quinta-feira, 21 de novembro de 2024

A Ressurreição da Jesus: Obediência à Justiça Divina

Por Jânsen Leiros Jr.

 

"A ressurreição não é uma recompensa pela obediência de Cristo, mas a confirmação de que Deus aceitou o sacrifício de Cristo como suficiente. É o 'amém' de Deus ao 'está consumado' de Jesus."

— John Stott[1], A Cruz de Cristo

 "A obediência de Cristo é o cumprimento da reconciliação divina, mas a ressurreição é o ato soberano de Deus que proclama a vitória sobre o pecado e a morte. Não se trata de causa e efeito, mas de graça revelada."

— Karl Barth[2], A Dogmática Eclesiástica, Vol. IV/1[3]

 "A ressurreição de Cristo não é uma recompensa por Sua cruz; é o ato supremo de Deus, manifestando a reconciliação do mundo com Ele mesmo. A obediência de Cristo foi necessária, mas não condicional para a ressurreição."

— Dietrich Bonhoeffer, Ética

 "A ressurreição de Jesus não é uma consequência lógica da obediência, mas o evento central que inaugura o novo mundo de Deus. Ela valida não apenas o ministério de Cristo, mas a fidelidade de Deus ao Seu próprio plano de redenção."

— N. T. Wright[4], A Ressurreição do Filho de Deus

 "Cristo ressuscitou não porque Sua obediência exigia uma recompensa, mas porque Sua morte foi o triunfo sobre o pecado. A ressurreição é o testemunho do poder de Deus, que restaura o homem à comunhão divina."

— Santo Agostinho[5], Sermões sobre a Páscoa

 

 

O tema da ressurreição de Jesus e sua relação com a obediência ao Pai desperta questões essenciais na teologia cristã, especialmente para aqueles que buscam compreender o significado mais profundo desse evento central. Em uma reflexão destinada à nossa turma de teologia, é fundamental explorar como a obediência de Cristo se insere no plano divino de salvação e de que forma a ressurreição transcende uma simples lógica de causa e efeito. Este texto visa esclarecer essa conexão, destacando não apenas a fidelidade de Jesus ao Pai, mas também a soberania e a justiça divina manifestas na ressurreição, aspectos vitais para uma compreensão completa do mistério redentor.

A ressurreição de Jesus Cristo é um evento central na teologia cristã, e a relação entre sua obediência ao Pai e sua ressurreição tem sido um tema discutido ao longo da história da Igreja. No entanto, ao refletirmos sobre a importância teológica dessa relação, precisamos diferenciar dois aspectos cruciais: a obediência de Jesus como parte do plano de salvação e a ressurreição como um ato soberano de Deus.

A Obediência de Jesus como Parte do Plano de Salvação

De acordo com o entendimento teológico tradicional, a obediência de Jesus ao Pai não foi uma condição direta para a ressurreição, mas sim uma parte integral do plano de salvação estabelecido por Deus. Jesus foi obediente até a morte, e uma morte cruel na cruz (Filipenses 2:8). Essa obediência foi necessária para que o plano de redenção fosse cumprido, cumprindo a justiça de Deus e permitindo o perdão dos pecados para a humanidade.

É importante destacar que essa obediência foi um ato voluntário e consciente. Cristo, sendo plenamente Deus e plenamente homem, escolheu submeter-se ao plano divino (João 10:18). Sua decisão de obedecer reflete o compromisso com a missão redentora do Pai, não como um mero requisito, mas como expressão do amor e fidelidade perfeitos.

Como afirmado em Romanos 3:25-26[6], a justiça de Deus foi demonstrada na obra de Cristo, que, por meio da sua morte e ressurreição, possibilitou a reconciliação do homem com Deus. Portanto, a obediência de Jesus se manifestou como um ato de amor e fidelidade ao Pai, sem o qual a obra de salvação não poderia ser completada.

Além disso, a ressurreição pode ser vista como uma validação dessa obediência. Ao ressuscitar Jesus, Deus confirmou a sua missão e mensagem (Atos 2:22-24), demonstrou sua aprovação à obediência de Cristo (Hebreus 5:7-9[7]) e estabeleceu a autoridade e o poder de Jesus como Senhor e Salvador (Mateus 28:18).

Essa relação entre obediência e salvação tem raízes na promessa do Antigo Testamento (Isaías 53:11-12[8]). O servo sofredor suportaria as consequências do pecado humano, cumprindo a justiça divina. A ressurreição de Cristo, portanto, é a confirmação dessa promessa cumprida, um selo divino sobre a obra perfeita realizada na cruz.

