quarta-feira, 4 de junho de 2025

Profetismo: A voz que borbulha do eterno no tempo presente

 

Por Jânsen Leiros Jr.

 

A urgência da palavra profética como expressão inadiável da vontade de Deus na história. 

 Abraham Heschel

“O profeta é um homem que sente ferozmente. Deus arrancou-lhe o coração e nele pôs o Seu próprio. Suas palavras queimam porque nascem da dor divina.” - A Teologia dos Profetas; Heschel destaca o sofrimento visceral do profeta como alguém tomado pela paixão divina — eco direto da imagem do “borbulhar”, da urgência que arde nos ossos e exige voz.

Walter Brueggemann

“A função central do profeta é imaginar alternativas ao mundo como ele é. É dar voz ao lamento reprimido e à esperança silenciada.” - A Imaginação Profética; Brueggemann reforça o papel do profeta como aquele que rompe com o discurso dominante e propõe uma nova realidade — um paralelo direto ao trecho do seu texto sobre a profecia como denúncia e proposta.

Karl Barth

“O profeta fala com autoridade, não porque é eloquente, mas porque foi interrompido por Deus.” - Dogmática Eclesiástica; Barth toca o cerne da vocação profética: não é uma escolha pessoal, mas uma interrupção divina, uma convocação que rasga o curso natural da existência — exatamente como você expressa na conclusão do texto.

No coração da história da revelação, o profeta não é meramente um anunciador de eventos futuros, mas é, sobretudo, um ser tomado por um fogo incontrolável que o impele a falar. É como uma panela posta ao fogo divino, cuja água borbulha inevitavelmente. A imagem não é apenas estética ou poética — ela expressa a tensão espiritual interna do profeta, a insuportável contenção da verdade revelada. O termo hebraico nabi (נָבִיא), muitas vezes traduzido como "profeta", sugere aquele que é chamado, sim, mas também aquele que é impelido por algo maior que si mesmo — um movimento do Espírito de Deus que não pode ser contido.

Essa compreensão não é isolada. Jeremias exprime isso com crueza: “Há em meu coração um fogo ardente, encerrado nos meus ossos; estou cansado de contê-lo, e não posso” (Jr 20.9). A palavra profética não é opcional. É uma força divina que exige liberação. O profeta não quer falar, mas precisa. Não deseja se expor, mas é compelido. Sua boca não é dele — é da revelação que arde e borbulha como lava sob a crosta da realidade.

A teologia só ganha sentido quando compreendida dentro da história. Deus não se revela em abstrações estéticas, mas nos acontecimentos, nas rupturas e nos processos. O profeta é testemunha dessa revelação. Ele não é um pensador especulativo, mas um canal involuntário da vontade de Deus, um embaixador de urgência, alguém que fala em meio a estruturas quebradas e instituições corrompidas.

Moisés e João Batista ilustram isso de maneira singular. Moisés, como o grande mediador da aliança, não prevê o futuro: ele conduz o presente, moldado pela voz divina que rompe o silêncio do deserto e das escravidões históricas. João Batista é o profeta da hora final, do "agora", que clama com voz que rasga o ermo: “Arrependei-vos, porque está próximo o Reino dos Céus” (Mt 3.2). Sua voz não era decorativa, era disruptiva. João não apontava para si, mas para aquele que viria, cujas palavras arderiam como fogo e separariam o trigo da palha (Mt 3.12).

A imagem do profeta como aquele que “borbulha” é poderosa — e merece atenção especial. Quando a água ferve, há uma fonte de calor constante, uma energia que se acumula até romper a quietude da superfície. Assim é o profeta. Deus aquece-lhe o espírito com a chama da verdade, e a pressão interna cresce até que a fala se torne inevitável. Borbulhar é mais que uma imagem: é uma forma de existência profética. Significa viver sob tensão, com o Espírito Santo como calor constante e a palavra de Deus como líquido em ebulição.

Karl Barth diria que a revelação é uma ação de Deus no tempo presente, e o profeta é o canal dessa irrupção. Walter Brueggemann vê no profeta aquele que denuncia o presente e anuncia uma alternativa moldada pelo coração de Deus. Ele não se acomoda à ordem dominante, nem negocia sua mensagem com as conveniências políticas ou religiosas. Ele borbulha — e a verdade explode, mesmo que doa.

O profeta é um desconforto encarnado. Ele perturba o rei, desmascara os sacerdotes, enfrenta o povo. Sua missão não é agradar, mas alertar. Sua tarefa é ser impopular em nome da verdade. Ele não apenas fala — ele sofre a mensagem. Carrega em seu corpo as marcas da palavra. É queimado por dentro até que as palavras escapem como vapor divino em ebulição.

A mensagem profética é para o "hoje". Ela exige arrependimento imediato, como nos dias de Jonas em Nínive, quando a cidade inteira se dobrou ao clamor da verdade. Ela denuncia a hipocrisia religiosa (Is 1.11-17), a injustiça social (Mq 6.8) e a corrupção das lideranças (Ez 34). Mas também aponta a esperança que nasce mesmo nas ruínas: “E acontecerá, depois, que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne…” (Jl 2.28).

O profetismo não é apenas denúncia — é proposta. Não é só confronto — é visão. A verdadeira profecia é um ato de responsabilidade. Dietrich Bonhoeffer entendia o profetismo como resistência à maldade real do mundo, e Jürgen Moltmann via nele a esperança ativa, que transforma a história porque crê no futuro de Deus. O profeta denuncia a injustiça, mas também oferece uma alternativa carregada de justiça, misericórdia e fidelidade (Os 6.6).

