“28 Respondeu-lhe Pedro: Senhor! se
és tu, manda-me ir ter contigo sobre as águas. 29 Disse-lhe ele: Vem. Pedro,
descendo do barco, e andando sobre as águas, foi ao encontro de Jesus. 30
Mas, sentindo o vento, teve medo; e, começando a submergir, clamou: Senhor,
salva-me. 31 Imediatamente estendeu Jesus a
mão, segurou-o, e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste?"
Mateus 14:28-31 - JFA
Essa é uma passagem bíblica bastante
conhecida, até mesmo pelos que não professam qualquer religião, ou mesmo não
professam necessariamente uma religião cristã; Jesus andando sobre as águas do
Mar da Galiléia. Para muitos críticos, um evento que, se considerado real, parece apenas uma demonstração isolada e desmedida
de poder sobrenatural, ou ainda, para alguns outros, apenas um relato
fantasioso com o flagrante propósito de comentar as conseqüências de uma fé
vacilante, cujo sujeito principal é a fé de Pedro.
Mais cedo Jesus havia protagonizado um
milagre impressionante. Mais de cinco
mil pessoas haviam sido alimentadas a partir de cinco pães e dois peixes, que
estavam com um menino que acompanhava aqueles que queriam escutar o que Jesus
tinha a dizer[1].
De modo que o clima de assombro pelo feito ainda devia permear as conversas
entre os discípulos mais chegados. Um misto de perplexidade e júbilo naqueles que
certamente ainda não entendiam muito bem o que lhes havia acontecido. - Quem é esse homem? Uma pergunta que
talvez fosse feita por todos, sem que ninguém, contudo, ousasse verbalizá-la.
Imediatamente Jesus obrigou seus discípulos
a entrarem no barco e passarem para o outro lado. O texto dá a entender que ele
precisou insistir com eles, talvez porque não tivessem qualquer intenção de saírem
de perto do seu mestre. Afinal, um milagre como aquele, ainda que benéfico a
muitos, era impressionante e contundente. Revelava muitas coisas, e acabava
dizendo bem mais do que aparentemente se percebia[2].
Obviamente aqueles discípulos estavam inquietos e hesitavam.
Jesus não perdeu tempo. Enviando os
discípulos mar a dentro, tratou de despedir a multidão, pois muitos já
intencionavam, dado o milagre realizado, proclamá-lo rei[3].
Não era esse o objetivo de Jesus. Ele não podia permitir que seus propósitos fossem
confundidos com objetivos políticos, qualquer que fosse. E mandando todos embora
dali, subiu sozinho ao monte para orar[4].
Talvez tivesse sido essa a principal
intenção de Jesus; conseguir um tempo a sós para dedicar-se à oração. Aliás, o
que Jesus mais fazia e o que muitas vezes foi registrado ao longo dos
evangelhos[5].
A extrema e constante comunhão com o Pai foi a condição mais relevante, dentre
todas aquelas que mais tarde serão motivo de análise e estudo, dos fatores que
sustentavam o caráter e a convicção de Jesus, sobre quem ele era, e o papel que
exerceria na libertação do homem da escravidão do pecado, e da rejeição a Deus.
Quando Jesus terminou seu tempo de
oração, ele viu o barco já em longa distância. E andando sobre as águas foi ao
encontro de seus discípulos no barco. Jesus não andou na direção do barco, mas
caminhou como quem passaria o barco. Isso pode sugerir que ele só foi visto,
portanto, quando emparelhou com o barco, que navegava obviamente muito
lentamente, dado o vento contrário que deveria lhe impedir velocidade maior. E
isso faz sentido, pois dificilmente algum deles olharia para trás, como quem
esperava Jesus alcançar o barco. Provavelmente não lhes passaria na cabeça que
o mestre poderia tentar alcançá-los, muito menos andando sobre as águas[6].
Tal aparição, no entanto, aterrorizou
os discípulos que imaginam mesmo ser um fantasma[7].
Novamente, porque alguém andar sobre as águas não era muito comum. Imagine alguém
de seu convívio familiar, alguém de quem a fisionomia e silhueta você se gabe de
conhecer extremamente, em qualquer que seja a circunstância, distância ou roupa
que esteja utilizando. Muito bem, agora imagine essa pessoa andando sobre a água
de um lago qualquer, ou andando acima do chão uns vinte centímetros, vindo em
sua direção. Vai me dizer que você não levará alguns segundos, no mínimo, até
confiar nos próprios olhos e entender minimamente o que está acontecendo, confirmando
assim a identidade dessa mesma pessoa que você imaginou no começo da brincadeira?
