domingo, 16 de novembro de 2025

Consciência dialogante e transformação espiritual - ou ação divina na transformação da consciência

 

Por Jânsen Leiros Jr.

 

Carl Jung: “Aquilo a que você resiste, não apenas persiste: dialoga silenciosamente com você desde o inconsciente.”

Martin Heidegger: “Habitar é escutar.”

Søren Kierkegaard: “A oração não muda Deus; ela muda aquele que ora.”

Paul Tillich: “A fé é o estado de ser tomado por aquilo que exige resposta.”

Vygotsky: “O pensamento se desenvolve através da palavra; na origem do pensamento está o diálogo.”

    

 Muitas vezes me perguntam — algumas com curiosidade sincera, outras com um certo estranhamento: “Por que Teologando Só?”

Afinal, a teologia é, por natureza, uma tarefa comunitária; nasce do encontro, da tradição viva, da escuta plural.

Mas a verdade é que há um “só” que não é isolamento, nem misantropia intelectual. É um “só” que nasce do recolhimento necessário para que o diálogo com Deus não se dissolva no ruído das urgências, e para que a própria alma possa ouvir-se enquanto escuta.

É nesse silêncio denso — não solitário, mas habitado — que a consciência dialogante se acende. E é justamente sobre esse espaço interior, esse lugar onde Deus nos encontra na intimidade mais profunda, que começa o fio do texto a seguir.

Há um fio que atravessa silenciosamente toda a Escritura, ligando Gênesis ao Apocalipse, patriarcas aos profetas, salmistas aos apóstolos, mestres da sabedoria aos primeiros cristãos. Esse fio não é um decreto vertical, nem uma intervenção súbita que destrói a interioridade humana; é um movimento dialogal, uma dança entre voz e escuta, pergunta e resposta, silêncio e inquietação, revelação e assimilação.

Se quisermos nomeá-lo com precisão: trata-se da consciência dialogante, o espaço interior onde o Espírito de Deus encontra a liberdade humana para formar, corrigir, amadurecer e transformar.

Não é acaso que Deus se revela falando; tampouco é acaso que o ser humano responda. A fé bíblica nunca se constituiu como um monólogo — nem de Deus para o homem, nem do homem para Deus. Ela nasce do encontro, da reciprocidade, do entrelaçamento de consciências.

E talvez seja precisamente isso que tenhamos esquecido.

A fé como diálogo e não como imposição

Quando lemos a Escritura com atenção, percebemos que Deus raramente age sem palavras. Ele não é o artesão silencioso que molda a alma à força. Ao contrário: Ele fala, convoca, pergunta, provoca, consola. A transformação espiritual — aquela que vai nos tornando parecidos com Cristo — acontece sempre dentro de um ambiente de diálogo.

Nada amadurece no vazio. Nem a fé.

O ser humano se forma nesse movimento contínuo de ouvir e responder, de ser questionado e também de questionar, de lamentar e discernir, de render-se e recomeçar. É o que estou chamando aqui de consciência dialogante: a capacidade de crescer espiritualmente através da relação — com Deus, com o próximo e consigo mesmo.

A psicologia moderna descreve a consciência como algo que floresce no contato. A filosofia dialogal de Martin Buber ecoa isso: só nos tornamos “eu” diante de um “tu”. E a Bíblia, séculos antes, já vivia a mesma lógica — Deus molda pessoas falando com elas.

A Imago Dei como fundamento dialogal

Fomos criados à imagem de Deus — e Deus é, em sua própria natureza, relação.

A Trindade é diálogo eterno. O Pai direciona sua palavra ao Filho; o Filho responde; o Espírito intercede e traduz. Deus não é solidão — é comunhão viva.

Se é esse Deus que espelhamos, então é impossível formar uma consciência cristã isolada. Quem tenta se formar sozinho perde a própria estrutura do chamado divino, que é relacional.

Identidade, vocação, caráter e fé amadurecem no encontro — não no isolamento. Por isso a Bíblia nos dá voz: para perguntar, confessar, resistir, clamar, agradecer, discernir.

E aqui surge aquela pergunta interior que muitos têm vergonha de admitir:

— Não posso me formar sozinho?

— Não.

— Nem Deus quis assim?

— Justamente: Deus não quis.

Ele escolheu relacionar-se. E a consciência dialogante é o terreno onde esse relacionamento acontece.

A pedagogia divina: Deus transforma conversando

As grandes figuras da história bíblica não foram moldadas por decretos frios, mas por diálogos transformadores.

Abraão — o pai da fé que argumenta

A aliança não nasce de um silêncio, mas de uma conversa. Abraão não recebe a promessa como quem apenas escuta e obedece passivamente; ele se arrisca a perguntar, a expor sua inquietação, a trazer sua dúvida para dentro do diálogo com Deus. “Como saberei…?”, ele ousa dizer (Gn 15:8). E Deus não o repreende — ao contrário, responde ampliando sua visão, abrindo horizontes que Abraão ainda não conseguia enxergar. Assim, pouco a pouco, um homem aprende a crer enquanto se atreve a perguntar; sua fé cresce não apesar das perguntas, mas através delas.

Moisés — o vocacionado que debate

A sarça ardente não é um espetáculo místico, mas um debate pedagógico. Diante do chamado divino, Moisés não se rende de imediato; ele levanta cinco objeções, e para cada uma delas Deus oferece uma resposta, não para silenciá-lo, mas para formá-lo. Moisés não é moldado pela visão extraordinária, e sim pelo diálogo persistente. Deus não elimina sua hesitação — trabalha com ela, acolhendo-a como matéria-prima da vocação que está prestes a nascer.

Davi — onde o diálogo interior se torna cura

Davi nos mostra que o diálogo que cura não acontece apenas entre o homem e Deus, mas também dentro da própria alma. O salmista ora, clama, protesta — e, em meio a essa oração viva, volta-se para dentro: “Por que estás abatida, ó minha alma?” (Sl 42:5). Ele interroga a própria tristeza, nomeia a inquietação, convida a si mesmo à esperança. A psique começa a se reorganizar quando encontra coragem para se escutar, e é nesse movimento interior que a graça frequentemente encontra espaço para agir.

