Por
Jânsen
Leiros Jr.
A urgência da palavra profética como expressão inadiável da vontade de Deus na história.
Abraham Heschel
“O profeta é um homem
que sente ferozmente. Deus arrancou-lhe o coração e nele pôs o Seu próprio.
Suas palavras queimam porque nascem da dor divina.” - A Teologia dos Profetas;
Heschel destaca o sofrimento visceral do profeta como alguém tomado pela paixão
divina — eco direto da imagem do “borbulhar”, da urgência que arde nos ossos e
exige voz.
Walter Brueggemann
“A função central do
profeta é imaginar alternativas ao mundo como ele é. É dar voz ao lamento
reprimido e à esperança silenciada.” - A Imaginação Profética; Brueggemann
reforça o papel do profeta como aquele que rompe com o discurso dominante e
propõe uma nova realidade — um paralelo direto ao trecho do seu texto sobre a
profecia como denúncia e proposta.
Karl Barth
“O profeta fala com
autoridade, não porque é eloquente, mas porque foi interrompido por Deus.” - Dogmática Eclesiástica;
Barth toca o cerne da vocação profética: não é uma escolha pessoal, mas uma
interrupção divina, uma convocação que rasga o curso natural da existência —
exatamente como você expressa na conclusão do texto.
No
coração da história da revelação, o profeta não é meramente um anunciador de
eventos futuros, mas é, sobretudo, um ser tomado por um fogo incontrolável que
o impele a falar. É como uma panela posta ao fogo divino, cuja água borbulha
inevitavelmente. A imagem não é apenas estética ou poética — ela expressa a
tensão espiritual interna do profeta, a insuportável contenção da verdade
revelada. O termo hebraico nabi (נָבִיא),
muitas vezes traduzido como "profeta", sugere aquele que é chamado,
sim, mas também aquele que é impelido por algo maior que si mesmo — um
movimento do Espírito de Deus que não pode ser contido.
Essa
compreensão não é isolada. Jeremias exprime isso com crueza: “Há em meu coração
um fogo ardente, encerrado nos meus ossos; estou cansado de contê-lo, e não
posso” (Jr 20.9). A palavra profética não é opcional. É uma força divina que
exige liberação. O profeta não quer falar, mas precisa. Não deseja se expor,
mas é compelido. Sua boca não é dele — é da revelação que arde e borbulha como
lava sob a crosta da realidade.
A
teologia só ganha sentido quando compreendida dentro da história. Deus não se
revela em abstrações estéticas, mas nos acontecimentos, nas rupturas e nos
processos. O profeta é testemunha dessa revelação. Ele não é um pensador
especulativo, mas um canal involuntário da vontade de Deus, um embaixador de
urgência, alguém que fala em meio a estruturas quebradas e instituições
corrompidas.
Moisés
e João Batista ilustram isso de maneira singular. Moisés, como o grande
mediador da aliança, não prevê o futuro: ele conduz o presente, moldado pela
voz divina que rompe o silêncio do deserto e das escravidões históricas. João
Batista é o profeta da hora final, do "agora", que clama com voz que
rasga o ermo: “Arrependei-vos, porque está próximo o Reino dos Céus” (Mt 3.2).
Sua voz não era decorativa, era disruptiva. João não apontava para si, mas para
aquele que viria, cujas palavras arderiam como fogo e separariam o trigo da
palha (Mt 3.12).
A
imagem do profeta como aquele que “borbulha” é poderosa — e merece atenção
especial. Quando a água ferve, há uma fonte de calor constante, uma energia que
se acumula até romper a quietude da superfície. Assim é o profeta. Deus
aquece-lhe o espírito com a chama da verdade, e a pressão interna cresce até
que a fala se torne inevitável. Borbulhar é mais que uma imagem: é uma forma de
existência profética. Significa viver sob tensão, com o Espírito Santo como
calor constante e a palavra de Deus como líquido em ebulição.
Karl
Barth diria que a revelação é uma ação de Deus no tempo presente, e o profeta é
o canal dessa irrupção. Walter Brueggemann vê no profeta aquele que denuncia o
presente e anuncia uma alternativa moldada pelo coração de Deus. Ele não se
acomoda à ordem dominante, nem negocia sua mensagem com as conveniências
políticas ou religiosas. Ele borbulha — e a verdade explode, mesmo que doa.
O
profeta é um desconforto encarnado. Ele perturba o rei, desmascara os
sacerdotes, enfrenta o povo. Sua missão não é agradar, mas alertar. Sua tarefa
é ser impopular em nome da verdade. Ele não apenas fala — ele sofre a mensagem.
Carrega em seu corpo as marcas da palavra. É queimado por dentro até que as
palavras escapem como vapor divino em ebulição.
A
mensagem profética é para o "hoje". Ela exige arrependimento
imediato, como nos dias de Jonas em Nínive, quando a cidade inteira se dobrou
ao clamor da verdade. Ela denuncia a hipocrisia religiosa (Is 1.11-17), a
injustiça social (Mq 6.8) e a corrupção das lideranças (Ez 34). Mas também
aponta a esperança que nasce mesmo nas ruínas: “E acontecerá, depois, que
derramarei o meu Espírito sobre toda a carne…” (Jl 2.28).
O
profetismo não é apenas denúncia — é proposta. Não é só confronto — é visão. A
verdadeira profecia é um ato de responsabilidade. Dietrich Bonhoeffer entendia
o profetismo como resistência à maldade real do mundo, e Jürgen Moltmann via
nele a esperança ativa, que transforma a história porque crê no futuro de Deus.
O profeta denuncia a injustiça, mas também oferece uma alternativa carregada de
justiça, misericórdia e fidelidade (Os 6.6).
Hoje,
o profeta é aquele que levanta a voz contra a desumanização, a banalização da
fé, a idolatria do poder, o silêncio cúmplice das instituições eclesiásticas.
Ele é aquele que vê além da propaganda e ouve o gemido dos que não têm voz.
Borbulhar é também se indignar. É recusar a anestesia espiritual. É ter os
ossos inflamados pela urgência do Reino.
A
missão profética é uma urgência que não se cala. Como disse o apóstolo Paulo:
“Ai de mim, se não pregar o evangelho” (1Co 9.16). Não se trata de escolha, mas
de imposição do Alto. Não é um projeto pessoal, mas um mandato divino que arde
sem consumir, como a sarça diante de Moisés.
O
profeta é aquele em quem a Palavra arde. Que borbulha. Que geme. Que denuncia.
Que consola. Que não pode se calar. Sua presença é incômoda, sua fala é como
martelo que despedaça a rocha (Jr 23.29). Ele não cabe nos púlpitos domesticados,
nem nas liturgias ajustadas ao gosto dos poderosos. Ele está na beira do
deserto, na beira do abismo, na encruzilhada das decisões.
E
talvez seja isso que o mundo mais precise hoje: menos opinadores e mais
borbulhantes. Homens e mulheres cuja alma ferve com a verdade de Deus. Corações
inflamados que não fazem da profecia um ofício, mas um testemunho ardente. Que
sejam vasos em ebulição, onde a água viva da Palavra insiste em romper, porque
não há como conter o que Deus está prestes a dizer.