Hoje, o profeta é aquele que levanta a voz contra a desumanização, a banalização da fé, a idolatria do poder, o silêncio cúmplice das instituições eclesiásticas. Ele é aquele que vê além da propaganda e ouve o gemido dos que não têm voz. Borbulhar é também se indignar. É recusar a anestesia espiritual. É ter os ossos inflamados pela urgência do Reino.

A missão profética é uma urgência que não se cala. Como disse o apóstolo Paulo: “Ai de mim, se não pregar o evangelho” (1Co 9.16). Não se trata de escolha, mas de imposição do Alto. Não é um projeto pessoal, mas um mandato divino que arde sem consumir, como a sarça diante de Moisés.

O profeta é aquele em quem a Palavra arde. Que borbulha. Que geme. Que denuncia. Que consola. Que não pode se calar. Sua presença é incômoda, sua fala é como martelo que despedaça a rocha (Jr 23.29). Ele não cabe nos púlpitos domesticados, nem nas liturgias ajustadas ao gosto dos poderosos. Ele está na beira do deserto, na beira do abismo, na encruzilhada das decisões.

E talvez seja isso que o mundo mais precise hoje: menos opinadores e mais borbulhantes. Homens e mulheres cuja alma ferve com a verdade de Deus. Corações inflamados que não fazem da profecia um ofício, mas um testemunho ardente. Que sejam vasos em ebulição, onde a água viva da Palavra insiste em romper, porque não há como conter o que Deus está prestes a dizer. 

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Cristão - Um subversivo no mundo real

 

Por Jânsen Leiros Jr.

 

Seguir Jesus é romper com os sistemas deste mundo. Uma fé autêntica não se curva — confronta, denuncia e transforma.

 

 “Se o evangelicalismo se torna apenas mais uma marca política, ele não tem nada diferente a oferecer ao mundo. O evangelho não é uma plataforma partidária; é uma cruz.” - (Russell Moore, em entrevistas e artigos publicados pela Christianity Today)

 “A igreja americana corre o risco de perder sua alma, pois muitos pastores estão mais preocupados em atrair multidões do que em formar discípulos.” - (Eugene Peterson, em entrevistas e no livro “O Pastor Contemplativo”)

 

“Mas vem cá... ser cristão de verdade não é meio perigoso demais hoje em dia?” — foi o que me perguntou um jovem numa roda de conversa depois de uma palestra. A pergunta era simples, mas carregava uma inquietação legítima. Não respondi de imediato. Fiquei com ela na cabeça. Porque, no fundo, ele estava certo em se espantar. O cristianismo genuíno, quando levado a sério, não cabe nos moldes prontos que o mundo e o evangelicalismo moderno[1] oferecem.

A verdade é que o cristão autêntico nunca foi domesticável. Desde os profetas do Antigo Testamento até o escândalo da cruz, o chamado de Deus sempre confrontou sistemas injustos, poderes corrompidos e religiões confortáveis. Seguir Jesus é, em si, um ato de subversão. Neste texto, vamos falar dessa postura — não como um conceito distante, mas como um jeito de viver que incomoda, denuncia e propõe outro caminho. Vamos explorar esse tema teológica, bíblica e socialmente, resgatando a tradição profética, o exemplo de Jesus e dos apóstolos, e as tensões vividas por quem ainda ousa caminhar na contramão.

A Subversão Cristã: Desafiando Sistemas de Poder

Você já reparou como, às vezes, viver de forma honesta, justa e amorosa parece ser quase um protesto silencioso? É disso que estamos falando. O cristão subversivo é aquele que, como Jesus, não se dobra às estruturas de poder do mundo. Em João 18:36, Jesus declara: “O meu Reino não é deste mundo” — e isso não é uma figura de linguagem devocional, é um posicionamento radical. Ele estava diante de Pilatos, o representante do império, e não recuou. Sua afirmação rompe com toda tentativa de conciliação entre o Reino de Deus e os reinos deste mundo.

Para o cristão, então, a lealdade a esse Reino eterno deve superar qualquer comprometimento com estruturas políticas, religiosas ou econômicas. E, sejamos honestos, isso incomoda. Porque o cristão subversivo não vive para ser aceito pelo sistema, mas para obedecer à lógica do Reino — e essa lógica é quase sempre o oposto do que o mundo valoriza: enquanto o mundo celebra a força, o Reino exalta a mansidão; onde o mundo busca lucro, o Reino proclama generosidade; onde se cultua o ego, o Reino prega o serviço.

Essa postura não é ingênua nem romântica. É profética. Porque, ao viver os valores do Reino, o cristão acaba por se tornar uma ameaça real aos mecanismos de opressão, à manipulação da fé, ao uso indevido do nome de Deus. Ele se torna como uma pedra no sapato da ordem estabelecida. E isso não é novo.

O Cristão Subversivo na Tradição Profética

Se voltarmos às Escrituras, veremos que essa subversão não surgiu no Novo Testamento. Ela pulsa desde os profetas antigos. Eles não eram apenas vozes do futuro, eram denúncias vivas do presente. Gente que andava nas praças, nas portas da cidade, enfrentando reis e sacerdotes corruptos. Veja Amós. Um simples boiadeiro. Mas sua voz ecoa como um trovão contra os poderosos de Israel: “Aborrecem na porta ao que repreende, e abominam o que fala com integridade” (Amós 5:10). Ele grita por justiça como quem tem fogo nos ossos: “Corra o juízo como as águas, e a justiça como um ribeiro perene” (v. 24).