Os profetas — a resistência que conversa

Os profetas encarnam a forma mais aguda dessa coragem de dialogar com Deus. Jeremias protesta, lamenta, hesita, expõe sua dor sem máscaras. Ele diz o indizível, reclama das tarefas que recebeu, confessa o peso que não consegue carregar. E Deus — longe de silenciar o profeta — acolhe o protesto, responde, corrige, redireciona. A profecia não nasce de uma obediência muda, mas da disposição de sustentar uma conversa difícil com o próprio Senhor. É desse embate amoroso que surge a palavra que transforma.

Jesus — o mestre das perguntas

Jesus é o mestre das perguntas — não porque desconheça as respostas, mas porque sabe que o coração humano só se abre quando é convidado a falar. Ele raramente responde de modo direto; prefere desvelar a verdade por meio de interrogações que ampliam o espaço interior: “Quem dizem que eu sou?”, “Queres ser curado?”, “O que queres que eu te faça?”. Cada pergunta é uma porta aberta, um chamado à consciência, um ato de formação espiritual. Jesus não modela discípulos pela imposição, mas pelo diálogo que revela, cura e transforma.

Paulo — o apóstolo que debate consigo mesmo

Paulo — talvez o mais intelectual dos apóstolos — pensa dialogando. Seu método é abertamente conversacional: ele constrói teologia debatendo com um interlocutor imaginário, antecipando objeções, acolhendo resistências, enfrentando contradições. “Mas alguém dirá…”, “Tu que te glorias…”. Em Paulo, a verdade não aparece pronta: ela se encarna no atrito do argumento, na tensão entre objeção e resposta, no vaivém de uma consciência que busca fidelidade. A doutrina se torna carne quando é contestada, atravessada e, então, novamente afirmada.

Maria, Zacarias e Gideão — quando a pergunta revela o coração

Entre as grandes conversas da fé, há duas que acontecem quase lado a lado — a de Maria e a de Zacarias — e que, apesar de semelhantes na forma, revelam intenções muito diferentes.

Maria pergunta ao anjo: “Como será isto…?” Não é resistência, nem cinismo, nem incredulidade. É busca honesta de compreensão. Ela pergunta porque deseja cooperar, não porque duvida. Sua pergunta é oferta, abertura, disponibilidade. Por isso é acolhida sem censura, como foram acolhidas as perguntas de Abraão e de Moisés: perguntas que não bloqueiam a fé, mas a estruturam.

Zacarias, por sua vez, faz uma pergunta que não nasce da perplexidade, mas da impossibilidade:

“Como posso ter certeza disso? Sou velho, e minha mulher também…”

Aqui, a hesitação não se dirige à própria limitação humana — dirige-se ao poder divino. Não é: “Como isso acontecerá em mim?”. É: “Isso não pode acontecer.”

Zacarias não busca entendimento; busca garantias. Seu silêncio posterior não é punição, mas terapia espiritual: um tempo em que o coração aprende novamente a abrir espaço para o possível de Deus.

E há ainda Gideão, cuja história ajuda a decifrar essa diferença. Ele também pede sinais — vários. Mas seus sinais não nascem da dúvida sobre o que Deus pode fazer; nascem da dúvida sobre se ele mesmo está discernindo corretamente a voz de Deus. Gideão teme o engano do próprio coração, não a incapacidade divina. É por isso que Deus o atende com paciência: porque sua pergunta encontra lugar na humildade, não na descrença.

Assim se revelam três movimentos do diálogo espiritual: Maria pergunta para compreender. Gideão pergunta para discernir. Zacarias pergunta porque não acredita. E em cada um deles, Deus responde de modo diferente, não porque as perguntas sejam iguais, mas porque o diálogo revela o coração que pergunta.

A pedagogia de Deus é sempre conversacional.

A consciência dialogante no centro da transformação

Paulo afirma que somos transformados “de glória em glória” (2Co 3:18). Mas essa transformação acontece num campo contínuo de escuta e resposta. É o Espírito que opera, mas opera enquanto dialoga.

O diálogo com Deus — oração como encontro

A oração nunca foi um monólogo bem-comportado, desses que repetimos como quem cumpre um rito diante do invisível. Ela é muito mais viva, mais inquieta, mais ambígua. A oração é encontro — e encontro sempre inclui risco, escuta, espera, e aquele tipo de silêncio que não cessa de falar por dentro. Quem ora, de verdade, se expõe: abre a vida à voz de Deus e, ao mesmo tempo, se permite ouvir a própria voz diante d’Ele, aquela que normalmente abafamos sob urgências, distrações e defesas.

Às vezes esse encontro vem impregnado de paz; noutras, é uma tensão quase dolorosa, como se Deus desorganizasse suavemente as convicções que usamos para nos proteger. Mas é dentro desse diálogo, que acontece tanto na palavra quanto na ausência dela, que a consciência começa a se transformar. Orar é permitir que Deus nos fale — e é, também, permitir que nossas palavras revelem o que realmente somos quando nos colocamos diante d’Aquele que não pode ser enganado.

É ali, nesse espaço onde duas vozes se procuram — a nossa e a d’Ele — que a alma passa a aprender outra linguagem: a da verdade. Porque onde Deus responde, mesmo que em silêncio, algo em nós se ajusta, se alinha, se converte. A oração é, enfim, o lugar onde deixamos de ser apenas nós mesmos… para começarmos a ser nós mesmos diante de Deus.

O diálogo com o outro — maturidade compartilhada

Há uma sabedoria escondida na simplicidade do que Tiago escreveu: a cura não nasce do segredo, mas da confissão compartilhada. Não é que o outro tenha poder mágico para nos restaurar; é que a verdade, quando dita diante de alguém, perde a capacidade de nos aprisionar. Davi sabia disso quando confessou que, enquanto manteve silêncio, “seus ossos envelheciam” dentro dele; a alma, quando se fecha, apodrece devagar — consumida pela culpa, pelo medo da exposição involuntária, pela insegurança de ser descoberto. Há algo profundamente sanador no fato de sermos ouvidos — e, talvez ainda mais, no fato de ousarmos falar.

