terça-feira, 9 de setembro de 2014

=> O que esperam de nós?




A questão é: os religiosos devem ter coragem de lidar com um mundo real, que não conta com grandes intervenções. Esse mundo carece de amor, não de panacéias. Um ministro do evangelho não tem o direito de pregar que “em tese” todos serão curados para depois dar de ombros aos que não receberam a benção dizendo: “faltou fé”.
Ricardo Gondim em Pra Começo de Conversa; pág. 153

Toda vez que me deparo com determinados programas de televisão, em que pregadores oferecem milagres por atacado e toda sorte de vantagens pessoais, sempre em troca de alguma “obrigação” travestida de fé condicionada, confesso que sou tomado por uma confusão de sensações, que variam desde o espanto, passando pela indignação e a repulsa.

Há tempos vimos acompanhando com preocupação crescente o avanço do que costumo chamar de Evangelho da Auto-Ajuda. Com declarações positivas de conquistas de bem estar, prosperidade e milagres grandiosos, os pregadores desse evangelho hedonista envolvem suas assistências em histerias coletivas, que pretendem apenas criar o ambiente ideal para uma rasa e momentânea sensação de enlevo espiritual, que na verdade as escraviza na dependência de um estado emocional extremado e rotineiro.


Veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: Filho do homem, dize-lhe: Tu és terra que não está purificada e que não tem chuva no dia da indignação. Conspiração dos seus profetas há no meio dela; como um leão que ruge, que arrebata a presa, assim eles devoram as almas; tesouros e coisas preciosas tomam, multiplicam as suas viúvas no meio dela. Os seus sacerdotes transgridem a minha lei e profanam as minhas coisas santas; entre o santo e o profano, não fazem diferença, nem discernem o imundo do limpo e dos meus sábados escondem os olhos; e, assim, sou profanado no meio deles. Os seus príncipes no meio dela são como lobos que arrebatam a presa para derramarem o sangue, para destruírem as almas e ganharem lucro desonesto. Os seus profetas lhes encobrem isto com cal por visões falsas, predizendo mentiras e dizendo: Assim diz o Senhor Deus, sem que o Senhor tenha falado. Contra o povo da terra praticam extorsão, andam roubando, fazem violência ao aflito e ao necessitado e ao estrangeiro oprimem sem razão. Busquei entre eles um homem que tapasse o muro e se colocasse na brecha perante mim, a favor desta terra, para que eu não a destruísse; mas a ninguém achei.
Ezequiel 22:23-30 - RA
        
A crueldade nesses casos, porém, começa a partir do confronto da dura realidade cotidiana de cada um. O milagre não veio. A intervenção divina prometida pelo pregador não aconteceu. Diante da pergunta velada, emudecida pela vergonha da exposição, tais obreiros se apressam em se defender, dizendo sem o menor constrangimento que faltou fé. Esse maniqueísmo que estabelece a lógica do se eu faço isso logo tenho aquilo, acaba por gerar neuroses e culpas profundas; - eu não tenho fé suficiente.

Não tenho medo de afirmar que enquanto esses aproveitadores se ocupam em chamar a atenção para grandes e prodigiosos milagres, grande parte dessa gente gostaria e precisaria receber alento para suas duras realidades. Eles precisam de acolhimento, conforto, acompanhamento... Cuidado para suas almas. Em contrapartida, o que ouvem é um dê para receber sem fundo e sem fim. São ensinados e induzidos a terem esperanças materiais. A prosperidade lhes é apresentada como sinal de benção e aprovação de Deus para suas vidas. Logo, se alguém não prospera, não tem de Deus aprovação.

O que acontece com essa gente por fim, é que em vez de terem suas carências da alma mitigadas pelo compadecimento e cuidado de nós cristãos, têm suas vidas dragadas por promessas do que não precisam, e por ilusões que lhes fazem desejar o que sequer imaginavam.

Uma das analogias que mais gosto na Bíblia, é a que assemelha o cristão a um peregrino. Como alguém que sempre está a caminho de algum outro lugar, vivemos e devemos viver com o sentido de transitoriedade de nossas vidas, desapegados a qualquer carga ou bagagem que nos prenda ou dificulte a caminhada. Não é aqui a nossa terra. Não está aqui a nossa promessa. “ajuntai tesouros no céu...”. É para lá que marchamos!


E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações. Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos. Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade. Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos.
Atos 2:42-47 - RA


Todos os que creram pensavam e sentiam do mesmo modo. Ninguém dizia que as coisas que possuía eram somente suas, mas todos repartiam uns com os outros tudo o que tinham. Com grande poder os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e Deus derramava muitas bênçãos sobre todos. Não havia entre eles nenhum necessitado, pois todos os que tinham terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro e o entregavam aos apóstolos. E cada pessoa recebia uma parte, de acordo com a sua necessidade.
Atos 4:32-35 - RA

Os cristãos dos primeiros anos, esses cujas vidas se narram no livro de Atos dos Apóstolos, tinham bem esse sentido escatológico da vida após suas conversões. Eles não precisavam de nada seu, nada próprio, senão para uso comum conforme a necessidade de cada participante. E por que isso? Porque tinham certa e clara suas transitoriedades. E diferentemente do evangelho da auto-ajuda que busca o benefício próprio e a satisfação de seus anseios de posse e prosperidade, o evangelho de Jesus orienta a preocupação com o outro, e nos aponta para o altruísmo eficaz no cuidado com o próximo, “corpo, espírito, alma... coração”.

Onde está o milagre? Está exatamente no desprendimento de nossos mais inquietantes e mesquinhos sentimentos de posse e de consumo. De nos livrarmos do impulso hedonista de colocar nossa satisfação pessoal como fim último de nossas buscas e esforços. Está na transformação do Eu em Nós, no arrebatamento sincero e realizador de um espírito de compaixão. Será por isso que Jesus afirmou que poderíamos fazer milagres ainda maiores que os dele? 
Não será esse, afinal, o milagre que o mundo espera de nós?




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