domingo, 31 de maio de 2015

Quando necessário andamos sobre as águas?





28 Respondeu-lhe Pedro: Senhor! se és tu, manda-me ir ter contigo sobre as águas. 29 Disse-lhe ele: Vem. Pedro, descendo do barco, e andando sobre as águas, foi ao encontro de Jesus. 30 Mas, sentindo o vento, teve medo; e, começando a submergir, clamou: Senhor, salva-me. 31 Imediatamente estendeu Jesus a mão, segurou-o, e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste?"
Mateus 14:28-31 - JFA

Essa é uma passagem bíblica bastante conhecida, até mesmo pelos que não professam qualquer religião, ou mesmo não professam necessariamente uma religião cristã; Jesus andando sobre as águas do Mar da Galiléia. Para muitos críticos, um evento que, se considerado real,  parece apenas uma demonstração isolada e desmedida de poder sobrenatural, ou ainda, para alguns outros, apenas um relato fantasioso com o flagrante propósito de comentar as conseqüências de uma fé vacilante, cujo sujeito principal é a fé de Pedro.

Mais cedo Jesus havia protagonizado um milagre impressionante. Mais de  cinco mil pessoas haviam sido alimentadas a partir de cinco pães e dois peixes, que estavam com um menino que acompanhava aqueles que queriam escutar o que Jesus tinha a dizer[1]. De modo que o clima de assombro pelo feito ainda devia permear as conversas entre os discípulos mais chegados. Um misto de perplexidade e júbilo naqueles que certamente ainda não entendiam muito bem o que lhes havia acontecido. - Quem é esse homem? Uma pergunta que talvez fosse feita por todos, sem que ninguém, contudo, ousasse verbalizá-la.

Imediatamente Jesus obrigou seus discípulos a entrarem no barco e passarem para o outro lado. O texto dá a entender que ele precisou insistir com eles, talvez porque não tivessem qualquer intenção de saírem de perto do seu mestre. Afinal, um milagre como aquele, ainda que benéfico a muitos, era impressionante e contundente. Revelava muitas coisas, e acabava dizendo bem mais do que aparentemente se percebia[2]. Obviamente aqueles discípulos estavam inquietos e hesitavam.

Jesus não perdeu tempo. Enviando os discípulos mar a dentro, tratou de despedir a multidão, pois muitos já intencionavam, dado o milagre realizado, proclamá-lo rei[3]. Não era esse o objetivo de Jesus. Ele não podia permitir que seus propósitos fossem confundidos com objetivos políticos, qualquer que fosse. E mandando todos embora dali, subiu sozinho ao monte para orar[4].

Talvez tivesse sido essa a principal intenção de Jesus; conseguir um tempo a sós para dedicar-se à oração. Aliás, o que Jesus mais fazia e o que muitas vezes foi registrado ao longo dos evangelhos[5]. A extrema e constante comunhão com o Pai foi a condição mais relevante, dentre todas aquelas que mais tarde serão motivo de análise e estudo, dos fatores que sustentavam o caráter e a convicção de Jesus, sobre quem ele era, e o papel que exerceria na libertação do homem da escravidão do pecado, e da rejeição a Deus.

Quando Jesus terminou seu tempo de oração, ele viu o barco já em longa distância. E andando sobre as águas foi ao encontro de seus discípulos no barco. Jesus não andou na direção do barco, mas caminhou como quem passaria o barco. Isso pode sugerir que ele só foi visto, portanto, quando emparelhou com o barco, que navegava obviamente muito lentamente, dado o vento contrário que deveria lhe impedir velocidade maior. E isso faz sentido, pois dificilmente algum deles olharia para trás, como quem esperava Jesus alcançar o barco. Provavelmente não lhes passaria na cabeça que o mestre poderia tentar alcançá-los, muito menos andando sobre as águas[6].