- É um fantasma! você dirá, pensará
ou gritará de primeira. Para só depois então, menos assustado, gritar. - Mamãe! É você?!
Portanto não há nada de patético na
reação dos discípulos. Podemos e devemos ser condescendentes com o susto deles.
Afinal, o convívio com Jesus esteve sempre a lhes impelir um ineditismo jamais
vivenciado por eles. Eles eram constantemente submetidos ao inesperado e ao
improvável. Não é sem razão que suas emoções variavam tanto, e suas certezas
eram postas a prova dia a dia. - Mestre, é
você mesmo? Lhe deixamos há tempos lá atrás, em terra seca. Como pode estar
aqui, agora, no meio do mar... Andando sobre as águas? Ainda seria razoável
condenar a dúvida e o pavor dos discípulos? Eu penso que não.
-
Senhor! se és tu, manda-me ir ter contigo sobre as águas.
Pedro, sempre ele, impulsivo, ansioso, mas também mais corajoso, tomou a frente
dos demais e pediu uma prova. Uma prova em que ele pudesse participar daquele
acontecimento tão inusitado e majestoso. -
Quero andar também sobre as águas como meu mestre. Ele poderá me fazer andar
sobre as águas, tanto quanto ele está andando, provavelmente pensou Pedro,
e por isso se ofereceu. Pedro não teve fé? Quero saber quem de nós se ofereceria
assim, de pronto. E mais, sem ter ainda certeza de que falava realmente com Jesus.
Pedro desceu do barco. Ele, e só ele,
ousou sair da segurança do barco, e caminhou sobre as águas. Ele não afundou
direto, demonstra o texto. Ao contrário, segundo a narrativa, ele andou uma boa
distância ao encontro de Jesus. Agora já não havia dúvidas; era realmente
Jesus. Tanto que ele, Pedro, estava andando sobre as águas. Só Jesus poderia
realizar tal feito, a exemplo dos cinco mil homens alimentados um pouco mais
cedo. Só Jesus poderia fazer aquele homem rude, pescador e sem qualquer apuro
intelectual, andar sobre as águas como se caminhando estivesse na areia da
praia. Mas Pedro começou a afundar.
-
Senhor, salva-me! Gritou Pedro com medo, após sentir o
vento empurrando e desequilibrando seu corpo, em sua passada provavelmente
ainda vacilante. Ele já havia mesmo andado uma distância razoável, tanto que
Jesus estava próximo e em condições de imediatamente lhe estender a mão, puxando-o
da água em que submergia. Então o que aconteceu para que começasse a afundar?
Por que Pedro deixou as passadas cessarem, e passou a submergir? - Por que duvidaste? Perguntou Jesus após
nos ter dado a explicação; - homem de
pequena fé.
O que significou então homem de pequena fé? Qual foi a dúvida
que de assalto tirou Pedro de sua caminhada na direção de Jesus e o fez afundar?
E por que um experiente pescador, conhecedor do mar da Galiléia, provavelmente
acostumado a nadar naquelas mesmas águas, gritou por socorro? Ele temia
afundar? Temia afogar-se? Teve medo das ondas? São perguntas interessantes,
cujas respostas não temos com precisão, mas bem podemos fazer suposições sem
forçarmos o texto a nada além do que já nos traz.
Primeiro Pedro provavelmente não temeu
afundar. Da mesma forma que não temeu afundar nas águas ao sair do barco. Sim,
porque se não fosse Jesus, ele simplesmente nadaria e, não andar, seria exatamente
o sinal de que aquele que estava em pé sobre as águas não era o seu mestre. Depois,
ao efetivamente andar sobre as águas, sentiu a certeza de que era Jesus quem
estava ali. Isso lhe sossegou do medo do desconhecido ou do fantasma, que foi o primeiro pensamento
do grupo. Notem que o texto apresenta então um agente determinante na história;
o vento.
Pedro caminhava seguro e confiante.
Aquele era mesmo Jesus. Ele disse venha, e ele foi. E como sempre, ao fazer
aquilo que Jesus manda, ele teve a segurança de que poderia realmente andar
sobre as águas. E ele o fez, pelo menos até o vento lhe trazer à memória
algumas realidades que sequer havia considerado ao iniciar a caminhada sobre o
mar. Aquele que disse vem, poderia ser e era realmente Jesus. Mas esse aqui, cujas
passadas ainda vacilantes avançam lentamente era Pedro. O vento lhe confrontou
a realidade.