A Obediência de Jesus Não Como Condição, Mas Como Consequência de Propósito

Contudo, é importante entender que, embora a obediência de Jesus tenha sido vital para cumprir o plano de salvação, a ressurreição não pode ser considerada como um prêmio ou recompensa por sua obediência. A ideia de que "por sua obediência, Jesus foi ressuscitado" sugere uma relação condicional que não reflete plenamente a soberania de Deus na obra da redenção.

Como N. T. Wright argumenta, a ressurreição não é apenas um resultado, mas o início de uma nova era. Ela representa o ponto de virada na história, em que a vitória de Deus sobre o pecado e a morte é proclamada ao mundo.

A ressurreição não foi algo que Deus fez porque Jesus foi obediente, mas foi, sim, a ação divina de Deus em Cristo, para cumprir um propósito maior. A ressurreição de Jesus não é "a consequência de sua obediência", mas o cumprimento do plano de salvação de Deus, que Jesus obedientemente aceitou cumprir. Portanto, dizer que Jesus ressuscitou "por causa" de sua obediência implica em uma visão errada da graça divina e da ação soberana de Deus em Cristo.

Como argumentado na reflexão teológica posterior, a ressurreição de Jesus é o resultado da ação divina que justifica o ser humano diante de Deus, e não um prêmio conquistado por mérito de Jesus. A salvação e a ressurreição para a vida eterna não são devido aos méritos ou ações humanas, mas pelo sacrifício de Cristo. Como diz em Efésios 2:8-9[9], "pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie."

A soberania de Deus, aliás, se manifesta não apenas na ressurreição de Cristo, mas também no envio do Espírito Santo. Como Jesus prometeu (João 14:16), o Espírito capacitaria a Igreja a continuar a missão redentora. Essa continuidade mostra que a ressurreição transcende um evento histórico; é o fundamento da vida cristã e da esperança escatológica.

A Justiça Divina: Ação de Reconciliação[10]

Outro aspecto fundamental a ser entendido aqui é a natureza da justiça de Deus, mencionada em textos como Romanos 3:25-26. A justiça divina não pode ser entendida como a justiça humana, que envolve a ideia de retribuição, em que acertos resultam em recompensas e erros em punições. A justiça de Deus, na realidade, é uma ação de reconciliação, onde Deus, por meio de Cristo, justifica o ser humano, eliminando a separação entre o homem e o Pai. A palavra hebraica "justiça" carrega o sentido de "trazer de volta à relação", de "eliminar a distância", de "cruzar o abismo da separação" entre Deus e os seres humanos.

Esse conceito de justiça só pôde ser cumprido por Deus, em Cristo, que morreu e ressuscitou por nós. A ressurreição de Cristo, portanto, não foi um prêmio, mas o cumprimento da ação redentora de Deus, uma ação que só poderia ser realizada pelo próprio Deus, em Cristo, que representou a humanidade e cumpriu a lei em nosso lugar.

Conclusão

A ressurreição de Jesus não deve ser vista como uma recompensa pela obediência de Cristo, mas sim como a manifestação do plano divino de salvação. A obediência de Jesus foi a demonstração de sua fidelidade ao Pai, mas a ressurreição é a obra soberana de Deus em Cristo para reconciliar a humanidade consigo. Não há conexão de "se isso, logo aquilo", como em uma lógica de causa e efeito, mas uma relação mais profunda de graça e reconciliação.

Por mais que a obediência seja fundamental para o cumprimento do plano de salvação, a ressurreição não é um "prêmio" pela obediência, mas um ato de Deus para redimir e restaurar a humanidade à comunhão com Ele. A nossa salvação, e consequentemente nossa ressurreição, é garantida, não pelos nossos méritos, mas pelo ato gracioso de Deus em Cristo. Como diz a Escritura: "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé" (Efésios 2:8).

Entender a ressurreição dessa forma nos convida a refletir sobre nossa própria jornada de fé. Nossa obediência a Deus não busca recompensas, mas é a resposta amorosa à graça que nos foi concedida. A verdadeira recompensa não está em méritos próprios, mas na comunhão restaurada com o Pai, garantida pela ressurreição de Cristo.



[1] John Stott, A Cruz de Cristo

Nota: John Stott (1921-2011) foi um teólogo anglicano britânico e uma das principais figuras do evangelicalismo mundial. Em seu livro A Cruz de Cristo, ele explora o significado central da cruz no cristianismo, destacando a obra redentora de Cristo.