Tal aparição, no entanto, aterrorizou os discípulos que imaginam mesmo ser um fantasma[7]. Novamente, porque alguém andar sobre as águas não era muito comum. Imagine alguém de seu convívio familiar, alguém de quem a fisionomia e silhueta você se gabe de conhecer extremamente, em qualquer que seja a circunstância, distância ou roupa que esteja utilizando. Muito bem, agora imagine essa pessoa andando sobre a água de um lago qualquer, ou andando acima do chão uns vinte centímetros, vindo em sua direção. Vai me dizer que você não levará alguns segundos, no mínimo, até confiar nos próprios olhos e entender minimamente o que está acontecendo, confirmando assim a identidade dessa mesma pessoa que você imaginou no começo da brincadeira? - É um fantasma! você dirá, pensará ou gritará de primeira. Para só depois então, menos assustado, gritar. - Mamãe! É você?!

Portanto não há nada de patético na reação dos discípulos. Podemos e devemos ser condescendentes com o susto deles. Afinal, o convívio com Jesus esteve sempre a lhes impelir um ineditismo jamais vivenciado por eles. Eles eram constantemente submetidos ao inesperado e ao improvável. Não é sem razão que suas emoções variavam tanto, e suas certezas eram postas a prova dia a dia. - Mestre, é você mesmo? Lhe deixamos há tempos lá atrás, em terra seca. Como pode estar aqui, agora, no meio do mar... Andando sobre as águas? Ainda seria razoável condenar a dúvida e o pavor dos discípulos? Eu penso que não.

- Senhor! se és tu, manda-me ir ter contigo sobre as águas. Pedro, sempre ele, impulsivo, ansioso, mas também mais corajoso, tomou a frente dos demais e pediu uma prova. Uma prova em que ele pudesse participar daquele acontecimento tão inusitado e majestoso. - Quero andar também sobre as águas como meu mestre. Ele poderá me fazer andar sobre as águas, tanto quanto ele está andando, provavelmente pensou Pedro, e por isso se ofereceu. Pedro não teve fé? Quero saber quem de nós se ofereceria assim, de pronto. E mais, sem ter ainda certeza de que falava realmente com Jesus.

Pedro desceu do barco. Ele, e só ele, ousou sair da segurança do barco, e caminhou sobre as águas. Ele não afundou direto, demonstra o texto. Ao contrário, segundo a narrativa, ele andou uma boa distância ao encontro de Jesus. Agora já não havia dúvidas; era realmente Jesus. Tanto que ele, Pedro, estava andando sobre as águas. Só Jesus poderia realizar tal feito, a exemplo dos cinco mil homens alimentados um pouco mais cedo. Só Jesus poderia fazer aquele homem rude, pescador e sem qualquer apuro intelectual, andar sobre as águas como se caminhando estivesse na areia da praia. Mas Pedro começou a afundar.

- Senhor, salva-me! Gritou Pedro com medo, após sentir o vento empurrando e desequilibrando seu corpo, em sua passada provavelmente ainda vacilante. Ele já havia mesmo andado uma distância razoável, tanto que Jesus estava próximo e em condições de imediatamente lhe estender a mão, puxando-o da água em que submergia. Então o que aconteceu para que começasse a afundar? Por que Pedro deixou as passadas cessarem, e passou a submergir? - Por que duvidaste? Perguntou Jesus após nos ter dado a explicação; - homem de pequena fé.

O que significou então homem de pequena fé? Qual foi a dúvida que de assalto tirou Pedro de sua caminhada na direção de Jesus e o fez afundar? E por que um experiente pescador, conhecedor do mar da Galiléia, provavelmente acostumado a nadar naquelas mesmas águas, gritou por socorro? Ele temia afundar? Temia afogar-se? Teve medo das ondas? São perguntas interessantes, cujas respostas não temos com precisão, mas bem podemos fazer suposições sem forçarmos o texto a nada além do que já nos traz.

Primeiro Pedro provavelmente não temeu afundar. Da mesma forma que não temeu afundar nas águas ao sair do barco. Sim, porque se não fosse Jesus, ele simplesmente nadaria e, não andar, seria exatamente o sinal de que aquele que estava em pé sobre as águas não era o seu mestre. Depois, ao efetivamente andar sobre as águas, sentiu a certeza de que era Jesus quem estava ali. Isso lhe sossegou do medo do desconhecido ou do fantasma, que foi o primeiro pensamento do grupo. Notem que o texto apresenta então um agente determinante na história; o vento.