Jeremias, ainda jovem, tentou recuar, mas Deus o impediu: “Não digas: Eu sou uma criança; porque a todos a quem eu te enviar, irás” (Jeremias 1:7). E o que ele teve de enfrentar? Uma nação inteira afundada na hipocrisia religiosa e alianças políticas podres. E mesmo assim, proclamou: “Não confiem em palavras enganosas, dizendo: 'Templo do Senhor, templo do Senhor!'” (Jeremias 7:4). A crítica era clara: uma religião que justifica injustiça é uma blasfêmia.

João Batista, já no Novo Testamento, continuou essa linhagem. Vestido de forma estranha, morando no deserto, comia gafanhotos e mel silvestre — e suas palavras queimavam como uma tocha: “Raça de víboras! Quem vos ensinou a fugir da ira futura?” (Mateus 3:7). Confrontou a vida pessoal de Herodes, o governador, e pagou com a cabeça. Isso é subversão. Isso é coragem profética. O cristão de hoje, se quiser ser fiel ao evangelho, terá de carregar esse mesmo espírito.

O Cristão Subversivo no Mundo Contemporâneo

Hoje, a subversão cristã não se dá mais diante de impérios romanos ou de tronos monárquicos. Mas os impérios continuam aí, com outros nomes: sistemas econômicos predatórios, religiões mercantilizadas, ideologias políticas idólatras. E, em meio a isso, o cristão que vive o evangelho de forma sincera e radical aparece como uma voz dissonante.

Pense bem: num mundo que valoriza a estética acima da ética, o consumo acima da compaixão e a imagem acima da integridade, viver os valores do Reino é um escândalo. O cristão subversivo não negocia seus valores por conveniência, não se cala para manter privilégios, não coopera com sistemas que oprimem — mesmo que isso custe amigos, posição ou segurança.

E isso não significa ser beligerante ou reativo. Jesus ensinou: “Bem-aventurados os pacificadores” (Mateus 5:9). Mas paz, aqui, não é ausência de conflito; é presença do Reino. O cristão é aquele que leva a paz de Cristo para dentro das tensões do mundo, não aquele que foge delas. Ele fala quando todos preferem o silêncio. Ele age quando o comum é cruzar os braços. Ele vive em fidelidade quando a hipocrisia é moeda corrente.

O Ódio Produzido pela Subversão Cristã

E não se engane: essa fidelidade gera reações. “Se o mundo vos odeia, saibam que me odiou antes de vós” (João 15:18). O próprio Jesus nos advertiu: viver o evangelho de forma autêntica incomoda, porque expõe, revela, confronta. E o mundo, em suas estruturas corrompidas, não tolera ser confrontado.

A história da Igreja é uma galeria de mártires. Homens e mulheres que não abriram mão de sua convicção, mesmo quando isso lhes custou tudo. Estêvão, o primeiro mártir, morreu apedrejado por anunciar um Reino que não se dobrava ao templo nem à tradição. Pedro foi crucificado. Paulo, decapitado. E ao longo dos séculos, milhares seguiram esse mesmo caminho. Ainda hoje, em muitos lugares do mundo, há cristãos presos, perseguidos e mortos — não por serem violentos, mas por serem fiéis demais.

Mas o mais doloroso é que a perseguição, às vezes, vem de dentro. Da institucionalização da fé. Da religiosidade que se vende ao sistema. Do evangelicalismo de mercado que transforma o evangelho em produto e os fiéis em consumidores. O cristão subversivo se vê, muitas vezes, sozinho — mas nunca abandonado.

A Vida do Cristão Subversivo e a Perseguição

Viver como subversivo do Reino é viver com os olhos na eternidade e os pés no chão. É entender que esta vida é uma missão e não um palco de conquista pessoal. O cristão subversivo carrega a cruz — não como símbolo decorativo, mas como estilo de vida. E cruz não é apenas sofrimento; é entrega, é serviço, é fidelidade até o fim.

Ele sabe que o caminho é estreito (Mateus 7:13-14), que o mundo odiará sua luz (João 3:19-20), mas também sabe que a fidelidade produz fruto, mesmo que invisível aos olhos. O Reino cresce como fermento na massa (Mateus 13:33), silenciosamente, mas com poder transformador.

E, por fim, ele vive com a esperança que sustenta: “Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus” (Mateus 5:10). Essa é sua certeza, seu consolo, sua glória. Porque, ainda que o mundo o rejeite, ele é aceito por Aquele que venceu o mundo (João 16:33).

Um chamado irrecusável

Talvez você tenha lido tudo até aqui e esteja se perguntando: “Mas então... dá mesmo para viver assim hoje? Vale a pena?” E eu te digo: não só dá, como é a única forma verdadeiramente cristã de existir neste mundo. O restante é caricatura, verniz, religião domesticada — e isso Jesus nunca aprovou. Lembra-se do que Ele disse aos mornos de Laodiceia? “Porque és morno, e não és quente nem frio, vomitar-te-ei da minha boca” (Apocalipse 3:16). Forte, não? Mas necessário.

O tempo da omissão acabou. O tempo da conveniência acabou. O tempo de usar o nome de Cristo para proteger zonas de conforto ou ideologias humanas está sendo exposto e derrubado como ídolo frágil. O Espírito de Deus está convocando os que têm ouvidos para ouvir. E o chamado é claro: ou você se posiciona no Reino, ou será engolido pelo sistema.