A maturidade cristã nunca floresceu em jardins solitários. Ela se desenvolve ali onde a palavra do outro nos encontra, nos reflete, nos contesta, às vezes nos fere com cuidado e, em outras ocasiões, nos recolhe com misericórdia. A vida espiritual amadurece quando alguém nos devolve, com delicadeza ou firmeza, aquilo que não percebíamos sobre nós mesmos. E, do outro lado, cresce também quando oferecemos a mesma presença a quem caminha ao nosso lado.

Ninguém se torna inteiro vivendo em isolamento. A fé se alarga na conversa, no atrito brando das diferenças, na escuta paciente que reorganiza a alma, na palavra que chega e nos desloca um pouco mais para perto da verdade. É assim que Deus, muitas vezes, fala conosco: usando a voz de alguém que cruza nosso caminho e, sem saber, se torna cúmplice da nossa transformação interior.

O diálogo consigo mesmo — o campo íntimo da consciência

Há um tipo de palavra que não é dita para fora, mas que, ainda assim, ressoa com força dentro de nós. A Escritura nunca tratou essa conversa interior como suspeita ou secundária; ao contrário, legitimou-a. O salmista, por exemplo, fala com a própria alma como quem tenta puxá-la de volta à luz: “Por que estás abatida…?” É um diálogo íntimo, quase terapêutico, onde o coração procura persuadir-se da esperança que insiste em escapar pelos dedos.

Paulo, por sua vez, deixa entrever o labirinto de sua mente ao perguntar-se sobre o querer e o não querer, sobre o bem desejado e o mal realizado. Não é confusão — é investigação. É consciência abrindo espaço para que o Espírito lhe mostre o que está escondido nos cantos da vontade. É por isso que ele diz que o Espírito “testifica com o nosso espírito”: há uma conversa acontecendo, ainda que silenciosa, e nela Deus toca as cordas mais profundas da interioridade humana.

A consciência não é, portanto, um deserto mudo; é um auditório vivo, sempre ocupado, onde vozes se cruzam, argumentam, contestam, lembram, corrigem, consolam. Santo Agostinho percebia isso com clareza quase dolorosa: para ele, o coração era um palco onde Deus e o homem se encontravam, discutiam, se buscavam — um lugar onde a verdade podia finalmente ser ouvida, não porque gritava, mas porque encontrava espaço para ressoar.

Esse diálogo interior não é delírio, nem fraqueza, nem fuga. É o ambiente onde a alma se revela a si mesma. E é justamente ali, nesse território que ninguém mais vê, que Deus costuma falar mais profundamente — não para nos esmagar com respostas, mas para nos ensinar a fazer as perguntas certas.

A tecnologia, a psique e o retorno ao diálogo

Vivemos cercados por vozes — velozes, dispersas, ruidosas. Cada notificação é uma interrupção; cada feed, uma torrente; cada opinião, um convite para reagir antes de pensar. A consequência disso é uma consciência fragmentada, quase sempre empurrada para a superfície das coisas. Paradoxalmente, nesse mesmo cenário de distrações incessantes, começam a surgir ferramentas que, se usadas com sobriedade, podem nos devolver justamente aquilo que perdemos: profundidade, pausa, escuta.

Há algo de antigo — estranhamente antigo — na possibilidade de estruturar a própria reflexão com a ajuda de tecnologias inteligentes. Não se trata de substituir o Espírito, como alguns temem; nem de competir com a Graça, como outros receiam. É simplesmente reconhecer que Deus sempre se serviu de meios humanos para ampliar o espaço interior da alma. E, no nosso tempo, esses meios podem incluir a própria tecnologia.

Afinal, não é isso que ela nos permite, quando bem utilizada? Ordenar pensamentos que estavam dispersos como folhas ao vento. Examinar inclinações que corriam subterrâneas e nunca ganhavam nome. Detectar contradições que, até então, sobreviviam sob o manto do silêncio. Ouvir as objeções internas — aquelas que tememos formular, mas que moldam nossos gestos. E, quem sabe, permitir que o discernimento espiritual amadureça num terreno mais claro, mais ventilado, mais honesto.

Se Paulo conversava com um interlocutor imaginário para organizar seus argumentos; se Davi ousava dialogar com a própria alma para não sucumbir ao caos interior; se os profetas debatiam com Deus com uma franqueza que beira o escândalo — por que nós hesitaríamos em retomar esse caminho?

A tecnologia não inventa nada disso. Apenas oferece um novo formato para uma prática que é tão antiga quanto a própria fé: o diálogo que transforma, que ilumina, que reorganiza a consciência e prepara o espírito para a voz que realmente importa.

Conclusão: O Espírito transforma dialogando

A ação do Espírito na consciência não se parece com uma cirurgia silenciosa, dessas que acontecem enquanto o paciente dorme. Ela é relacional. É encontro. É diálogo. O Espírito fala — e espera. Questiona — e acolhe. Confronta — e consola. Move-se nesse ritmo vivo, onde cada revelação pede uma resposta, e cada resposta abre espaço para uma nova revelação. Assim, pouco a pouco, entre uma fala e outra, a consciência vai ficando mais clara, mais desperta, mais luminosa.

A transformação espiritual nasce dessa conversa contínua e amorosa. É obra do Espírito, sim, mas é obra que Ele realiza dialogando, conduzindo-nos, pela palavra e pela escuta, ao lugar onde finalmente nos tornamos aquilo que Deus quis que fôssemos; imagem e semelhança do seu Filho.


quarta-feira, 4 de junho de 2025

Profetismo: A voz que borbulha do eterno no tempo presente

 

Por Jânsen Leiros Jr.

 

A urgência da palavra profética como expressão inadiável da vontade de Deus na história. 

 Abraham Heschel

“O profeta é um homem que sente ferozmente. Deus arrancou-lhe o coração e nele pôs o Seu próprio. Suas palavras queimam porque nascem da dor divina.” - A Teologia dos Profetas; Heschel destaca o sofrimento visceral do profeta como alguém tomado pela paixão divina — eco direto da imagem do “borbulhar”, da urgência que arde nos ossos e exige voz.

Walter Brueggemann

“A função central do profeta é imaginar alternativas ao mundo como ele é. É dar voz ao lamento reprimido e à esperança silenciada.” - A Imaginação Profética; Brueggemann reforça o papel do profeta como aquele que rompe com o discurso dominante e propõe uma nova realidade — um paralelo direto ao trecho do seu texto sobre a profecia como denúncia e proposta.

