A questão é: os religiosos devem
ter coragem de lidar com um mundo real, que não conta com grandes intervenções.
Esse mundo carece de amor, não de panacéias. Um ministro do evangelho não tem o
direito de pregar que “em tese” todos serão curados para depois dar de ombros
aos que não receberam a benção dizendo: “faltou fé”.
Ricardo
Gondim em Pra Começo de Conversa; pág.
153
Toda vez que me deparo com
determinados programas de televisão, em que pregadores oferecem milagres por
atacado e toda sorte de vantagens pessoais, sempre em troca de alguma “obrigação”
travestida de fé condicionada, confesso que sou tomado por uma confusão de sensações,
que variam desde o espanto, passando pela indignação e a repulsa.
Há tempos vimos acompanhando com
preocupação crescente o avanço do que costumo chamar de Evangelho da Auto-Ajuda. Com declarações positivas de conquistas de
bem estar, prosperidade e milagres grandiosos, os pregadores desse evangelho
hedonista envolvem suas assistências em histerias coletivas, que pretendem apenas
criar o ambiente ideal para uma rasa e momentânea sensação de enlevo
espiritual, que na verdade as escraviza na dependência de um estado emocional
extremado e rotineiro.
Veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: Filho do
homem, dize-lhe: Tu és terra que não está purificada e que não tem chuva no dia
da indignação. Conspiração dos seus profetas há no meio dela; como um leão que
ruge, que arrebata a presa, assim eles devoram as almas; tesouros e coisas
preciosas tomam, multiplicam as suas viúvas no meio dela. Os seus sacerdotes
transgridem a minha lei e profanam as minhas coisas santas; entre o santo e o
profano, não fazem diferença, nem discernem o imundo do limpo e dos meus
sábados escondem os olhos; e, assim, sou profanado no meio deles. Os seus
príncipes no meio dela são como lobos que arrebatam a presa para derramarem o
sangue, para destruírem as almas e ganharem lucro desonesto. Os seus profetas
lhes encobrem isto com cal por visões falsas, predizendo mentiras e dizendo: Assim
diz o Senhor Deus, sem que o Senhor tenha falado. Contra o povo da terra
praticam extorsão, andam roubando, fazem violência ao aflito e ao necessitado e
ao estrangeiro oprimem sem razão. Busquei entre eles um homem que tapasse o
muro e se colocasse na brecha perante mim, a favor desta terra, para que eu não
a destruísse; mas a ninguém achei.
Ezequiel
22:23-30 - RA
A crueldade nesses casos, porém,
começa a partir do confronto da dura realidade cotidiana de cada um. O milagre
não veio. A intervenção divina prometida pelo pregador não aconteceu. Diante da
pergunta velada, emudecida pela vergonha da exposição, tais obreiros se apressam em se defender,
dizendo sem o menor constrangimento que faltou
fé. Esse maniqueísmo que estabelece a lógica do se eu faço isso logo tenho aquilo, acaba por gerar neuroses
e culpas profundas; - eu não tenho fé
suficiente.
Não tenho medo de afirmar que enquanto
esses aproveitadores se ocupam em chamar a atenção para grandes e prodigiosos
milagres, grande parte dessa gente gostaria e precisaria receber alento para
suas duras realidades. Eles precisam de acolhimento, conforto, acompanhamento...
Cuidado para suas almas. Em contrapartida, o que ouvem é um dê para receber sem fundo e sem
fim. São ensinados e induzidos a terem esperanças materiais. A prosperidade
lhes é apresentada como sinal de benção e aprovação de Deus para suas vidas.
Logo, se alguém não prospera, não tem de Deus aprovação.
O que acontece com essa gente por fim,
é que em vez de terem suas carências da alma mitigadas pelo compadecimento e cuidado
de nós cristãos, têm suas vidas dragadas por promessas do que não precisam, e
por ilusões que lhes fazem desejar o que sequer imaginavam.
Uma das analogias que mais gosto na
Bíblia, é a que assemelha o cristão a um peregrino. Como alguém que sempre está
a caminho de algum outro lugar, vivemos e devemos viver com o sentido de
transitoriedade de nossas vidas, desapegados a qualquer carga ou bagagem que
nos prenda ou dificulte a caminhada. Não é aqui a nossa terra. Não está aqui a
nossa promessa. “ajuntai tesouros no céu...”. É para lá que marchamos!
E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão,
no partir do pão e nas orações. Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e
sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos. Todos os que creram estavam juntos
e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o
produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade. Diariamente
perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa e tomavam as suas
refeições com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus e contando com a
simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia,
os que iam sendo salvos.
Atos
2:42-47 - RA
Todos os que creram pensavam e
sentiam do mesmo modo. Ninguém dizia que as coisas que possuía eram somente
suas, mas todos repartiam uns com os outros tudo o que tinham. Com grande poder
os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e Deus derramava
muitas bênçãos sobre todos. Não havia entre eles nenhum necessitado, pois todos
os que tinham terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro e o entregavam aos
apóstolos. E cada pessoa recebia uma parte, de acordo com a sua necessidade.
Atos 4:32-35 - RA
Os cristãos dos primeiros anos, esses
cujas vidas se narram no livro de Atos dos Apóstolos, tinham bem esse sentido
escatológico da vida após suas conversões. Eles não precisavam de nada seu,
nada próprio, senão para uso comum conforme a necessidade de cada participante.
E por que isso? Porque tinham certa e clara suas transitoriedades. E diferentemente
do evangelho da auto-ajuda que busca o benefício próprio e a satisfação de seus
anseios de posse e prosperidade, o evangelho de Jesus orienta a preocupação com
o outro, e nos aponta para o altruísmo eficaz no cuidado com o próximo, “corpo, espírito, alma... coração”.
Onde está o milagre? Está exatamente
no desprendimento de nossos mais inquietantes e mesquinhos sentimentos de posse
e de consumo. De nos livrarmos do impulso hedonista de colocar nossa satisfação
pessoal como fim último de nossas buscas e esforços. Está na transformação do Eu em Nós, no
arrebatamento sincero e realizador de um espírito de compaixão. Será por isso
que Jesus afirmou que poderíamos fazer milagres ainda maiores que os dele?
Não será esse, afinal, o milagre que o
mundo espera de nós?
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