Não há mais espaço para uma fé que se esconde atrás de versículos fora de contexto. Não há mais tempo para discursos que não se tornam prática. A cruz não é enfeite de pescoço. É sentença de morte para o velho eu. É caminho estreito. É entrega total. Paulo disse: “Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gálatas 2:20). Isso é mais do que poesia: é a anatomia da nova vida. E essa nova vida é, por natureza, subversiva.

Se o seu cristianismo não incomoda o mundo à sua volta, talvez ele não seja o evangelho de Jesus, mas um simulacro moldado para agradar. E se o Cristo que você segue nunca confronta nada em você nem ao seu redor, talvez você tenha domesticado o Leão de Judá em um cordeirinho de pelúcia. Mas Jesus não veio para afagar consciências. Ele veio para despertá-las.

Então, pense: que tipo de cristão você tem sido? Um agente de manutenção do status quo? Ou um discípulo que, como os de Atos 17:6, vira o mundo de cabeça para baixo? A hora de decidir não é amanhã. É agora. Porque o Reino já chegou. E sua justiça — aquela que incomoda os poderosos e exalta os humildes — está batendo à sua porta.

A mudança é urgente. A exigência é certa. E o chamado é irrecusável.

 



[1] O termo “evangelicalismo moderno”, está se referindo, com senso crítico, a uma vertente do evangelicalismo que, embora se identifique com os princípios da fé cristã, muitas vezes acaba:

·         Acomodando-se aos padrões culturais dominantes, buscando aceitação ou relevância social a qualquer custo;

·         Reduzindo o Evangelho a slogans ou fórmulas de sucesso pessoal, esvaziando seu caráter profético, contracultural e profundamente ético;

·         Aderindo a estruturas de poder político e econômico, tornando-se cúmplice de ideologias que contradizem os valores do Reino de Deus;

·         Negligenciando a centralidade de Cristo crucificado, substituindo o discipulado pelo triunfalismo ou moralismo;

·         Transformando a fé em produto de mercado religioso, com culto à performance, à visibilidade e ao crescimento numérico.

Esse “evangelicalismo moderno”, portanto, é o que denunciamos como superficial, domesticado e incapaz de encarnar a radicalidade do seguimento de Jesus — que é, essencialmente, subversivo, transformador e incompatível com os ídolos deste século.

 

terça-feira, 22 de abril de 2025

Entre o trono e o espelho - quando o louvor se torna autoajuda


 Por Jânsen Leiros Jr.

 O que estamos realmente cantando quando louvamos?

Uma provocação necessária: estaríamos exaltando a Deus — ou apenas massageando nossos egos pilhados de religiosidade?

Bob Kauflin

“O louvor é a prática de valorar Cristo acima de tudo; é o transbordar de um coração cativado pela cruz.”

Matt Redman

“A chave para um louvor verdadeiro são os adoradores, não a performance; é um povo rendido que responde ao Rei.”

John Piper

“Deus é mais glorificado em nós quando estamos mais satisfeitos n’Ele, e o verdadeiro louvor nasce dessa satisfação, não de auto exaltação.”

John MacArthur

“O louvor não existe para entreter a Deus, mas para nos humilharmos e exaltar o Seu nome em espírito e em verdade.”

O QUE SE TORNOU, AFINAL, O LOUVOR CONTEMPORÂNEO?

Onde antes exaltávamos a majestade de Deus, sua santidade e soberania — cantando a um Deus que é o totalmente outro — hoje parece que temos nos voltado para canções que nos colocam no centro. A liturgia da adoração deu lugar à liturgia da autoafirmação. O trono foi substituído pelo espelho. Este texto é um convite à reflexão sobre essa mudança silenciosa, porém profunda, que transformou parte do louvor em uma espécie de autoajuda espiritualizada — e sobre o urgente retorno ao louvor bíblico: reverente, rendido, centrado em Deus e não em nós.

É verdade: não se trata de rejeitar a beleza melódica ou a qualidade técnica das canções modernas. Existem, sim, louvores profundamente bíblicos e espiritualmente saudáveis sendo compostos hoje. Mas meu incômodo vai além do som. Trata-se do centro. De quem ou do que se tornou o sujeito oculto, ou antes, o sujeito evidente da adoração: nós mesmos.

Muitas das canções mais entoadas atualmente giram em torno de frases como “você tem valor”, “você é precioso”, “Deus vai te exaltar”, “te dar vitória”, “abrir portas”, “curar sua alma ferida”. Tudo verdade, se lido no contexto certo. Mas, isolado, isso se torna a catequese de um hedonismo piedoso — onde o homem se torna o fim último da ação divina. E Deus, um tipo de gênio da lâmpada celestial.

Mas a oferta de Deus, como bem diz o apóstolo Paulo, foi a cruz — “porque a mensagem da cruz é loucura para os que estão perecendo, mas para nós, que estamos sendo salvos, é o poder de Deus” (1 Coríntios 1.18). Ele não ofereceu uma promessa de conforto, mas um chamado ao discipulado — com renúncia, cruz, perseverança: “Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome diariamente a sua cruz e siga-me” (Lucas 9.23), “Se alguém quiser ser meu discípulo, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mateus 16.24). O Filho amado não veio para nos mimar, mas para nos salvar. E isso nos deveria bastar: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que este fosse salvo por meio dele” (João 3.16-17).

A lógica do Reino é esta: “Se com Ele sofremos, com Ele também seremos glorificados” (Romanos 8.17) — mas a glória só vem depois da cruz.

O louvor que se oferece como alento emocional, mas não conduz ao arrependimento, é um embuste. A música que massageia o ego, mas não leva ao trono de Deus, é apenas entretenimento religioso. E isso é um risco grave. Como nos alertava A. W. Tozer, “o cristianismo moderno se tornou racionalista e centrado no homem, em vez de ser espiritual e centrado em Deus”.