 

[2] Karl Barth, A Dogmática Eclesiástica, Vol. IV/1

Nota: Karl Barth (1886-1968) foi um teólogo reformado suíço, conhecido por sua crítica ao liberalismo teológico e por fundar a teologia dialética. Dogmática Eclesiástica é sua obra monumental, onde ele sistematiza sua teologia, especialmente sobre a soberania de Deus e a revelação divina.

 

[3] Teologia dialética

Nota: É um movimento teológico do início do século XX, associado a Karl Barth, que enfatiza o paradoxo entre Deus e o ser humano, destacando a transcendência divina e a incapacidade humana de alcançar a salvação por si mesmo.

 

[4] N. T. Wright, A Ressurreição do Filho de Deus

Nota: N. T. Wright é um renomado teólogo e historiador britânico, especialista em Novo Testamento. Em A Ressurreição do Filho de Deus, ele argumenta pela historicidade da ressurreição de Cristo e sua importância central na teologia cristã.

 

[5] Santo Agostinho, Sermões sobre a Páscoa

Nota: Santo Agostinho (354-430) foi um dos mais importantes teólogos e filósofos da Igreja. Seus Sermões sobre a Páscoa abordam temas centrais da fé cristã, como a ressurreição de Cristo e sua relevância para a redenção humana.

 

[6] Justiça de Deus (Romanos 3:25-26)

Nota: No contexto bíblico, a "justiça de Deus" não se refere apenas à retribuição, mas à sua fidelidade em restaurar a relação entre Ele e a humanidade. Em Romanos, Paulo destaca que Deus demonstra sua justiça ao justificar os pecadores por meio do sacrifício de Cristo.

 

[7] Hebreus 5:7-9

Nota: Este texto destaca a humanidade de Jesus, que aprendeu a obediência por meio do sofrimento. A passagem reforça que, embora sendo Filho, Ele se submeteu à vontade do Pai, tornando-se a fonte da salvação eterna.

 

[8] Isaías 53:11-12

Nota: Este trecho faz parte da profecia do "Servo Sofredor", onde Isaías descreve o sofrimento vicário (substitutivo) do Messias, que carregaria os pecados do povo. A tradição cristã vê este capítulo como uma prefiguração da paixão e ressurreição de Cristo

 

[9] Efésios 2:8-9

Nota: Este versículo é fundamental para a doutrina da salvação pela graça. Paulo enfatiza que a salvação não é conquistada por méritos humanos, mas é um dom gratuito de Deus, acessível pela fé.

 

[10] Teologia da reconciliação

Nota: A reconciliação, no contexto teológico, refere-se à restauração da comunhão entre Deus e a humanidade, rompida pelo pecado. Cristo, por meio de sua morte e ressurreição, remove essa separação, cumprindo a justiça divina.

 

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Profecia - Um chamado urgente à transformação presente


Por Jânsen Leiros Jr.


"A revelação não é algo que simplesmente nos é dado como algo do passado ou algo a ser esperado no futuro. A revelação é a realidade de Deus em Cristo, no presente, no aqui e agora. O profeta é aquele que traz essa revelação à humanidade, não como uma especulação sobre o que será, mas como um chamado urgente à ação no presente." 

Karl Barth, Dogmatics in Outline, p. 43

 

"A esperança cristã não é apenas uma expectativa do futuro, mas é uma forma de viver, de agir e de lutar no presente. O profeta é aquele que, sob a inspiração do Espírito Santo, nos chama a viver a revelação de Deus no agora." 

Jürgen Moltmann, Teologia da Esperança, p. 238

 

"O cristão não deve esperar que a mudança venha apenas como um evento futuro, mas deve agir agora, com base na revelação que Deus dá no presente, para trazer justiça e transformar as estruturas do mundo." 

Reinhold Niebuhr, Moral Man and Immoral Society, p. 112

 

"O profetismo não pode se limitar a uma promessa para o futuro, mas deve ser vivido em ação concreta contra a maldade e as injustiças do mundo presente. Deus fala através da ação ética no agora."

Dietrich Bonhoeffer, Ethics, p. 58

 

"O profeta vive no presente, e é no presente que ele recebe a palavra de Deus. A revelação não é uma promessa distante, mas uma exigência para a transformação agora, no contexto da vida humana atual."