Pedro caminhava seguro e confiante. Aquele era mesmo Jesus. Ele disse venha, e ele foi. E como sempre, ao fazer aquilo que Jesus manda, ele teve a segurança de que poderia realmente andar sobre as águas. E ele o fez, pelo menos até o vento lhe trazer à memória algumas realidades que sequer havia considerado ao iniciar a caminhada sobre o mar. Aquele que disse vem, poderia ser e era realmente Jesus. Mas esse aqui, cujas passadas ainda vacilantes avançam lentamente era Pedro. O vento lhe confrontou a realidade.

Pedro era apenas um pescador, apenas um homem qualquer do povo. Pedro era antes de tudo um pecador. Jesus sim podia andar sobre as águas; Pedro achou que ele próprio não. Jesus podia multiplicar pães e peixes; Pedro jamais se imaginou podendo tal coisa. Jesus podia tantos outros milagres aos quais havia ele mesmo presenciado; Pedro achou que ele mesmo nunca iria realizar qualquer coisa semelhante. - Como eu posso andar sobre as águas? Como eu posso realizar a mesma coisa que meu mestre, Pedro deve ter pensado naquela ora. Pedro não duvidou de Jesus. Pedro duvidou de si mesmo.

Antes que o leitor imagine que lá vem mais um texto de auto-ajuda, preciso completar a última frase; Pedro duvidou de si mesmo. Duvidou de que Aquele que operava em Jesus tudo o que ele realizava, poderia também nele operar, uma vez que lembrou-se indigno pecador, a exemplo do que fez quando conheceu Jesus na noite da farta pescaria que fizeram, quando foram chamados por Jesus a se tornarem pescadores de homens.[8]

Aliás, o que faltava em Pedro e nos falta em demasia nos dias de hoje é a mesma coisa. E isso não faltava absolutamente em Jesus. Convicção! Um motor capaz de nos impulsionar a tudo que nos é dado a realizar. A força geradora de atitudes que convergem para aquilo que acreditamos precisar ou ser imperioso fazermos. A convicção nos impulsiona incondicionalmente, nos orientando o caminho e legitimando projetos e horizontes. Convicto, somos capazes de marchar para o alvo que nos está proposto, por pior que ele seja, por mais difícil que se apresente o caminho. Custe o que custar, ainda que custe a própria vida.[9]

Jesus tinha total convicção. Ele sabia que o poder realizador nele presente era o Espírito de Deus. Ele sabia que cada um de seus passos, cada uma de suas atitudes e gestos, convergiam para a vontade de Deus. Ele conhecia seu destino, e portanto seu caminho e marcha. Estava convicto de que o Espírito de Deus o conduziria a tudo que deveria passar, realizando tudo conforme a vontade de Deus, que trabalhava para a redenção da humanidade. Jesus tinha convicção de sua obra. Em verdade em verdade vos digo... Eu sou.[10]

Pedro porém duvidou. Faltou-lhe fé. Faltou-lhe convicção. Ainda que cresse em Jesus e de certa maneira até em seu poder, imaginou que aquele poder realizador não lhe poderia produzir o mesmo efeito. Ou pelo menos não deveria, sendo ele quem era. - Senhor salva-me! E eu completo, - porque não sou digno disso.

A verdade é que vivemos assim, exatamente como Pedro vivenciou esse episódio. Primeiro Jesus nos assusta com sua presença. Depois nos acalmamos com sua voz que tranqüiliza as inquietações da alma. Ele diz vem, e nós vamos; seguimos até ele. Mas quando nos é exigido viver tudo aquilo que ele viveu. Quando nos é requerido passar pelas mesmas circunstâncias que ele passou. Quando nos é apresentada a demanda de vivermos tudo aquilo que ele viveu, em toda sua plenitude, tanto para o que é agradável quanto para o que é dolorido, quando nos é imperioso andar sobra as águas, ao percebermos o vento contrário, afundamos. Quase que dizendo para nós mesmo eu não posso, eu não consigo. - Não dou conta. Senhor! Salva-me! Me leva de volta para o barco!