No passado, nossos hinos diziam “Tu és fiel, Senhor”, “Santo, Santo, Santo”, “Grandioso és Tu”, “Te exaltamos, ó Cordeiro”. A gramática da adoração era vertical, sacra, cheia de reverência. Hoje, muitas letras parecem mais janelas de autoajuda que altares de rendição. Onde antes dizíamos “Tu és”, agora dizemos “Eu sou”. Onde se dizia “Te exaltamos”, agora se ouve “eu vencerei”.

E não é que toda música moderna seja má. Deus tem levantado adoradores sinceros nesta geração — compositores e ministros que compreendem que louvor é sacrifício, não agrado, como declara a Escritura: “Por meio de Jesus, ofereçamos a Deus, continuamente, sacrifício de louvor, que é o fruto de lábios que confessam o seu nome” (Hebreus 13.15). Mas são minoria. E não podemos confundir exceção com regra.

O louvor bíblico é centrado em Deus e na sua glória. Ele nasce do temor — “Tema toda a terra ao Senhor; temam-no todos os habitantes do mundo” (Salmo 33.8), passa pela gratidão — “Entrem por suas portas com ações de graças e em seus átrios com louvor; deem-lhe graças e bendigam o seu nome” (Salmo 100.4), floresce na confiança — “Ele pôs um novo cântico em minha boca, um hino de louvor ao nosso Deus. Muitos verão isso e temerão, e confiarão no Senhor” (Salmo 40.3), e se consuma na obediência — “Acaso o Senhor tem tanto prazer em holocaustos e sacrifícios quanto em que se obedeça à sua palavra? A obediência é melhor do que o sacrifício” (1 Samuel 15.22). Ele não é um lugar de consolo terapêutico apenas, mas de consagração total. Ele não massageia o coração do homem; ele o oferece, quebrantado, diante do trono — “Os sacrifícios que agradam a Deus são um espírito quebrantado; um coração quebrantado e contrito, ó Deus, não desprezarás” (Salmo 51.17).

Precisamos voltar. Voltar ao Deus que não bajula, mas santifica. Que não promete conforto, mas dá propósito. Que nos leva aos desertos não por crueldade, mas por misericórdia — “Lembrem-se de como o Senhor, o seu Deus, os conduziu por todo o caminho no deserto durante estes quarenta anos, para humilhá-los e pô-los à prova, a fim de saber o que estava em seus corações... Ele os humilhou, fazendo-os passar fome e depois os sustentou com maná... para ensinar-lhes que nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca do Senhor” (Deuteronômio 8.2-3). A confiança, como diz Paulo, nasce da perseverança, não da comodidade — “a tribulação produz perseverança; a perseverança, um caráter aprovado; e o caráter aprovado, esperança” (Romanos 5.3-4).

Como escreveu Dietrich Bonhoeffer, mártir da fé diante do nazismo: “A graça barata é o inimigo mortal da Igreja. É a graça sem discipulado, sem cruz, sem Jesus Cristo vivo e encarnado.”

Que o nosso louvor, então, não seja barato. Que ele custe nosso orgulho, nossa vontade, nosso centro. E devolva o trono a quem de direito: ao Rei dos reis. 

O Cordeiro no Trono - A Surpreendente Vitória do Amor


Por Jânsen Leiros Jr.

 

A ressurreição é mais do que uma demonstração mágica de poder. É a manifestação da vitória da vida sobre a morte — o caminho trilhado pelo Cordeiro rumo ao trono.

Karl Barth

"A majestade de Deus se revela na humilhação de Jesus Cristo; seu trono não está acima do sofrimento humano, mas bem no centro dele."

Jürgen Moltmann

"A ressurreição de Cristo é a resposta de Deus à crucificação; o trono do Cordeiro é o lugar onde a esperança ressurge do coração da dor."

Tomás de Aquino

"O Cristo que reina é o mesmo que se entregou; não há glória sem a cruz, pois nela se manifesta o amor que salva."

Dietrich Bonhoeffer

"A ressurreição de Cristo não é o cancelamento da cruz, mas sua confirmação. O Crucificado é o Ressurreto, e é assim que Ele reina — não escapando da dor, mas triunfando através dela."

N. T. Wright

"A ressurreição é o momento em que a nova criação irrompe dentro da velha; é o trono erguido no coração da tragédia, onde o Cordeiro reina não apesar da morte, mas por ter passado por ela."

Karl Barth

"A ressurreição não é a glorificação de um herói caído, mas a proclamação de que o Cordeiro morto está vivo — e, exatamente por isso, é digno de abrir o livro e governar o mundo."

No calendário cristão, o Domingo da Ressurreição é o clímax da esperança. Após a dor da cruz e o silêncio do sepulcro, o anúncio da vida rompe o véu da desesperança e inaugura uma nova realidade. No entanto, o que poucos percebem é que a ressurreição não é apenas o ponto final de um drama — é o ponto de partida de uma entronização. O túmulo vazio não é só sinal de milagre; é selo de autoridade.

Ao ressuscitar, Jesus não apenas vence a morte — Ele inaugura um novo tipo de reinado. Não é entronizado com pompas humanas, mas como o Cordeiro, ferido e vitorioso. No centro da revelação apocalíptica, João nos conduz além do jardim vazio e da pedra removida. Ele nos transporta ao trono de Deus, onde a verdadeira cena pascal se desenrola com toda sua beleza paradoxal.