Walter Brueggemann, The Prophetic Imagination, p. 99

 A figura do profeta, em nossos dias, tem sido muitas vezes reduzida a um estereótipo limitado e distorcido pelas lentes de interpretações superficiais e sensacionalistas. A palavra "profeta" evoca, para muitos, a ideia de alguém que prevê o futuro ou que é um porta-voz de eventos apocalípticos, como se o profetismo fosse uma prática exclusivamente voltada para o que está por vir. Essa visão restrita, no entanto, empobrece a profundidade e a complexidade dessa vocação divina, que transcende a mera previsão de desastres ou promessas de bênçãos futuras. Em um mundo marcado pela confusão e pela busca de respostas rápidas e fáceis, a compreensão verdadeira sobre o papel do profeta se faz mais necessária do que nunca.

Nosso tempo exige uma reflexão mais profunda sobre a função dos profetas na história da revelação de Deus. O que significa, de fato, ser um profeta? Como entender sua mensagem e seu papel não apenas como preditores, mas como mediadores de uma revelação que fala ao presente, com urgência e transformação? Como reconhecer a voz profética no meio de tantos ruídos e distorções que marcam o nosso dia a dia? Este estudo sobre o profetismo busca não apenas desmistificar esses conceitos, mas também resgatar a verdadeira missão dos profetas, para que possamos, com clareza, compreender sua relevância e seu impacto na construção da relação entre Deus e sua criação. A verdadeira profecia é uma convocação ao presente, uma chamada urgente à ação no agora.

O estudo do profetismo, muitas vezes, é limitado a um conceito superficial de predição do futuro, como se o profeta fosse apenas aquele que anuncia o que está por vir. Embora não se deva negar que, em algumas passagens bíblicas, os profetas anunciam acontecimentos futuros, essa visão empobrece a complexidade e a profundidade da experiência profética. O profetismo vai muito além de ser uma mera previsão de calamidades ou promessas de bênçãos, é uma revelação viva e imediata da ação de Deus na história. O profeta é aquele que traz a palavra de Deus para o presente, com urgência, convocando o povo à resposta e à transformação.

Para compreender profundamente o papel dos profetas, precisamos superar a ideia de que eles são apenas preditores do futuro. Um exemplo clássico disso são Moisés e João Batista, figuras centrais que nos ajudam a entender que o profetismo não se limita à previsão do que está por vir. Moisés, por exemplo, não se encaixa na moldura tradicional do "anunciante do futuro". Ele não falava do futuro como algo distante, mas comunicava, de maneira viva e imediata, a vontade de Deus para o povo no presente. Ele foi, acima de tudo, o mediador de uma aliança, o instrumento através do qual Deus revelou o que o povo deveria fazer naquele momento da história. Moisés nos ensina que a verdadeira profecia é uma revelação ativa da vontade de Deus para a experiência presente.

João Batista, por sua vez, também não era um profeta do futuro no sentido tradicional. Sua mensagem não era sobre o que aconteceria em um futuro distante, mas sobre a necessidade urgente de arrependimento e preparação para a vinda do Messias. Sua profecia exigia uma resposta imediata, pois o tempo de ação de Deus era agora, não amanhã. João não estava apenas prevendo a vinda de Cristo; ele estava, como um verdadeiro profeta, chamando o povo para se converter no presente e se alinhar com o propósito de Deus, porque o tempo da salvação era já, e não depois.

Esses exemplos deixam claro que o profetismo não é uma mera prática de predição, mas uma ação de Deus no presente, uma convocação ao arrependimento e à mudança. Moisés e João Batista nos ensinam que a verdadeira profecia é aquela que se dá no agora, que nos desafia a viver de acordo com o plano divino neste momento da história. O profeta é alguém movido pela urgência de comunicar a vontade de Deus, não como um vaticínio distante, mas como um chamado direto ao presente, para que as pessoas se arrependam, se convertam e ajam de acordo com o que Deus está revelando.

A verdadeira profecia, portanto, não se limita a anunciar calamidades ou eventos distantes, mas se faz presente para transformar o agora. Deus, ao se revelar aos profetas, se revela no coração da história, nas situações concretas da vida humana. A teologia, para ser plenamente compreendida, precisa ser vivenciada na história, não como uma abstração teórica, mas como uma revelação dinâmica que transforma nossa realidade. O profeta é o mediador dessa revelação viva, e sua palavra não é uma especulação, mas uma convocação para viver de acordo com o plano divino, aqui e agora.

Ao refletirmos sobre o profetismo, precisamos entender que ele não é apenas uma previsão, mas uma atuação do Espírito de Deus na história da salvação. Estamos falando de homens e mulheres como Moisés e João Batista, que, movidos pela urgência da mensagem divina, comunicam a vontade de Deus de forma ativa e imediata. O profeta é aquele que é "borbulhante" não apenas por anunciar algo sobre o futuro, mas por ser tomado por uma força externa que o faz falar e agir em nome de Deus no presente.