Jesus não oferecia qualquer resistência à atuação do Espírito em sua vida. E talvez daí viesse sua extrema convicção. Sendo o Logos de Deus, do que também tinha total convicção, era um homem totalmente esvaziado de si mesmo, bem como sendo Deus, esvaziou-se de si mesmo, não lhe sendo empecilho nem mesmo o ser Deus[11]. Jesus foi um homem totalmente convicto de que o Espírito de Deus que nele operava, cumpriria cabalmente a vontade do Pai em sua vida. E assim, tudo o que ele viesse a viver, tudo o que viesse a sofrer e realizar, natural ou sobrenaturalmente, estaria realizando inexoravelmente a vontade de Deus.

Portanto precisamos ter convicção. Não existem graus de convicção. Ou se tem ou não se tem. Ou ela nos impulsiona, ou nos movemos vacilantes. Homens convictos viveram e também morreram pela vontade de Deus. Cheios do Espírito Santo, realizaram o que deles se esperava. Convictos levaram a cabo a carreira que lhes estava proposta. E nós? Andaremos sobre as águas, ou voltaremos para a segurança de nossos barcos?




[1] Mateus 14:15-21
[2] Mateus 14:22
[3] João 6:14-15
[4] Mateus 14:23
[5] Marcos 1:35; 6:46; Lucas 5:16; 6:12; 9:18; 22:41; entre outros
[6] Mateus 14:24-25
[7] Mateus 14:26-27
[8] Lucas 5:1-11
[9] Hebreus 12:1-3
[10] João 14:1-15
[11] Filipenses 2:5-8

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Se conselho fosse bom, solução?





“Não havendo sábia direção, toda a nação é arruinada; o que a pode restaurar é o conselho de muitos sábios."
Provérbios 11:14 - KJA

 “O caminho do insensato é reto aos seus olhos; mas o que dá ouvidos ao conselho é sábio."
Provérbios 12:15 - JFA

“A arrogância só produz contendas, mas a sabedoria está com aqueles que buscam conselho."
Provérbios 13:10 - KJA

“Onde não há conselho, frustram-se os projetos; mas com a multidão de conselheiros se estabelecem."
Provérbios 15:22 - JFA

“quem parte para a guerra necessita de orientação estratégica, pois com muitos conselhos se conquista a vitória!"
Provérbios 24:6 - KJA

“Mais vale um jovem pobre e sábio do que um rei ancião e insensato, que em sua arrogância já não aceita mais conselhos."
Eclesiastes 4:13 - KJA

"Se conselho fosse bom ninguém dava; vendia." É o que diz a sabedoria popular. E interessante! esse ditado é argumento tanto para quem quer aconselhar, mas teme a reação de seu interlocutor, quanto para quem efetivamente não quer aceitar qualquer conselho sobre um assunto qualquer, principalmente se esse conselho sugere não realizar alguma coisa da qual se está muito interessado em fazer. Normalmente ouvimos de bom grado os conselhos que nos atendem as próprias inclinações. Servem sempre e convenientemente para justificar atitudes, ou para criar o "bode expiatório" a quem culparemos pelo que quer que dê errado. - Tá vendo?! Fui ouvir você... Olha no que deu!

Nesse cenário por onde caminha a realidade da conduta humana e suas conveniências, parece até desaconselhável, emitir conselhos sobre qualquer que seja o assunto, em quaisquer que sejam as circunstâncias, sob pena de ser inoportuno diante da inflexibilidade do aconselhado, ou de ser responsabilizado pela desventura daquele a quem se pretendeu ajudar. Dura é a vida do conselheiro. Bem faz o consultor que cobra pelo conselho que dá. Afinal, conselho bom se vende.

Mas nosso foco aqui não será o conselheiro e nem mesmo o conselho em si, mas a atitude sábia de se aconselhar, de se enriquecer com o máximo de informações e percepções sobre um determinado assunto, antes de tomar uma decisão, ou firmar posição. Na multidão dos conselhos habita a sabedoria. Mas qual é a conexão de tomar conselho, com o exercício filosófico a que se pretende a mania de pensar no que cremos? Eu diria que total.