Karl Barth

“O profeta fala com autoridade, não porque é eloquente, mas porque foi interrompido por Deus.” - Dogmática Eclesiástica; Barth toca o cerne da vocação profética: não é uma escolha pessoal, mas uma interrupção divina, uma convocação que rasga o curso natural da existência — exatamente como você expressa na conclusão do texto.

No coração da história da revelação, o profeta não é meramente um anunciador de eventos futuros, mas é, sobretudo, um ser tomado por um fogo incontrolável que o impele a falar. É como uma panela posta ao fogo divino, cuja água borbulha inevitavelmente. A imagem não é apenas estética ou poética — ela expressa a tensão espiritual interna do profeta, a insuportável contenção da verdade revelada. O termo hebraico nabi (נָבִיא), muitas vezes traduzido como "profeta", sugere aquele que é chamado, sim, mas também aquele que é impelido por algo maior que si mesmo — um movimento do Espírito de Deus que não pode ser contido.

Essa compreensão não é isolada. Jeremias exprime isso com crueza: “Há em meu coração um fogo ardente, encerrado nos meus ossos; estou cansado de contê-lo, e não posso” (Jr 20.9). A palavra profética não é opcional. É uma força divina que exige liberação. O profeta não quer falar, mas precisa. Não deseja se expor, mas é compelido. Sua boca não é dele — é da revelação que arde e borbulha como lava sob a crosta da realidade.

A teologia só ganha sentido quando compreendida dentro da história. Deus não se revela em abstrações estéticas, mas nos acontecimentos, nas rupturas e nos processos. O profeta é testemunha dessa revelação. Ele não é um pensador especulativo, mas um canal involuntário da vontade de Deus, um embaixador de urgência, alguém que fala em meio a estruturas quebradas e instituições corrompidas.

Moisés e João Batista ilustram isso de maneira singular. Moisés, como o grande mediador da aliança, não prevê o futuro: ele conduz o presente, moldado pela voz divina que rompe o silêncio do deserto e das escravidões históricas. João Batista é o profeta da hora final, do "agora", que clama com voz que rasga o ermo: “Arrependei-vos, porque está próximo o Reino dos Céus” (Mt 3.2). Sua voz não era decorativa, era disruptiva. João não apontava para si, mas para aquele que viria, cujas palavras arderiam como fogo e separariam o trigo da palha (Mt 3.12).

A imagem do profeta como aquele que “borbulha” é poderosa — e merece atenção especial. Quando a água ferve, há uma fonte de calor constante, uma energia que se acumula até romper a quietude da superfície. Assim é o profeta. Deus aquece-lhe o espírito com a chama da verdade, e a pressão interna cresce até que a fala se torne inevitável. Borbulhar é mais que uma imagem: é uma forma de existência profética. Significa viver sob tensão, com o Espírito Santo como calor constante e a palavra de Deus como líquido em ebulição.

Karl Barth diria que a revelação é uma ação de Deus no tempo presente, e o profeta é o canal dessa irrupção. Walter Brueggemann vê no profeta aquele que denuncia o presente e anuncia uma alternativa moldada pelo coração de Deus. Ele não se acomoda à ordem dominante, nem negocia sua mensagem com as conveniências políticas ou religiosas. Ele borbulha — e a verdade explode, mesmo que doa.

O profeta é um desconforto encarnado. Ele perturba o rei, desmascara os sacerdotes, enfrenta o povo. Sua missão não é agradar, mas alertar. Sua tarefa é ser impopular em nome da verdade. Ele não apenas fala — ele sofre a mensagem. Carrega em seu corpo as marcas da palavra. É queimado por dentro até que as palavras escapem como vapor divino em ebulição.

A mensagem profética é para o "hoje". Ela exige arrependimento imediato, como nos dias de Jonas em Nínive, quando a cidade inteira se dobrou ao clamor da verdade. Ela denuncia a hipocrisia religiosa (Is 1.11-17), a injustiça social (Mq 6.8) e a corrupção das lideranças (Ez 34). Mas também aponta a esperança que nasce mesmo nas ruínas: “E acontecerá, depois, que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne…” (Jl 2.28).

O profetismo não é apenas denúncia — é proposta. Não é só confronto — é visão. A verdadeira profecia é um ato de responsabilidade. Dietrich Bonhoeffer entendia o profetismo como resistência à maldade real do mundo, e Jürgen Moltmann via nele a esperança ativa, que transforma a história porque crê no futuro de Deus. O profeta denuncia a injustiça, mas também oferece uma alternativa carregada de justiça, misericórdia e fidelidade (Os 6.6).

Hoje, o profeta é aquele que levanta a voz contra a desumanização, a banalização da fé, a idolatria do poder, o silêncio cúmplice das instituições eclesiásticas. Ele é aquele que vê além da propaganda e ouve o gemido dos que não têm voz. Borbulhar é também se indignar. É recusar a anestesia espiritual. É ter os ossos inflamados pela urgência do Reino.

A missão profética é uma urgência que não se cala. Como disse o apóstolo Paulo: “Ai de mim, se não pregar o evangelho” (1Co 9.16). Não se trata de escolha, mas de imposição do Alto. Não é um projeto pessoal, mas um mandato divino que arde sem consumir, como a sarça diante de Moisés.

O profeta é aquele em quem a Palavra arde. Que borbulha. Que geme. Que denuncia. Que consola. Que não pode se calar. Sua presença é incômoda, sua fala é como martelo que despedaça a rocha (Jr 23.29). Ele não cabe nos púlpitos domesticados, nem nas liturgias ajustadas ao gosto dos poderosos. Ele está na beira do deserto, na beira do abismo, na encruzilhada das decisões.

E talvez seja isso que o mundo mais precise hoje: menos opinadores e mais borbulhantes. Homens e mulheres cuja alma ferve com a verdade de Deus. Corações inflamados que não fazem da profecia um ofício, mas um testemunho ardente. Que sejam vasos em ebulição, onde a água viva da Palavra insiste em romper, porque não há como conter o que Deus está prestes a dizer. 