                Em nosso estudo sobre o profetismo, desafiamos a visão limitada de que o profeta é apenas um "anunciante do futuro", para mostrar que a verdadeira profecia é uma convocação ao presente. O profeta é um canal de revelação divina que se faz presente na história, não apenas para falar do que está por vir, mas para transformar o agora, chamando as pessoas a responderem imediatamente ao que Deus está revelando. A profecia é uma ação que não pode ser ignorada, pois Deus está falando agora, e o tempo de agir é já.
 


terça-feira, 4 de junho de 2024

Busca por unidade - Desafios e esperanças da Igreja contemporânea

Por Jânsen Leiros Jr.

 

 “O cristianismo significa comunidade através de Jesus Cristo e em Jesus Cristo. Nenhuma comunidade cristã é mais ou menos do que isso. Seja um breve, único encontro ou a comunhão diária de anos, a comunidade cristã é apenas isso. Pertencemos uns aos outros apenas através e em Jesus Cristo. O que isso significa? Significa, primeiro, que um cristão precisa dos outros por causa de Jesus Cristo. Significa, segundo, que um cristão vem aos outros apenas através de Jesus Cristo. Significa, terceiro, que em Jesus Cristo fomos escolhidos desde a eternidade, aceitos no tempo e unidos para a eternidade.”  

Life Together; Dietrich Bonhoeffer – pág. 87 (edição inglesa, Harper & Row, 1954); tradução livre

 

A unidade na igreja de Cristo, um ideal exaltado nas Escrituras, enfrenta desafios significativos na realidade contemporânea. As diversidades humanas — culturais, sociais, teológicas e pessoais — criam barreiras que muitas dificultam a coesão. As necessidades individuais, pretensões variadas e sonhos distintos têm gerado tensões dentro da comunidade cristã, testando sua capacidade de permanecer unida. No entanto, é precisamente no meio dessa diversidade que a verdadeira essência da unidade cristã pode brilhar, quando a igreja se compromete a superar essas diferenças em favor de um propósito maior: refletir o amor e a graça de Deus no mundo.

Desafios e Oportunidades na Pós-Modernidade

Que a unidade é um tema fundamental para a saúde e eficácia do corpo de Cristo, ninguém discorda. A dificuldade está em entender o quanto esta unidade é crucial para que a igreja se mantenha relevante e pertinente no cenário social contemporâneo. E é determinante que a igreja busque e mantenha essa unidade em todos os aspectos da vida da comunidade. A tarefa, no entanto, não é fácil. Especialmente em uma época de pós-modernidade[1], quando as pessoas são expostas a uma variedade de influências e pressões que podem dividir e fragmentar a comunidade.

A igreja é composta por indivíduos com diferentes experiências, culturas e perspectivas, cada um com suas próprias necessidades e desafios. Isso pode levar a uma diversidade de opiniões e práticas, que, se não gerenciadas corretamente, podem causar divisões e conflitos. Além disso, a igreja também é influenciada pelas pressões sociais e culturais do mundo exterior, que podem tentar desviar a atenção da comunidade de seu propósito e missão.

O texto bíblico é categórico ao afirmar que a unidade é essencial para a igreja. Em João 17:20-23[2], Jesus orou para que os seus discípulos fossem unidos, e em 1 Coríntios 12:12-26[3], Paulo destacou a importância da unidade no corpo de Cristo. Logo, a unidade não é apenas um ideal teórico, mas uma necessidade prática que deve ser buscada e mantida em todos os aspectos e circunstâncias.

Nesse contexto, é fundamental que a igreja busque compreender e abraçar a diversidade, ao mesmo tempo em que busca manter a unidade. Isso pode ser feito através de uma compreensão profunda de sua natureza como o corpo de Cristo, onde cada membro tem um papel importante e é interconectado com os demais. A igreja também deve buscar uma compreensão profunda da natureza humana e de suas necessidades, para se apresentar acolhedora e amorosa com todos, sem deixar a convicção e a segurança de seus princípios.

A Pós-Modernidade e a Unidade na Igreja

A pós-modernidade afeta a percepção de unidade na igreja de várias maneiras. Em primeiro lugar, a pós-modernidade caracteriza-se por uma crítica à ideia de verdade universal e objetiva, o que pode levar a uma relativização dos valores e crenças. Isso pode causar desacordo e fragmentação dentro da igreja, pois diferentes membros podem ter diferentes perspectivas e compreensões sobre a verdade e a realidade[4].