Uma das características mais marcantes da filosofia é o seu método. No trabalho incessante de buscar respostas para suas questões, chegar a alguma resposta é menos importante que o próprio processo de se buscá-las. O exercício da investigação, é de fato, a chama inextinguível do pulsar filosófico. E isso se dá em grande medida, não se sabendo bem o que é causa e o que é efeito, porque a filosofia não trabalha com verdades absolutas, ensimesmadas que são de particulares observações do mundo à volta do filósofo, ainda que suas afirmações, oriundas de diferentes e variadas contribuições de seu cotidiano, sempre se pretendam à universalidade.

Desse modo, não havendo por princípio uma verdade absoluta a que alguém possa chegar por particular observação, a investigação de certas questões sempre estarão a mercê de sucessivos exercícios elucubrativos, que alternarão os assuntos em seus laboratórios, conforme circunstâncias históricas e sociais, que demandem posicionamento ou orientação do pensamento humano e de senso comum.

Esse perfil da atividade filosófica, é milenar. Nas escolas filosóficas da antiguidade, os alunos eram sempre estimulados por seus mestres a buscarem entendimentos divergentes de suas observações. Em vez de lhes ensinar apenas a conclusão a que chegavam, instruía-os no caminho que trilhavam até uma determinada idéia, incentivando-os a autonomia de pensamento. Assim, eram estimulados a discordarem e a criticarem seus mestres, trazendo novas concepções e possibilidades de entendimento das questões sobre as quais se debruçavam.

Ora, no mundo das idéias o tempo cronológico não limita e muito menos impede o debate entre os diversos pensadores da história universal. Ora contradizendo, ora corroborando, pensadores se sucedem na tarefa de trazer às suas ágoras contemporâneas, questões que serão discutidas livremente por diversos filósofos, quer estejam presentes fisicamente, quer se façam presentes por intermédio de suas obras, registros, ou tradição oral a eles atribuídas. Uma verdadeira academia do pensamento, onde o mundo pode se aconselhar com as idéias e contribuições deixadas por cada um dos seus membros históricos.

Esses conselhos a que me refiro, são contrapostos, criticados, discutidos e comentados. Quer aceitos na íntegra ou em partes, quer rejeitados por completo, todos inexoravelmente servirão de parâmetros que tangerão o pensamento humano pela história, em suas demandas por conhecimento e direcionamento existencial. A cada fase da nossa história, novos membros vão compondo essa academia do pensamento, enriquecendo todo e qualquer debate, e contribuindo para visões cada vez mais adequadas à contemporaneidade do debate mais recente. Na multidão dos conselhos habita a sabedoria. Não é erro de digitação. Estou repetindo essa frase propositalmente.

Não obstante a costumeira demonização da atividade pensante no que se refere a investigação das razões de nossa fé, penso que na multidão dos conselhos habita a sabedoria. Ou seja, quanto mais rodeado de conselhos, quanto mais enriquecido pela atividade do pensamento humano, quer para confirmá-lo, quer para rejeitá-lo, tanto mais consistente serão minhas posições, uma vez que frutos de uma conclusão robusta, não oriunda de uma mímica conveniente e oportunista qualquer, mas nascida de uma atividade responsável e prazerosa; a renovação do nosso entendimento, para entendemos a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.[1]

A essa altura muitos já devem ter torcido o nariz. Mas haverá quem rasgue as próprias vestes[2]. Porque o questionamento bem como a confrontação de idéias e visões de mundo, são, em tese, os melhores e mais bem-sucedidos métodos de aprofundamento do conhecimento, qualquer que seja a disciplina ou ciência na qual esteja inserido. Inclusive na teologia. Ou não foi assim que avançou a revelação de Deus ao longo da história da humanidade, mais particularmente na história de Israel?