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Cristão - Um subversivo no mundo real

 

Por Jânsen Leiros Jr.

 

Seguir Jesus é romper com os sistemas deste mundo. Uma fé autêntica não se curva — confronta, denuncia e transforma.

 

 “Se o evangelicalismo se torna apenas mais uma marca política, ele não tem nada diferente a oferecer ao mundo. O evangelho não é uma plataforma partidária; é uma cruz.” - (Russell Moore, em entrevistas e artigos publicados pela Christianity Today)

 “A igreja americana corre o risco de perder sua alma, pois muitos pastores estão mais preocupados em atrair multidões do que em formar discípulos.” - (Eugene Peterson, em entrevistas e no livro “O Pastor Contemplativo”)

 

“Mas vem cá... ser cristão de verdade não é meio perigoso demais hoje em dia?” — foi o que me perguntou um jovem numa roda de conversa depois de uma palestra. A pergunta era simples, mas carregava uma inquietação legítima. Não respondi de imediato. Fiquei com ela na cabeça. Porque, no fundo, ele estava certo em se espantar. O cristianismo genuíno, quando levado a sério, não cabe nos moldes prontos que o mundo e o evangelicalismo moderno[1] oferecem.

A verdade é que o cristão autêntico nunca foi domesticável. Desde os profetas do Antigo Testamento até o escândalo da cruz, o chamado de Deus sempre confrontou sistemas injustos, poderes corrompidos e religiões confortáveis. Seguir Jesus é, em si, um ato de subversão. Neste texto, vamos falar dessa postura — não como um conceito distante, mas como um jeito de viver que incomoda, denuncia e propõe outro caminho. Vamos explorar esse tema teológica, bíblica e socialmente, resgatando a tradição profética, o exemplo de Jesus e dos apóstolos, e as tensões vividas por quem ainda ousa caminhar na contramão.

A Subversão Cristã: Desafiando Sistemas de Poder

Você já reparou como, às vezes, viver de forma honesta, justa e amorosa parece ser quase um protesto silencioso? É disso que estamos falando. O cristão subversivo é aquele que, como Jesus, não se dobra às estruturas de poder do mundo. Em João 18:36, Jesus declara: “O meu Reino não é deste mundo” — e isso não é uma figura de linguagem devocional, é um posicionamento radical. Ele estava diante de Pilatos, o representante do império, e não recuou. Sua afirmação rompe com toda tentativa de conciliação entre o Reino de Deus e os reinos deste mundo.

Para o cristão, então, a lealdade a esse Reino eterno deve superar qualquer comprometimento com estruturas políticas, religiosas ou econômicas. E, sejamos honestos, isso incomoda. Porque o cristão subversivo não vive para ser aceito pelo sistema, mas para obedecer à lógica do Reino — e essa lógica é quase sempre o oposto do que o mundo valoriza: enquanto o mundo celebra a força, o Reino exalta a mansidão; onde o mundo busca lucro, o Reino proclama generosidade; onde se cultua o ego, o Reino prega o serviço.

Essa postura não é ingênua nem romântica. É profética. Porque, ao viver os valores do Reino, o cristão acaba por se tornar uma ameaça real aos mecanismos de opressão, à manipulação da fé, ao uso indevido do nome de Deus. Ele se torna como uma pedra no sapato da ordem estabelecida. E isso não é novo.

O Cristão Subversivo na Tradição Profética

Se voltarmos às Escrituras, veremos que essa subversão não surgiu no Novo Testamento. Ela pulsa desde os profetas antigos. Eles não eram apenas vozes do futuro, eram denúncias vivas do presente. Gente que andava nas praças, nas portas da cidade, enfrentando reis e sacerdotes corruptos. Veja Amós. Um simples boiadeiro. Mas sua voz ecoa como um trovão contra os poderosos de Israel: “Aborrecem na porta ao que repreende, e abominam o que fala com integridade” (Amós 5:10). Ele grita por justiça como quem tem fogo nos ossos: “Corra o juízo como as águas, e a justiça como um ribeiro perene” (v. 24).

Jeremias, ainda jovem, tentou recuar, mas Deus o impediu: “Não digas: Eu sou uma criança; porque a todos a quem eu te enviar, irás” (Jeremias 1:7). E o que ele teve de enfrentar? Uma nação inteira afundada na hipocrisia religiosa e alianças políticas podres. E mesmo assim, proclamou: “Não confiem em palavras enganosas, dizendo: 'Templo do Senhor, templo do Senhor!'” (Jeremias 7:4). A crítica era clara: uma religião que justifica injustiça é uma blasfêmia.

João Batista, já no Novo Testamento, continuou essa linhagem. Vestido de forma estranha, morando no deserto, comia gafanhotos e mel silvestre — e suas palavras queimavam como uma tocha: “Raça de víboras! Quem vos ensinou a fugir da ira futura?” (Mateus 3:7). Confrontou a vida pessoal de Herodes, o governador, e pagou com a cabeça. Isso é subversão. Isso é coragem profética. O cristão de hoje, se quiser ser fiel ao evangelho, terá de carregar esse mesmo espírito.

O Cristão Subversivo no Mundo Contemporâneo

Hoje, a subversão cristã não se dá mais diante de impérios romanos ou de tronos monárquicos. Mas os impérios continuam aí, com outros nomes: sistemas econômicos predatórios, religiões mercantilizadas, ideologias políticas idólatras. E, em meio a isso, o cristão que vive o evangelho de forma sincera e radical aparece como uma voz dissonante.

Pense bem: num mundo que valoriza a estética acima da ética, o consumo acima da compaixão e a imagem acima da integridade, viver os valores do Reino é um escândalo. O cristão subversivo não negocia seus valores por conveniência, não se cala para manter privilégios, não coopera com sistemas que oprimem — mesmo que isso custe amigos, posição ou segurança.

E isso não significa ser beligerante ou reativo. Jesus ensinou: “Bem-aventurados os pacificadores” (Mateus 5:9). Mas paz, aqui, não é ausência de conflito; é presença do Reino. O cristão é aquele que leva a paz de Cristo para dentro das tensões do mundo, não aquele que foge delas. Ele fala quando todos preferem o silêncio. Ele age quando o comum é cruzar os braços. Ele vive em fidelidade quando a hipocrisia é moeda corrente.

