“Não sei se arte
imita a vida ou a vida imita a arte. Não concebo a arte sem vida e muito menos
a vida sem arte. Onde há vida, inspira-se arte. A vida é uma grande obra de
arte, na qual existem bons e inexperientes artistas.
Obras de arte são
tentativas frustradas e contraditórias (vistas sob a ótica humana) de se querer
engarrafar o tempo, engaiolar momentos vividos ou imaginados, de dor ou de
amor.
É o homem
querendo, pretensiosamente, ser senhor do seu tempo!”
Hermes
Petrini
- Assessor da Pastoral Universitário do Centro UNISAL – Americana
Fonte: http://www.am.unisal.br/publicacoes/artigos-18.asp
Desde
a semana passada venho ouvindo com atenção, de diversos colegas, amigos e
circunstantes, comentários sobre cenas, conteúdos e mensagens que a minissérie
da Globo Felizes para Sempre? vem
apresentando. Há os que se dizem horrorizados com a “pouca vergonha” de cenas tórridas
e sensuais. Há outros escandalizados pela variedade de traições e de relações confusas,
convenientes. E há ainda os extremamente empolgados com a sensualidade dos
atores e atrizes (principalmente das atrizes) que contam a trama criada pelo
autor.
Tem
muita gente que diz ser “um absurdo passarem uma minissérie dessas na televisão”,
considerando que determinadas cenas e enredos não são apropriados para serem assistidos
por crianças, jovens ou “famílias de bem”. Um arroubo moralista de reação rasa,
que mais demonstra medo da influência que pode sofrer, do que uma posição
consistente de quem não se interessa por esse tipo de contexto como entretenimento.
Sim, um disfarce mentiroso, porque pelo menos nos aparelhos lá de casa existe
uma tecla de “liga/desliga”, que obedece inexoravelmente ao meu comando. De modo
que, quando começa a transmissão daquilo que não me interessa ou que eu considero
inapropriado para mim e para meus filhos, eu simplesmente desligo, ou ainda troco
de canal, com outra tecla mágica que me permite trocar a programação sempre que
eu desejo fazê-lo.
Mas
eu não quero trocar de canal. Não aqui. Não agora. Não quero fechar os olhos
para um assunto, esse sim muito mais sério, que precisa ser debatido socialmente;
a permanente afirmação de que princípios essenciais para a vida, tanto individual
quanto em grupo, não passam de utopias, quimeras ou tabus, sejam religiosos ou
impostos por uma sociedade hipócrita, que na prática não resistem às possibilidades
e circunstâncias que nos envolvem no cotidiano de nossas realidades.
Tramas
como essa que o seriado está propondo, discutem conceitos importantes da vida,
como fidelidade, honestidade e lealdade, apenas para não alongarmos muito a
lista de princípios que são trazidos à discussão da sociedade, onde suas reais
e possíveis aplicações são questionadas. E não digo que eles não possam ser questionados.
Não só podem como devem, pois é exatamente no contexto da discussão, que se
firmam posições, tanto favoráveis quanto contrárias, dando-nos a capacidade de
enxergarmos de nós mesmos, quem somos, o que cremos ou o que queremos assimilar
como conjunto de valores para a vida.
Minha
preocupação, no entanto, se concentra na maneira como a discussão é
apresentada. Ao que parece, numa avaliação superficial do enredo, todas as
relações afetivas, todos os casais envolvidos na trama, de uma forma ou de
outra não têm uma relação honesta, fiel ou leal com o seu cônjuge. Há algum
absurdo nisso em termos de irrealidade, visto que nossa sociedade apresenta
exatamente esse cenário como verdade plácida? Não. Mas como arte, que pretende
questionar conceitos inerentes ao dia a dia social, um único contra-ponto deveria
ser deixado, como exemplo contrário de toda a realidade que se projeta amarga
sobre os personagens. Eu explico.