A TEOLOGIA DO CORDEIRO: FORÇA NA FRAGILIDADE

Entre os ecos celestes e os mistérios que envolvem o trono eterno, há uma cena que desafia toda lógica humana: um Cordeiro. Mas não qualquer cordeiro — um Cordeiro que parecia ter sido morto. Não um leão rugindo em glória, não um rei revestido de guerra, mas um Cordeiro — frágil na aparência, mas absoluto em autoridade.

Apocalipse 5:6 descreve: “E olhei, e eis que estava no meio do trono... um Cordeiro como havendo sido morto.” O contraste é proposital. João ouve a proclamação do Leão de Judá, mas quando olha, vê um Cordeiro. Essa inversão revela o coração da teologia cristã: a verdadeira realeza de Cristo não está em sua força militar, mas em sua entrega sacrificial. O poder que conquista não é o da espada, mas o da cruz. A autoridade que prevalece não é a que domina, mas a que se entrega.

UM REINADO QUE DESAFIA O ESPÍRITO DO MUNDO

Essa cena confronta diretamente o espírito triunfalista que permeia muitos púlpitos modernos, nos quais Cristo é apresentado quase como um coach espiritual, um general bélico ou um empresário celestial pronto a empoderar seus seguidores para o sucesso terreno. Mas o trono que João vê não é ocupado por um conquistador ufanista — é ocupado por um Cordeiro imolado.

A lógica do Reino de Deus subverte a lógica do mundo. Em vez de glória visível, há feridas visíveis. Em vez de louros terrenos, há marcas de cravos. Jesus não é coroado apesar da cruz, mas por causa dela. Filipenses 2:8–9 expressa isso com clareza: “E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz. Por isso Deus também o exaltou soberanamente...”

A vitória da ressurreição, portanto, não é uma negação do sofrimento, mas sua redenção. E isso é escandaloso para uma fé que insiste em suprimir o sofrimento em nome de uma espiritualidade triunfante.

A ADORAÇÃO CÓSMICA AO CORDEIRO

A resposta do céu a essa entronização é a adoração. Toda a criação — anjos, anciãos, seres viventes e vozes incontáveis — se prostram diante do Cordeiro. Apocalipse 5:12 registra: “Digno é o Cordeiro que foi morto de receber o poder, e riquezas, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor.” A centralidade de Cristo é absoluta. Não há outro digno. Nem sistema religioso, nem profeta, nem nação, nem ideologia. O trono pertence ao Cordeiro, e só a Ele.

É importante destacar: Cristo não reina apesar de ter sido morto — Ele reina como aquele que foi morto. A sua morte é o ato fundador do seu Reino. A cruz não foi um contratempo no plano — foi o plano.

A ESPIRITUALIDADE DA ENTREGA: UM CHAMADO AO SEGUIDOR

Esse retrato do Cristo glorificado deve ser um espelho para os discípulos. A igreja é chamada a seguir o Cordeiro por onde quer que vá (Ap 14:4), o que significa viver segundo a mesma lógica da entrega, da humildade, do serviço e da confiança na justiça de Deus — ainda que essa justiça demore a se revelar plenamente.

Isso desafia a teologia de vitrine, que vende “milagres” como se fossem produtos e a fé como moeda de troca. O Cristo do Apocalipse não se parece com esses ídolos. Ele reina não para nos mimar, mas para nos formar. Não para nos dar o mundo, mas para nos ensinar a carregar a cruz até a glória.

CONCLUSÃO: UM REINO DE ESPERANÇA CONTRA TODA ESPERANÇA

O Cordeiro no trono é o anúncio de que a última palavra não pertence ao império, ao pecado ou à morte. Ela pertence àquele que venceu, não por esmagar, mas por se deixar moer (Isaías 53:5–7).

A ressurreição é o selo dessa vitória silenciosa, escandalosa, divina. Em um tempo de adorações distraídas, fé superficial e espiritualidade de palco, o chamado é para nos rendermos novamente — ou talvez pela primeira vez — ao Cordeiro.

Porque Ele vive, o trono está ocupado. E porque o trono está ocupado, há esperança.

 

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Jesus o Cordeiro: Símbolo, silêncio e sacrifício

 

Por Jânsen Leiros Jr.

 

Quando o símbolo se faz carne e o silêncio grita redenção. A presença do Cordeiro atravessa a história — do Éden ao Calvário, do altar ao pão. Mais que uma lembrança pascal, uma entrega plena: viva, silenciosa e eterna. 

Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI)

"O sacrifício de Cristo é o único que dá sentido a todos os sacrifícios que precederam; Ele é o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo e redime toda a humanidade."

Hans Urs von Balthasar

"A cruz de Cristo é o ponto em que todas as sombras se encontram, onde o símbolo de todas as esperanças se torna a realidade, e o Cordeiro sacrificado revela toda a profundidade do amor de Deus."

João Calvino

"Cristo, nosso Cordeiro, não veio apenas como símbolo da redenção, mas como a própria realidade da expiação, substituindo a antiga Páscoa com o preço de Sua própria vida."

Martyn Lloyd-Jones

"O sacrifício de Cristo não é apenas uma lição moral ou uma alegoria; Ele é o cumprimento de tudo o que foi apontado pelas sombras da Lei, especialmente pelo Cordeiro Pascal. Em Sua morte, a verdadeira Páscoa é consumada."

Jonathan Bernis

"O Cordeiro Pascal, sacrificado durante o Êxodo, é uma sombra que aponta diretamente para Yeshua, o verdadeiro Cordeiro de Deus, cuja morte nos liberta de toda escravidão espiritual."