O Ódio Produzido pela Subversão Cristã

E não se engane: essa fidelidade gera reações. “Se o mundo vos odeia, saibam que me odiou antes de vós” (João 15:18). O próprio Jesus nos advertiu: viver o evangelho de forma autêntica incomoda, porque expõe, revela, confronta. E o mundo, em suas estruturas corrompidas, não tolera ser confrontado.

A história da Igreja é uma galeria de mártires. Homens e mulheres que não abriram mão de sua convicção, mesmo quando isso lhes custou tudo. Estêvão, o primeiro mártir, morreu apedrejado por anunciar um Reino que não se dobrava ao templo nem à tradição. Pedro foi crucificado. Paulo, decapitado. E ao longo dos séculos, milhares seguiram esse mesmo caminho. Ainda hoje, em muitos lugares do mundo, há cristãos presos, perseguidos e mortos — não por serem violentos, mas por serem fiéis demais.

Mas o mais doloroso é que a perseguição, às vezes, vem de dentro. Da institucionalização da fé. Da religiosidade que se vende ao sistema. Do evangelicalismo de mercado que transforma o evangelho em produto e os fiéis em consumidores. O cristão subversivo se vê, muitas vezes, sozinho — mas nunca abandonado.

A Vida do Cristão Subversivo e a Perseguição

Viver como subversivo do Reino é viver com os olhos na eternidade e os pés no chão. É entender que esta vida é uma missão e não um palco de conquista pessoal. O cristão subversivo carrega a cruz — não como símbolo decorativo, mas como estilo de vida. E cruz não é apenas sofrimento; é entrega, é serviço, é fidelidade até o fim.

Ele sabe que o caminho é estreito (Mateus 7:13-14), que o mundo odiará sua luz (João 3:19-20), mas também sabe que a fidelidade produz fruto, mesmo que invisível aos olhos. O Reino cresce como fermento na massa (Mateus 13:33), silenciosamente, mas com poder transformador.

E, por fim, ele vive com a esperança que sustenta: “Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus” (Mateus 5:10). Essa é sua certeza, seu consolo, sua glória. Porque, ainda que o mundo o rejeite, ele é aceito por Aquele que venceu o mundo (João 16:33).

Um chamado irrecusável

Talvez você tenha lido tudo até aqui e esteja se perguntando: “Mas então... dá mesmo para viver assim hoje? Vale a pena?” E eu te digo: não só dá, como é a única forma verdadeiramente cristã de existir neste mundo. O restante é caricatura, verniz, religião domesticada — e isso Jesus nunca aprovou. Lembra-se do que Ele disse aos mornos de Laodiceia? “Porque és morno, e não és quente nem frio, vomitar-te-ei da minha boca” (Apocalipse 3:16). Forte, não? Mas necessário.

O tempo da omissão acabou. O tempo da conveniência acabou. O tempo de usar o nome de Cristo para proteger zonas de conforto ou ideologias humanas está sendo exposto e derrubado como ídolo frágil. O Espírito de Deus está convocando os que têm ouvidos para ouvir. E o chamado é claro: ou você se posiciona no Reino, ou será engolido pelo sistema.

Não há mais espaço para uma fé que se esconde atrás de versículos fora de contexto. Não há mais tempo para discursos que não se tornam prática. A cruz não é enfeite de pescoço. É sentença de morte para o velho eu. É caminho estreito. É entrega total. Paulo disse: “Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gálatas 2:20). Isso é mais do que poesia: é a anatomia da nova vida. E essa nova vida é, por natureza, subversiva.

Se o seu cristianismo não incomoda o mundo à sua volta, talvez ele não seja o evangelho de Jesus, mas um simulacro moldado para agradar. E se o Cristo que você segue nunca confronta nada em você nem ao seu redor, talvez você tenha domesticado o Leão de Judá em um cordeirinho de pelúcia. Mas Jesus não veio para afagar consciências. Ele veio para despertá-las.

Então, pense: que tipo de cristão você tem sido? Um agente de manutenção do status quo? Ou um discípulo que, como os de Atos 17:6, vira o mundo de cabeça para baixo? A hora de decidir não é amanhã. É agora. Porque o Reino já chegou. E sua justiça — aquela que incomoda os poderosos e exalta os humildes — está batendo à sua porta.

A mudança é urgente. A exigência é certa. E o chamado é irrecusável.

 



[1] O termo “evangelicalismo moderno”, está se referindo, com senso crítico, a uma vertente do evangelicalismo que, embora se identifique com os princípios da fé cristã, muitas vezes acaba:

·         Acomodando-se aos padrões culturais dominantes, buscando aceitação ou relevância social a qualquer custo;

·         Reduzindo o Evangelho a slogans ou fórmulas de sucesso pessoal, esvaziando seu caráter profético, contracultural e profundamente ético;

·         Aderindo a estruturas de poder político e econômico, tornando-se cúmplice de ideologias que contradizem os valores do Reino de Deus;

·         Negligenciando a centralidade de Cristo crucificado, substituindo o discipulado pelo triunfalismo ou moralismo;

·         Transformando a fé em produto de mercado religioso, com culto à performance, à visibilidade e ao crescimento numérico.

Esse “evangelicalismo moderno”, portanto, é o que denunciamos como superficial, domesticado e incapaz de encarnar a radicalidade do seguimento de Jesus — que é, essencialmente, subversivo, transformador e incompatível com os ídolos deste século.

 

terça-feira, 22 de abril de 2025

Entre o trono e o espelho - quando o louvor se torna autoajuda


 Por Jânsen Leiros Jr.

 O que estamos realmente cantando quando louvamos?

Uma provocação necessária: estaríamos exaltando a Deus — ou apenas massageando nossos egos pilhados de religiosidade?

Bob Kauflin

“O louvor é a prática de valorar Cristo acima de tudo; é o transbordar de um coração cativado pela cruz.”

Matt Redman

“A chave para um louvor verdadeiro são os adoradores, não a performance; é um povo rendido que responde ao Rei.”