Pedro era apenas um pescador, apenas
um homem qualquer do povo. Pedro era antes de tudo um pecador. Jesus sim podia
andar sobre as águas; Pedro achou que ele próprio não. Jesus podia multiplicar
pães e peixes; Pedro jamais se imaginou podendo tal coisa. Jesus podia tantos
outros milagres aos quais havia ele mesmo presenciado; Pedro achou que ele mesmo
nunca iria realizar qualquer coisa semelhante. - Como eu posso andar sobre as águas? Como eu posso realizar a mesma
coisa que meu mestre, Pedro deve ter pensado naquela ora. Pedro não duvidou
de Jesus. Pedro duvidou de si mesmo.
Antes que o leitor imagine que lá vem mais um texto de auto-ajuda,
preciso completar a última frase; Pedro duvidou de si mesmo. Duvidou de que Aquele
que operava em Jesus tudo o que ele realizava, poderia também nele operar, uma
vez que lembrou-se indigno pecador, a
exemplo do que fez quando conheceu Jesus na noite da farta pescaria que fizeram,
quando foram chamados por Jesus a se tornarem pescadores de homens.[8]
Aliás, o que faltava em Pedro e nos
falta em demasia nos dias de hoje é a mesma coisa. E isso não faltava
absolutamente em Jesus. Convicção! Um motor capaz de nos impulsionar a tudo que
nos é dado a realizar. A força geradora de atitudes que convergem para aquilo que
acreditamos precisar ou ser imperioso fazermos. A convicção nos impulsiona
incondicionalmente, nos orientando o caminho e legitimando projetos e
horizontes. Convicto, somos capazes de marchar para o alvo que nos está proposto,
por pior que ele seja, por mais difícil que se apresente o caminho. Custe o que
custar, ainda que custe a própria vida.[9]
Jesus tinha total convicção. Ele sabia
que o poder realizador nele presente era o Espírito de Deus. Ele sabia que cada
um de seus passos, cada uma de suas atitudes e gestos, convergiam para a
vontade de Deus. Ele conhecia seu destino, e portanto seu caminho e marcha.
Estava convicto de que o Espírito de Deus o conduziria a tudo que deveria
passar, realizando tudo conforme a vontade de Deus, que trabalhava para a
redenção da humanidade. Jesus tinha convicção de sua obra. Em verdade em verdade vos digo... Eu sou.[10]
Pedro porém duvidou. Faltou-lhe fé.
Faltou-lhe convicção. Ainda que cresse em Jesus e de certa maneira até em seu
poder, imaginou que aquele poder realizador não lhe poderia produzir o mesmo efeito.
Ou pelo menos não deveria, sendo ele quem era. - Senhor salva-me! E eu completo, - porque não sou digno disso.
A verdade é que vivemos assim,
exatamente como Pedro vivenciou esse episódio. Primeiro Jesus nos assusta com
sua presença. Depois nos acalmamos com sua voz que tranqüiliza as inquietações
da alma. Ele diz vem, e nós vamos;
seguimos até ele. Mas quando nos é exigido viver tudo aquilo que ele viveu.
Quando nos é requerido passar pelas mesmas circunstâncias que ele passou.
Quando nos é apresentada a demanda de vivermos tudo aquilo que ele viveu, em
toda sua plenitude, tanto para o que é agradável quanto para o que é dolorido, quando nos é imperioso andar sobra as águas, ao percebermos o vento contrário, afundamos. Quase que dizendo para nós mesmo eu não
posso, eu não consigo. - Não dou
conta. Senhor! Salva-me! Me leva de volta para o barco!
Jesus não oferecia qualquer resistência
à atuação do Espírito em sua vida. E talvez daí viesse sua extrema convicção.
Sendo o Logos de Deus, do que também tinha total convicção, era um homem
totalmente esvaziado de si mesmo, bem como sendo Deus, esvaziou-se de si mesmo,
não lhe sendo empecilho nem mesmo o ser Deus[11].
Jesus foi um homem totalmente convicto de que o Espírito de Deus que nele operava,
cumpriria cabalmente a vontade do Pai em sua vida. E assim, tudo o que ele
viesse a viver, tudo o que viesse a sofrer e realizar, natural ou
sobrenaturalmente, estaria realizando inexoravelmente a vontade de Deus.
Portanto precisamos ter convicção. Não
existem graus de convicção. Ou se tem ou não se tem. Ou ela nos impulsiona, ou nos
movemos vacilantes. Homens convictos viveram e também morreram pela vontade de
Deus. Cheios do Espírito Santo, realizaram o que deles se esperava. Convictos
levaram a cabo a carreira que lhes estava proposta. E nós? Andaremos sobre as águas,
ou voltaremos para a segurança de nossos barcos?