Além disso, a pós-modernidade também traz uma crescente influência da cultura secular e do misticismo, o que pode atrair indivíduos que buscam experiências espirituais e transcendentes, mas que podem não ter uma compreensão clara da natureza da igreja e do Evangelho. Isso pode levar a uma mistura de doutrinas e práticas religiosas, tornando mais difícil a manutenção da unidade na igreja.

No entanto, a pós-modernidade também apresenta oportunidades para a igreja se adaptar e se renovar. A busca por significado e propósito na vida pode levar indivíduos a buscar a verdade e a unidade em Cristo. A igreja pode se encarnar na cultura pós-moderna, utilizando a linguagem e as estruturas da sociedade contemporânea para anunciar o Evangelho e manter a unidade.

Mantendo a Unidade na Igreja

Para superar os desafios da pós-modernidade e manter a unidade, a igreja precisa se qualificar como povo de pessoas cheias do Espírito Santo, discernindo a vontade de Deus e sendo solidárias com os pecadores. A igreja também precisa priorizar a formação de relacionamentos fortes, a vida espiritual e a adoração, além de se posicionar em amor, diante das desafiadoras mudanças culturais e sociais.

Ou seja, a pós-modernidade apresenta desafios para a unidade na igreja, mas também oportunidades para se adaptar e se renovar, mantendo sua relevância social. Afinal, a igreja precisa se manter coesa para anunciar o Evangelho de forma eficaz.

Nos próximos textos, exploraremos algumas dimensões cruciais da unidade na igreja, apoiadas por referências bíblicas e comentários teológicos relevantes. Essas dimensões incluem a unidade em Cristo, a unidade em espírito, a unidade em amor, a unidade em missão, a unidade em liderança e a unidade em comunicação. Ao abordar essas dimensões, esperamos fornecer uma visão mais completa e profunda da unidade na igreja, e inspirar seus membros a buscarem essa unidade em todos os aspectos de sua expressão.



[1] A pós-modernidade é uma corrente cultural, filosófica e artística que surgiu na segunda metade do século XX, caracterizada por uma crítica às metanarrativas e às verdades universais defendidas pela modernidade. Aqui estão alguns pontos-chave para entender a pós-modernidade:

1.       Relativismo e Pluralismo: A pós-modernidade rejeita a ideia de uma verdade absoluta e objetiva, promovendo a noção de que a verdade é relativa e depende do contexto cultural e individual.

2.       Desconstrução das Metanarrativas: Grandes narrativas ou ideologias que pretendem explicar a totalidade da experiência humana são desconstruídas e vistas com ceticismo.

3.       Fragmentação e Diversidade: Ao contrário da uniformidade e coesão buscadas na modernidade, a pós-modernidade celebra a fragmentação, a multiplicidade de perspectivas e a diversidade de identidades.

4.       Intertextualidade: A ideia de que os textos e os significados são formados por referências a outros textos e contextos, e que os significados são instáveis e abertos a múltiplas interpretações.

5.       Hibridização Cultural: Mistura de estilos, gêneros e práticas culturais diferentes, rejeitando as distinções rígidas entre alta cultura e cultura popular.

6.       Desconfiança das Instituições: Ceticismo em relação às instituições tradicionais como a igreja, o estado e as instituições educacionais, que são vistas como fontes de opressão e controle.

7.       Simulacros e Hiper-realidade: No campo da comunicação e da mídia, a pós-modernidade enfatiza a prevalência dos simulacros (cópias sem um original real) e a hiper-realidade, onde a distinção entre realidade e representação se torna obscura.

Essas características mostram como a pós-modernidade desafia as certezas e estruturas estabelecidas, promovendo uma visão do mundo mais fluida e menos centrada em verdades universais.

O conceito de "mundo líquido" de Zygmunt Bauman está intimamente relacionado às características da pós-modernidade. Bauman usa o termo "modernidade líquida" para descrever a condição social, cultural e econômica da sociedade contemporânea, onde as estruturas e instituições são fluídas, mutáveis e instáveis.

[2] João 17:20-23 (ARA):

20 Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da sua palavra; 21 a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste. 22 Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens dado, para que sejam um, como nós o somos; 23 eu neles, e tu em mim, a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste, como também amaste a mim.

Esses versículos destacam a oração de Jesus pela unidade entre Seus seguidores, desejando que eles sejam um assim como Ele é um com o Pai. Essa unidade é essencial para que o mundo creia que Jesus foi enviado pelo Pai e que os crentes são amados por Deus da mesma maneira que Ele ama Jesus.