John Piper

“Deus é mais glorificado em nós quando estamos mais satisfeitos n’Ele, e o verdadeiro louvor nasce dessa satisfação, não de auto exaltação.”

John MacArthur

“O louvor não existe para entreter a Deus, mas para nos humilharmos e exaltar o Seu nome em espírito e em verdade.”

O QUE SE TORNOU, AFINAL, O LOUVOR CONTEMPORÂNEO?

Onde antes exaltávamos a majestade de Deus, sua santidade e soberania — cantando a um Deus que é o totalmente outro — hoje parece que temos nos voltado para canções que nos colocam no centro. A liturgia da adoração deu lugar à liturgia da autoafirmação. O trono foi substituído pelo espelho. Este texto é um convite à reflexão sobre essa mudança silenciosa, porém profunda, que transformou parte do louvor em uma espécie de autoajuda espiritualizada — e sobre o urgente retorno ao louvor bíblico: reverente, rendido, centrado em Deus e não em nós.

É verdade: não se trata de rejeitar a beleza melódica ou a qualidade técnica das canções modernas. Existem, sim, louvores profundamente bíblicos e espiritualmente saudáveis sendo compostos hoje. Mas meu incômodo vai além do som. Trata-se do centro. De quem ou do que se tornou o sujeito oculto, ou antes, o sujeito evidente da adoração: nós mesmos.

Muitas das canções mais entoadas atualmente giram em torno de frases como “você tem valor”, “você é precioso”, “Deus vai te exaltar”, “te dar vitória”, “abrir portas”, “curar sua alma ferida”. Tudo verdade, se lido no contexto certo. Mas, isolado, isso se torna a catequese de um hedonismo piedoso — onde o homem se torna o fim último da ação divina. E Deus, um tipo de gênio da lâmpada celestial.

Mas a oferta de Deus, como bem diz o apóstolo Paulo, foi a cruz — “porque a mensagem da cruz é loucura para os que estão perecendo, mas para nós, que estamos sendo salvos, é o poder de Deus” (1 Coríntios 1.18). Ele não ofereceu uma promessa de conforto, mas um chamado ao discipulado — com renúncia, cruz, perseverança: “Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome diariamente a sua cruz e siga-me” (Lucas 9.23), “Se alguém quiser ser meu discípulo, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mateus 16.24). O Filho amado não veio para nos mimar, mas para nos salvar. E isso nos deveria bastar: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que este fosse salvo por meio dele” (João 3.16-17).

A lógica do Reino é esta: “Se com Ele sofremos, com Ele também seremos glorificados” (Romanos 8.17) — mas a glória só vem depois da cruz.

O louvor que se oferece como alento emocional, mas não conduz ao arrependimento, é um embuste. A música que massageia o ego, mas não leva ao trono de Deus, é apenas entretenimento religioso. E isso é um risco grave. Como nos alertava A. W. Tozer, “o cristianismo moderno se tornou racionalista e centrado no homem, em vez de ser espiritual e centrado em Deus”.

No passado, nossos hinos diziam “Tu és fiel, Senhor”, “Santo, Santo, Santo”, “Grandioso és Tu”, “Te exaltamos, ó Cordeiro”. A gramática da adoração era vertical, sacra, cheia de reverência. Hoje, muitas letras parecem mais janelas de autoajuda que altares de rendição. Onde antes dizíamos “Tu és”, agora dizemos “Eu sou”. Onde se dizia “Te exaltamos”, agora se ouve “eu vencerei”.

E não é que toda música moderna seja má. Deus tem levantado adoradores sinceros nesta geração — compositores e ministros que compreendem que louvor é sacrifício, não agrado, como declara a Escritura: “Por meio de Jesus, ofereçamos a Deus, continuamente, sacrifício de louvor, que é o fruto de lábios que confessam o seu nome” (Hebreus 13.15). Mas são minoria. E não podemos confundir exceção com regra.

O louvor bíblico é centrado em Deus e na sua glória. Ele nasce do temor — “Tema toda a terra ao Senhor; temam-no todos os habitantes do mundo” (Salmo 33.8), passa pela gratidão — “Entrem por suas portas com ações de graças e em seus átrios com louvor; deem-lhe graças e bendigam o seu nome” (Salmo 100.4), floresce na confiança — “Ele pôs um novo cântico em minha boca, um hino de louvor ao nosso Deus. Muitos verão isso e temerão, e confiarão no Senhor” (Salmo 40.3), e se consuma na obediência — “Acaso o Senhor tem tanto prazer em holocaustos e sacrifícios quanto em que se obedeça à sua palavra? A obediência é melhor do que o sacrifício” (1 Samuel 15.22). Ele não é um lugar de consolo terapêutico apenas, mas de consagração total. Ele não massageia o coração do homem; ele o oferece, quebrantado, diante do trono — “Os sacrifícios que agradam a Deus são um espírito quebrantado; um coração quebrantado e contrito, ó Deus, não desprezarás” (Salmo 51.17).

Precisamos voltar. Voltar ao Deus que não bajula, mas santifica. Que não promete conforto, mas dá propósito. Que nos leva aos desertos não por crueldade, mas por misericórdia — “Lembrem-se de como o Senhor, o seu Deus, os conduziu por todo o caminho no deserto durante estes quarenta anos, para humilhá-los e pô-los à prova, a fim de saber o que estava em seus corações... Ele os humilhou, fazendo-os passar fome e depois os sustentou com maná... para ensinar-lhes que nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca do Senhor” (Deuteronômio 8.2-3). A confiança, como diz Paulo, nasce da perseverança, não da comodidade — “a tribulação produz perseverança; a perseverança, um caráter aprovado; e o caráter aprovado, esperança” (Romanos 5.3-4).

Como escreveu Dietrich Bonhoeffer, mártir da fé diante do nazismo: “A graça barata é o inimigo mortal da Igreja. É a graça sem discipulado, sem cruz, sem Jesus Cristo vivo e encarnado.”

Que o nosso louvor, então, não seja barato. Que ele custe nosso orgulho, nossa vontade, nosso centro. E devolva o trono a quem de direito: ao Rei dos reis. 

O Cordeiro no Trono - A Surpreendente Vitória do Amor


Por Jânsen Leiros Jr.