O questionamento das tradições judaicas, bem como a confrontação dos costumes religiosos dos escribas e fariseus, estão espalhados por todo o relato dos evangelhos. As idéias convenientemente estabelecidas sobre o que era religiosidade, davam à elite religiosa uma confortável condição de destaque, concedendo prestígios e acumulando-lhes vantagens oportunas. Mas Jesus lhes questionava a pertinência dos hábitos e a natureza das intenções. Ele confrontava repetidamente a superficialidade de seus ritos, como a realidade maldosa de suas pretensões. Não foi sem motivo que esses profissionais da religião e aproveitadores da boa fé do povo, foram chamados, sem hesitação, de hipócritas e de sepulcros caiados, dado o fingimento com que se apresentavam como piedosos e probos religiosos.

Paulo não agiu muito diferente. Toda sua teologia, em visível construção ao longo de suas cartas, é fruto do questionamento e confrontação do que se acreditava, com aquilo que se descortinava diante de seus olhos, a medida que a experiência da vida transformada lhe propiciava novas percepções sobre a relação da humanidade com Deus. Confrontando idéias e questionando a si mesmo, aquele zeloso judeu que consentiu com a morte de Estevão e empreendeu viagem para prender e julgar os seguidores de Jesus, tornou-se o principal expoente do cristianismo, sendo o principal evangelizador entre os gentios.

Ora, é preciso sair do casulo. Abrir os olhos. Tomar conselho com a vida e suas possibilidades. Rasgar as receitas de existências pré-moldadas, e se lançar às experiências enriquecedoras que a relação com Deus e as pessoas que nos cercam são capazes de produzir. Precisamos correr o risco do inédito em nosso cotidiano. Prestar um culto racional pela transformação da nossa mente. É na mente que são produzidas as idéias. É na mente que se armazena o entendimento. Se não cremos porque entendemos, é por entendermos que sustentamos e enriquecemos nossa relação com Deus, e somos renovados em nossas inclinações e conduta.


“Um homem sábio é poderoso, e quem possui entendimento potencializa sua força;"
Provérbios 24:5 - KJA

Portanto reitero o convite. Leia, ouça, assista, debata, pergunte e questione. Leia incessantemente sua Bíblia e abra espaço para outras literaturas. Ouça louvores e adore a Deus com inteireza de coração, mas não deixe ouvir poesia e cantar a vida em verso e prosa. Assista na TV seus programas prediletos e não perca a oportunidade de analisá-los comentá-los; a ficção ajuda a debater o mundo real. Do que entende e conhece, ensine; o que não sabe, pergunte. O que não compreende questione. Mente vazia, dizia minha avó, é oficina do diabo. Afinal de contas, é na multidão dos conselhos que habita a sabedoria.



[1] Romanos 12:1-2
[2] Mateus 26:65; Joel 2:13

sábado, 23 de maio de 2015

A vida que nasce da fome e sede




“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos."
                      Mateus 5:6 - TB

Seguindo nosso passeio pelas pedras e relevos do Sermão do Monte, nos deparamos com a quarta bem-aventurança. Fome e sede parecem apontar a uma questão meramente social para alguns, confirmando o caráter anterior atribuído a pobres, presente na primeira bem-aventurança do discurso. E esse texto, ao longo de anos, de forma recorrente é utilizado como sustentação ideológica para diversos movimentos sociais mundo afora.

Não que ele não possa mesmo inspirar tais ações. Não que seja menos nobre utilizá-lo como instrumento de conscientização da necessidade de se realizar urgente justiça social em diversos países por todo o mundo, mesmo em países tidos como desenvolvidos ou países de primeiro mundo. Nada contra. Mas não podemos parar por aí, pois a mensagem do texto é ainda mais profunda e enriquecedora, podendo sim promover uma verdadeira justiça social, ampliando as possibilidades, através de pessoas profundamente motivadas pela ação da justiça de Deus em suas vidas.