[3] 1 Coríntios 12:12-26 (ARA):

12 Porque, assim como o corpo é um e tem muitos membros, e todos os membros, sendo muitos, constituem um só corpo, assim também com respeito a Cristo.13 Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito.14 Porque também o corpo não é um só membro, mas muitos.15 Se disser o pé: Porque não sou mão, não sou do corpo; nem por isso deixa de ser do corpo.16 Se o ouvido disser: Porque não sou olho, não sou do corpo; nem por isso deixa de o ser.17 Se todo o corpo fosse olho, onde estaria o ouvido? Se todo fosse ouvido, onde, o olfato?18 Mas Deus dispôs os membros, colocando cada um deles no corpo, como lhe aprouve.19 Se todos, porém, fossem um só membro, onde estaria o corpo?20 O certo é que há muitos membros, mas um só corpo.21 Não podem os olhos dizer à mão: Não precisamos de ti; nem ainda a cabeça, aos pés: Não preciso de vós.22 Pelo contrário, os membros do corpo que parecem ser mais fracos são necessários;23 e os que nos parecem menos dignos no corpo, a estes damos muito maior honra; também os que em nós não são decorosos revestimos de especial honra.24 Mas os nossos membros nobres não têm necessidade disso. Contudo, Deus coordenou o corpo, concedendo muito mais honra àquilo que menos tinha,25 para que não haja divisão no corpo; pelo contrário, cooperem os membros, com igual cuidado, em favor uns dos outros.26 De maneira que, se um membro sofre, todos sofrem com ele; e, se um deles é honrado, com ele todos se regozijam.

Paulo destaca a importância da unidade e da diversidade dentro da comunidade cristã. Ele compara a comunidade com o corpo humano, onde cada membro tem uma função específica, mas todos são necessários para a saúde e a função do corpo. Paulo afirma que, embora os membros sejam diferentes, todos são unidos em Jesus Cristo e que a unidade é essencial para a comunidade cristã. Ele também destaca que a dor ou a honra de um membro afeta todos os demais, e que a unidade é alcançada pelo Espírito Santo.

[4] Um especialista que discute a influência da pós-modernidade na igreja é David F. Wells. Em sua obra "No Place for Truth: Or Whatever Happened to Evangelical Theology?" (1993), Wells argumenta que a pós-modernidade, com sua ênfase no relativismo e na rejeição da verdade objetiva, tem um impacto significativo na unidade da igreja.

"A pós-modernidade, ao minar a própria noção de verdade objetiva e ao promover o relativismo, levou a uma fragmentação na igreja onde a coerência doutrinária é sacrificada no altar da preferência individual e das tendências culturais." — David F. Wells, "No Place for Truth: Or Whatever Happened to Evangelical Theology?" (p. 78).

 

quinta-feira, 2 de maio de 2024

A vida pode ter sentido Parte 2 - Frutificando o caráter de Cristo

 Por Jânsen Leiros Jr.

 


“Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio. Contra essas coisas não há lei.”  

Gálatas 5:22 e 23

 

Desde sempre a humanidade busca compreender seu propósito e significado de existência. Entre as várias filosofias e sistemas de crenças, uma ideia persiste: fomos criados para a glória de Deus. Esta concepção transcende culturas e épocas, sendo central para muitas religiões, especialmente o cristianismo. Neste contexto, a formação do caráter de Cristo no crente emerge como uma jornada de descobertas e transformações, onde o indivíduo, dia a dia, se molda à imagem divina para cumprir seu propósito máximo; o ser à semelhança de seu Filho[1].

A formação do caráter de Cristo no crente é um tema central nas Escrituras, refletindo o propósito divino para a humanidade desde os tempos antigos. No Antigo Testamento, encontramos passagens como Gênesis 1:27, que declara que fomos criados à imagem de Deus, e Deuteronômio 10:12, que nos instrui a temer o Senhor, andar em todos os seus caminhos, amá-lo e servi-lo de todo o coração e de toda a alma, enfatizando assim a busca pela semelhança com o caráter divino.

No Novo Testamento, o apóstolo Paulo escreve em Romanos 8:29 sobre a predestinação dos crentes para serem conformes à imagem de Cristo, destacando o processo de transformação espiritual que ocorre na vida do cristão. Além disso, em Efésios 4:22-24, Paulo exorta os crentes a se despojarem do velho homem e a se revestirem do novo homem, criado segundo Deus em verdadeira justiça e santidade, evidenciando a necessidade de renovação interior para refletir o caráter de Cristo.