Quando
ainda lecionava, alguns alunos me procuraram para que eu opinasse sobre um
seminário que estavam planejando realizar, cujo tema seria A Verdade. Apresentaram-me então o plano de exposição e os
palestrantes, cada um responsável por discorrer sobre uma determinada percepção
sobre o que é, e como se aplica a verdade na vida do ser humano. E por fim me
perguntaram: - Está faltando alguma coisa? Ao que respondi: - Sim, está
faltando o mentiroso. Como vocês querem falar sobre a verdade, sem que o ponto
de vista do mentiroso seja trabalhado? Se bem me lembro eles não conseguiram um
palestrante que falasse em defesa da mentira.
Obviamente
minha resposta a eles foi retórica, mas em termos práticos, o que eu queria ressaltar,
é que nenhuma tese, discussão, debate ou obra de ficção que se pretenda falar
sobre conceitos sociais, essenciais para a formação do indivíduo pode, por vício
de dever, pluralizar as versões sobre uma mesma polaridade, sem que em contrapartida
ofereça pelo menos uma única visão em pólo contrário.
Trocando
em miúdos, o seriado pode e deve trazer a discussão sobre a felicidade efetiva
ou fingida das relações amorosas, e as diferentes formas em se buscar essa
felicidade, ou ainda afirmar que na grande maioria das relações, o que existe é
apenas uma hipócrita manutenção de uma convenção que não resiste a circunstâncias
envolventes. Mas haveria a necessidade de haver um único contra-ponto que
fosse. Um único casal no contexto da obra, em que os conceitos e os princípios tivessem
trazido felicidade efetiva. Assim, os telespectadores teriam um leque mais
amplo e honesto das possibilidades reais de felicidade num casamento, sem
considerar, no final, que toda e qualquer relação não passa de uma convenção
conveniente, onde traição, promiscuidade e devassidão, se revezam como
ingredientes necessários para uma questionável solidez, ou para a desconstrução
total das relações afetivas.
Quem
tem um pouco mais de trinta anos, deve lembrar que nas décadas de 70/80 fomos
bombardeados pela afirmação constante de que a família era uma “instituição
falida”. Vivíamos a época da lei do divórcio, da liberação sexual... Ninguém era de ninguém. Comemos essas
afirmações. Dormimos sobre elas. Acreditamos mesmo que a família não passava de
uma convenção social, que mais servia como uma condição imposta e repressora, e
instauramos na sociedade a idéia de liberdade a qualquer custo, ainda que
custasse o bem estar de nossos filhos, nossos cônjuges e de nossos futuros. Importava
apenas nos permitirmos aos desejos imediatos e que se danassem os outros. Acho que não preciso comentar aqui no que deu.
Agora
estamos passo a passo retornando a esse cenário em que determinados conceitos
estão sendo bombardeados unilateralmente, sem que haja qualquer possibilidade
de contradição ou defesa dos princípios éticos e comportamentais. E isso na exata
contramão do politicamente correto e
do eticamente aceitável, onde firmar
posição a favor da manutenção de determinados conceitos essenciais para a vida
em sociedade, passou a “incorreto” e a “inaceitável”. Quem pensa diferente é
chamado de “estranho”, quem não se corrompe é considerado “otário”, e quem
busca ser fiel e leal ao seu cônjuge, leva o rótulo de “hipócrita” ou ainda de “enrustido”.
Basta, mas os exemplos poderiam se multiplicar...
Não
sou contra a arte. Não sou contra o autor da minissérie, nem contra seu diretor.
Muito menos sou contra seu elenco, que, aliás, extremamente competente. Mas defendo
que determinadas abordagens precisam ser plurais, tanto no sentido das trajetórias,
quanto o são em suas direções. Pois não se pode chamar de ideologicamente democráticas,
abordagens que trilham caminhos que levem a um mesmo destino. Se é para
discutir sobre a verdade, vamos
incluir quem defenda a mentira. Tanto
assim, versando sobre a mentira, é
preciso dar voz à verdade. Pois é na
confrontação honesta das antíteses que se aprimoram as teses.
Um
forte abraço.
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