Itzhak Shapira

"A figura do Cordeiro na Páscoa não é apenas um rito antigo, mas um testemunho da obra de Yeshua, que, ao morrer como o Cordeiro sacrificial, cumpre a promessa de redenção de Israel e do mundo." 

Todos os anos, principalmente por volta do período da Páscoa, surgem discussões sobre questões consideradas pilares da fé cristã e que, em contrapartida, representam a negação primordial de crenças contrárias ao cristianismo. E é bem verdade que, com a popularização das redes sociais e sua utilização para disseminar ideias, a difusão de pensamentos que tentam esvaziar a fé no Cordeiro de Deus tem sido imensamente ampliada.

Quando tais ideias ou apologias acaloradas e contrárias veem daqueles que vivem fés divergentes, entende-se facilmente, pois a própria conceituação de suas crenças exclui, por definição, a identidade de Jesus como esse Cordeiro de Deus. O que causa maior preocupação — ou mesmo um incômodo — no entanto, é quando tais defesas, ou poderíamos chamar de ataques, não passam de fogo amigo no confronto de pensamentos teológicos.

Recentemente, uma digital influencer afirmou, em um vídeo que circula nas redes sociais[1], que Jesus não é o Cordeiro Pascal. Ela sustenta que a única menção a Jesus como tal é feita por Paulo, e que Paulo, afinal, não estava com Jesus na Ceia da Páscoa. Ela argumenta, ainda, que nesta mesma Ceia, Jesus se refere apenas ao pão e ao vinho como seu corpo e sangue, mas não faz menção de ser ele o cordeiro. Isso, segundo ela, invalidaria a interpretação de Jesus como Cordeiro Pascal, apontando tal leitura como um grave equívoco teológico. Para ela, o cordeiro da Páscoa judaica estaria apenas relacionado à festa em si, e não à morte, ressurreição ou expiação, como se a Páscoa fosse mero evento de celebração identitária, e não memorial da redenção.

Mas... será mesmo?

Será que essa ausência explícita do cordeiro na Ceia é reveladora e determinante para sustentar essa desconstrução da simbologia cristã? Ou seria exatamente esse silêncio, juntamente com outros detalhes profundos e coerentes, a chave para a revelação tácita, contundente e inevitável da identidade de Jesus como o Cordeiro de Deus?

Para isso, é preciso dar alguns passos para trás. E voltar ao início.

Antes do Êxodo: o cordeiro já sangrava

O cordeiro morto no Êxodo, na noite da libertação dos hebreus da escravidão do Egito, não foi o primeiro cordeiro sacrificado na Bíblia. Longe disso. A lógica da substituição já palpitava nos primeiros capítulos do Gênesis, como uma sombra que anunciava o mistério da cruz.

A oferta de Abel (Gn 4:4), feita dos primogênitos do rebanho, já revela que a vida inocente é recebida por Deus como oferta agradável. O autor de Hebreus, aliás, reconhece Abel como o primeiro mártir da fé sacrificial. Logo adiante, no Éden, Deus cobre a nudez de Adão e Eva com peles — o que sugere a morte do primeiro animal da história para cobrir a vergonha do pecado humano. A veste é feita com sangue. A inocência cobre a culpa.

Mas o episódio mais simbólico e antecipatório do sacrifício substitutivo é o de Abraão e Isaque. Ali, sobre o monte Moriá, Deus provê um carneiro para morrer no lugar do filho. Um pai disposto a entregar o filho, e um cordeiro que toma o lugar. Não é difícil perceber ali o eco da cruz. O próprio Martyn Lloyd-Jones, gigante da tradição reformada, via nesse episódio um prenúncio direto da substituição penal realizada por Cristo, o verdadeiro “Deus proverá para si o cordeiro”.

Tudo isso ocorre antes mesmo da instituição da Páscoa no Êxodo. Ou seja: a teologia do cordeiro antecede o Egito.

O Cordeiro da Páscoa: símbolo da redenção

Quando chegamos à noite fatídica de Êxodo 12, o cordeiro é finalmente fixado como memorial. Um cordeiro sem mácula deveria ser morto. O sangue passado nos umbrais da porta impediria o anjo da morte de ferir os primogênitos daquela casa. Aqui, a equação é direta: um morre para que o outro viva. É o ápice da substituição.

Ignorar o conteúdo sacrificial do cordeiro pascal, como faz a tal influencer, é ler Êxodo como um rito cultural e não como revelação de um princípio espiritual. O cordeiro morre no lugar. E quem estiver abrigado sob o sangue está protegido da morte. A leitura messiânica, tanto entre judeus convertidos quanto entre cristãos antigos, sempre viu ali a semente do sacrifício de Cristo.

Basta ler os Pais da Igreja: Inácio de Antioquia, Irineu, Justino... todos reconhecem a tipologia do cordeiro. E, mais recentemente, o teólogo católico Joseph Ratzinger (Bento XVI) escreveu que “o verdadeiro cordeiro pascal agora é uma pessoa. A carne e o sangue da antiga páscoa agora se convertem no próprio corpo de Cristo, dado em sacrifício”. A ceia se converte em altar. O cordeiro está ali — mas já não sobre a mesa, e sim no homem que parte o pão.

O silêncio que fala

Mas, e na Ceia? Por que Jesus não se refere diretamente a si como o cordeiro?

Exatamente porque já não era necessário apontar para o símbolo. Ele era o cumprimento do símbolo. O cordeiro não precisa mais ser lembrado com palavras quando está ali, presente, prestes a ser imolado — em carne, sangue, alma e missão. Diante do mistério da redenção que se aproxima, o silêncio não é omissão, é plenitude.