O cerne da formação do caráter de Cristo reside na imitação de seus atributos e ensinamentos. Cristo é frequentemente retratado como a encarnação do amor, da bondade, da misericórdia e da justiça divina. Assim, o crente é chamado a refletir essas virtudes em sua própria vida. Este processo não é instantâneo, mas gradual e contínuo, exigindo uma entrega total e uma colaboração ativa com o Espírito Santo. Afinal, nenhuma árvore dá frutos desde o seu nascimento. Mas se alimenta, fortalece, desenvolve e então frutifica.

Uma das características centrais do caráter de Cristo é o amor incondicional. Jesus ensinou-nos o amor, amando incondicionalmente não apenas aqueles que lhes eram afáveis, mas também os seus inimigos atrozes[2]. Este amor transcende barreiras e preconceitos, alcançando a todos sem distinção. Ao praticar o amor abnegado, o crente não apenas reflete a natureza divina, mas também promove a reconciliação e a unidade na comunidade, sendo-lhe promotor da paz.

Reforçando nosso argumento, Calvino enfatiza que o amor de Deus é fonte do amor humano e argumentou que os cristãos são capacitados pelo Espírito Santo a amar incondicionalmente, a exemplo do que fez o Senhor. E não somente ele, pois N. T. Wright, um dos principais estudiosos do Novo Testamento, explora profundamente o tema do amor de Deus, destacando o amor sacrificial de Cristo como o modelo supremo de amor incondicional. Ele argumenta que os cristãos devem imitar esse amor cotidianamente.

Além do amor, outro aspecto bastante relevante é a humildade; traço primordial do caráter de Cristo. Ele, sendo o próprio Filho Unigênito de Deus[3], escolheu se humilhar, servindo aos outros e submetendo-se à vontade do Pai[4]. Da mesma forma, o crente é chamado a renunciar ao orgulho e à arrogância, adotando uma postura de humildade e serviço. Ao fazê-lo, ele segue o exemplo de Cristo e testemunha a verdadeira grandeza que se encontra na simplicidade e na entrega.

A humildade é uma virtude que envolve reconhecer nossas limitações, defeitos e dependência de Deus, bem como valorizar os outros e estar disposto a servi-los sem esperar reconhecimento ou recompensa. Ela se manifesta em uma atitude de submissão voluntária e respeito em relação a Deus e aos outros, e muitas vezes está associada a características como modéstia, gentileza, simplicidade e desprendimento. E embora a humildade possa se manifestar de maneiras diferentes em diferentes contextos e situações de vida, ela é uma virtude que transcende a condição econômica, social ou indisposição de se fazer evidente. É uma postura do coração que independe de circunstâncias externas.

Outro aspecto crucial na formação do caráter de Cristo é a paciência e a perseverança. Jesus enfrentou inúmeras adversidades e contratempos durante seu ministério terreno, mas jamais desistiu de sua missão. Da mesma forma, o crente é chamado a manter a fé e a esperança mesmo diante das tribulações, confiando que Deus está trabalhando todas as coisas para o bem daqueles que o amam[5]. Esta perseverança fortalece o caráter e a fé do crente, capacitando-o a enfrentar os desafios da vida com confiança e determinação.

Além dessas virtudes, a formação do caráter de Cristo também implica na renovação da mente e na transformação dos padrões de pensamento e comportamento[6]. O apóstolo Paulo exorta os crentes a serem renovados em sua mente, deixando para trás os velhos hábitos e assumindo uma nova identidade em Cristo. Esta renovação interior é um processo contínuo, que ocorre através da meditação na Palavra de Deus, da oração e do companheirismo cristão.

Jesus Cristo é o exemplo máximo de amor, humildade, paciência e perseverança, como visto em passagens como João 13:34-35, onde Ele ensina sobre o mandamento do amor mútuo, e Mateus 20:28, onde Ele declara que veio para servir e não para ser servido. A imitação de Cristo é fundamental para a formação do caráter do crente, conforme destacado em 1 João 2:6, que nos instrui a andar como Ele andou.

A formação do caráter de Cristo no crente é uma jornada de crescimento espiritual e pessoal, onde o indivíduo se torna cada vez mais semelhante ao seu Salvador. Tendo o caráter de Cristo como sentido da vida, o crente reflete os atributos divinos em sua própria existência, testemunhando ao mundo o poder transformador do Evangelho. Que abracemos esta disposição com fé e determinação, confiando que aquele que começou a boa obra em nós há de completá-la até o dia de Cristo Jesus[7].

 



[1] Romanos 8:29

[2] Lucas 23:34

[3] João 3:16

[4] Filipenses 2:5-7; Mateus 26:39

[5] Romanos 8:28

[6] Romanos 12:1-2

[7] Filipenses 1:6

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