinos de Jesus
frequentemente utilizavam metáforas agrícolas e econômicas que ressoavam com a
prática de guardar e gerenciar recursos. A parábola dos talentos (Mateus
25:14-30) e a advertência contra a avareza (Lucas 12:16-21) refletem essa
mentalidade.
[3] A
percepção do povo judeu como avarento e mesquinho é um estereótipo prejudicial
que resulta de uma longa história de preconceito, exclusão social, crises
econômicas e propaganda antissemítica. É crucial reconhecer que esses
estereótipos não refletem a realidade e que os judeus, como qualquer outro
grupo, são diversos e complexos. Combater esses preconceitos exige educação,
diálogo intercultural e um compromisso com a justiça e a igualdade.
[4]
Lucas 12:20
[5] Filipenses
4:6