 

A ressurreição é mais do que uma demonstração mágica de poder. É a manifestação da vitória da vida sobre a morte — o caminho trilhado pelo Cordeiro rumo ao trono.

Karl Barth

"A majestade de Deus se revela na humilhação de Jesus Cristo; seu trono não está acima do sofrimento humano, mas bem no centro dele."

Jürgen Moltmann

"A ressurreição de Cristo é a resposta de Deus à crucificação; o trono do Cordeiro é o lugar onde a esperança ressurge do coração da dor."

Tomás de Aquino

"O Cristo que reina é o mesmo que se entregou; não há glória sem a cruz, pois nela se manifesta o amor que salva."

Dietrich Bonhoeffer

"A ressurreição de Cristo não é o cancelamento da cruz, mas sua confirmação. O Crucificado é o Ressurreto, e é assim que Ele reina — não escapando da dor, mas triunfando através dela."

N. T. Wright

"A ressurreição é o momento em que a nova criação irrompe dentro da velha; é o trono erguido no coração da tragédia, onde o Cordeiro reina não apesar da morte, mas por ter passado por ela."

Karl Barth

"A ressurreição não é a glorificação de um herói caído, mas a proclamação de que o Cordeiro morto está vivo — e, exatamente por isso, é digno de abrir o livro e governar o mundo."

No calendário cristão, o Domingo da Ressurreição é o clímax da esperança. Após a dor da cruz e o silêncio do sepulcro, o anúncio da vida rompe o véu da desesperança e inaugura uma nova realidade. No entanto, o que poucos percebem é que a ressurreição não é apenas o ponto final de um drama — é o ponto de partida de uma entronização. O túmulo vazio não é só sinal de milagre; é selo de autoridade.

Ao ressuscitar, Jesus não apenas vence a morte — Ele inaugura um novo tipo de reinado. Não é entronizado com pompas humanas, mas como o Cordeiro, ferido e vitorioso. No centro da revelação apocalíptica, João nos conduz além do jardim vazio e da pedra removida. Ele nos transporta ao trono de Deus, onde a verdadeira cena pascal se desenrola com toda sua beleza paradoxal.

A TEOLOGIA DO CORDEIRO: FORÇA NA FRAGILIDADE

Entre os ecos celestes e os mistérios que envolvem o trono eterno, há uma cena que desafia toda lógica humana: um Cordeiro. Mas não qualquer cordeiro — um Cordeiro que parecia ter sido morto. Não um leão rugindo em glória, não um rei revestido de guerra, mas um Cordeiro — frágil na aparência, mas absoluto em autoridade.

Apocalipse 5:6 descreve: “E olhei, e eis que estava no meio do trono... um Cordeiro como havendo sido morto.” O contraste é proposital. João ouve a proclamação do Leão de Judá, mas quando olha, vê um Cordeiro. Essa inversão revela o coração da teologia cristã: a verdadeira realeza de Cristo não está em sua força militar, mas em sua entrega sacrificial. O poder que conquista não é o da espada, mas o da cruz. A autoridade que prevalece não é a que domina, mas a que se entrega.

UM REINADO QUE DESAFIA O ESPÍRITO DO MUNDO

Essa cena confronta diretamente o espírito triunfalista que permeia muitos púlpitos modernos, nos quais Cristo é apresentado quase como um coach espiritual, um general bélico ou um empresário celestial pronto a empoderar seus seguidores para o sucesso terreno. Mas o trono que João vê não é ocupado por um conquistador ufanista — é ocupado por um Cordeiro imolado.

A lógica do Reino de Deus subverte a lógica do mundo. Em vez de glória visível, há feridas visíveis. Em vez de louros terrenos, há marcas de cravos. Jesus não é coroado apesar da cruz, mas por causa dela. Filipenses 2:8–9 expressa isso com clareza: “E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz. Por isso Deus também o exaltou soberanamente...”

A vitória da ressurreição, portanto, não é uma negação do sofrimento, mas sua redenção. E isso é escandaloso para uma fé que insiste em suprimir o sofrimento em nome de uma espiritualidade triunfante.

A ADORAÇÃO CÓSMICA AO CORDEIRO

A resposta do céu a essa entronização é a adoração. Toda a criação — anjos, anciãos, seres viventes e vozes incontáveis — se prostram diante do Cordeiro. Apocalipse 5:12 registra: “Digno é o Cordeiro que foi morto de receber o poder, e riquezas, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor.” A centralidade de Cristo é absoluta. Não há outro digno. Nem sistema religioso, nem profeta, nem nação, nem ideologia. O trono pertence ao Cordeiro, e só a Ele.

É importante destacar: Cristo não reina apesar de ter sido morto — Ele reina como aquele que foi morto. A sua morte é o ato fundador do seu Reino. A cruz não foi um contratempo no plano — foi o plano.

A ESPIRITUALIDADE DA ENTREGA: UM CHAMADO AO SEGUIDOR

Esse retrato do Cristo glorificado deve ser um espelho para os discípulos. A igreja é chamada a seguir o Cordeiro por onde quer que vá (Ap 14:4), o que significa viver segundo a mesma lógica da entrega, da humildade, do serviço e da confiança na justiça de Deus — ainda que essa justiça demore a se revelar plenamente.

Isso desafia a teologia de vitrine, que vende “milagres” como se fossem produtos e a fé como moeda de troca. O Cristo do Apocalipse não se parece com esses ídolos. Ele reina não para nos mimar, mas para nos formar. Não para nos dar o mundo, mas para nos ensinar a carregar a cruz até a glória.

CONCLUSÃO: UM REINO DE ESPERANÇA CONTRA TODA ESPERANÇA

O Cordeiro no trono é o anúncio de que a última palavra não pertence ao império, ao pecado ou à morte. Ela pertence àquele que venceu, não por esmagar, mas por se deixar moer (Isaías 53:5–7).

A ressurreição é o selo dessa vitória silenciosa, escandalosa, divina. Em um tempo de adorações distraídas, fé superficial e espiritualidade de palco, o chamado é para nos rendermos novamente — ou talvez pela primeira vez — ao Cordeiro.

Porque Ele vive, o trono está ocupado. E porque o trono está ocupado, há esperança.

 

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