Na mesa do Sêder, três elementos compunham a liturgia memorial: o pão, o vinho e o cordeiro. No entanto, ao renovar o sentido da Ceia, Jesus destaca apenas dois: o pão e o vinho. Não porque o cordeiro perdeu valor, mas porque seu valor foi consumado n’Ele. O pão já não representava apenas o alimento da pressa, nem o vinho o fruto da festa. Agora, ambos se tornam memória viva do corpo e do sangue do verdadeiro Cordeiro — que, por isso mesmo, não volta ao prato, porque foi entregue de uma vez por todas.

Essa omissão aparente é, na verdade, o testemunho definitivo: o Cordeiro está ali, à mesa, e irá à cruz. O símbolo é absorvido pela realidade. A profecia se encarna. A sombra se curva à luz.

O teólogo anglicano John Stott, em sua obra-prima A Cruz de Cristo, observa com precisão: a ausência do cordeiro na fala de Jesus não representa uma lacuna, mas o ápice da revelação simbólica. Ele não precisa dizer: “Eu sou o cordeiro” — Ele é o Cordeiro. Sua morte iminente grita mais alto do que qualquer afirmação verbal. O cordeiro da nova aliança já não se repete a cada ano. Ele morre uma vez — e para sempre.

A confirmação dos evangelhos: João vê e aponta

A teologia do cordeiro em Jesus não depende apenas de Paulo, como se afirma no vídeo citado. O próprio evangelista João relata que, ao ver Jesus se aproximando, João Batista exclama: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” (Jo 1:29). Uma expressão densa, cheia de ecos veterotestamentários, especialmente da tipologia do Êxodo e das palavras de Isaías sobre o Servo Sofredor (Is 53:7), levado como cordeiro ao matadouro.

É também João quem relata, com detalhe litúrgico, que Jesus morre exatamente no momento em que os cordeiros pascais eram imolados no Templo (Jo 19:31–36). E é João quem conecta a morte de Cristo ao cuidado profético da Páscoa ao dizer que nenhum de seus ossos foi quebrado — tal como exigia o mandamento mosaico (Êx 12:46; Sl 34:20). Isso não é acaso. É cumprimento.

A leitura rabínica messiânica: quando o cordeiro ganha voz entre os judeus

Mas a beleza do argumento cristão sobre Jesus como o Cordeiro Pascal não repousa apenas sobre os pilares da teologia sistemática reformada ou patrística. Ele encontra eco também entre rabinos messiânicos, judeus que, crendo em Yeshua (Jesus) como o Messias, nos ajudam a reler a tipologia mosaica com os olhos do cumprimento. E que reforçam: o Cordeiro do Êxodo era uma sombra. Cristo é a substância.

Um dos mais respeitados nomes nessa linha é o rabino Dr. Jonathan Bernis, autor de A Jewish Guide to the Passover e líder do ministério Jewish Voice Ministries International, com sede em Phoenix, Arizona. Bernis afirma com veemência que o Cordeiro Pascal — o Korban Pesach — era uma antecipação profética da obra de redenção consumada por Yeshua na cruz, e que todos os elementos da celebração do Sêder apontam, profética e simbolicamente, para Ele.

Outro expoente é o rabino messiânico Itzhak Shapira, autor do impactante The Return of the Kosher Pig. Shapira, nascido em Israel e rabino ordenado, dirige a Yeshivat Shuvu, uma escola internacional de discipulado messiânico. Em seus ensinos, ele demonstra como o Mashiach ben Yosef — o Messias Sofredor — se manifesta de forma inequívoca na Páscoa, e como Jesus cumpre perfeitamente os requisitos do Cordeiro sacrificial, tanto em sua inocência quanto no momento de sua morte: “na hora em que os cordeiros eram mortos no Templo, Yeshua entregava seu espírito na cruz.”

Caberia ainda mencionar o testemunho de Dr. Michael Brown, teólogo judeu-messiânico, autor de Answering Jewish Objections to Jesus, e figura presente em debates acadêmicos entre cristãos e judeus ortodoxos. Brown não apenas sustenta, mas argumenta com profundidade exegética que a narrativa do Evangelho de João conecta intencionalmente Jesus ao cordeiro pascal (Jo 19:36), quando afirma: “Nenhum dos seus ossos será quebrado”, citando o mandamento de Êxodo 12:46.

Esses nomes e suas contribuições não apenas ampliam a base argumentativa como nos conduzem a um entendimento mais sólido de que a fé cristã não nasceu à revelia do judaísmo, mas brotou de dentro dele — das suas festas, da sua esperança, da sua liturgia e da sua promessa.

Sim, Ele é o Cordeiro

Portanto, ao contrário do que tenta afirmar o vídeo mencionado, a identidade de Jesus como o Cordeiro Pascal não se apoia em uma única fala de Paulo, mas numa linha teológica profunda, ampla, coerente e revelada desde o Gênesis. Está escrita na história de Abraão e Isaque. Está cantada nos Salmos. Está desenhada nos contornos do Êxodo. Está dramatizada nos evangelhos. Está celebrada na Ceia. E está proclamada no Apocalipse, onde João declara que o Cordeiro está no trono e recebe honra, glória e poder para todo o sempre (Ap 5:12–13).

Negar isso não é só um problema de interpretação. É um problema de revelação. Porque, para quem tem olhos de fé, o Cordeiro sempre esteve lá. Na mesa, na cruz… e no trono.

 

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