Mas por que o texto não se refere à justiça social, à mitigação da fome e da sede dessa gente que necessita tão direta e urgentemente da ação do estado, e da solidariedade de quem não passou ou não passa por qualquer privação de necessidades tão vitais? Simplesmente porque esse não era o contexto e a circunstância em que o discurso do sermão foi proclamado. Não que a fome e a sede dessa gente não fosse uma preocupação de Jesus. Era, é, e sempre será. Mas naquele momento, ao proferir aquele sermão, quem tem a fome e a sede de justiça, seguiu o contexto do que se reconhece pobre de espírito, acompanhou o ritmo do que chora seu pranto, e caminhou junto ao manso que opta por confiar no cuidado de Deus. Quem tem fome e sede de justiça é um bem-aventurado.

Então essa fome e essa sede não podem se referir a um estado de carência de comida ou de bebida. Ou alguém se oferece a explicar qual seria a vantagem, ainda que futura, de se passar fome e sede? Sim, porque para quem sente fome e sede só há um bem a perseguir, um só objetivo; mitigar a fome e a sede o mais rapidamente possível. De modo que não há qualquer recompensa futura, que possa minimizar essa falta tão absoluta e urgente. Além disso, caso Jesus estivesse se referindo às necessidades de alimentação e hidratação, a frase teria sido: Bem-Aventurados os que passam fome e sede, porque serão saciados. Ora, quem tem fome e sede precisa de pão e água, não de justiça, pois não a poderia comer, e nem sequer beber.

É claro, não sou cego às vicissitudes da vida. A falta de justiça social pode, e na prática provoca mesmo, carências de diversas e importantes necessidades primárias ao indivíduo alijado de seus direitos mais básicos. Mas se tais necessidades existem e não são atendidas, onde estaria o consolo? Em que circunstância se basearia a bem-aventurança proclamada por Jesus? Numa saciedade futura onde não existirá isso que sofro no presente? Estaria Jesus dizendo: Passe aí um pouquinho de fome e sede pela injustiça do mundo, que logo você morre de inanição, e no paraíso você, ou não precisará de comida e bebida, ou lá haverá mesa farta e bebida à vontade. Penso que isso seria cruel e cínico, pra falar apenas o que me vem à cabeça de pronto.

Assim não nos sobram muitas alternativas. A fome e a sede a que se refere a quarta bem-aventurança, não é uma carência física, mas uma carência da alma. E não é apenas uma carência provisória e pontual. Trata-se de um desejo permanente pela justiça de Deus. Sim, justiça de Deus. Porque se serão fartos no porvir; se tal saciedade só se dará no futuro, assim como dos pobres será o reino dos céus, e assim como os mansos que herdarão a terra, se é nesse reino de Deus que ocorrerá a fartura da justiça pela qual tem fome e sede, essa justiça só pode ser a justiça de Deus. Mas por que um desejo permanente? Por que tal carência se perpetuará até a morte?

O contexto de todo o sermão de Jesus, aponta para um aprofundamento da conduta espiritual. Comparativamente, Jesus irá sempre confrontar a superficialidade religiosa e exibicionista dos fariseus, com a legítima contrição daquele que se reconhece pobre de espírito e carente de Deus, e por isso pranteiam a fragilidade de suas almas. Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no Reino dos Céus.[1]

Ora, então o que é a justiça de Deus pela qual devemos ser famintos e sedentos. E que justiça é essa nossa, que excedendo à dos escribas e fariseus, me fará entrar no Reino dos Céus? Precisaremos dar uma olhadinha nisso primeiro, antes de prosseguirmos, pois esse conceito é muitíssimo importante para nossa reflexão.

Antes de mais nada é necessário desconstruir alguns conceitos atribuídos à justiça em nosso senso comum. O que entendemos como justiça está intimamente ligado ao conceito forense, em que fazer justiça é retribuir um ato ilegal e por isso injusto, com aplicação de uma punição estabelecida na lei, de modo que o infrator "pague" pelo seu ato de injustiça. Portanto, justiça em nosso contexto cotidiano mais simples, remete à punição de culpados, ou reequilíbrio de "desigualdades"; dois pra lá, dois pra cá. Porém não é esse o sentido bíblico de justiça. Nela, os termos tsedãqâ no Antigo Testamento, ou dikaiosyné no Novo Testamento, estão muito mais ligados ao conceito de recuperação de uma condição, ou um resgate. Como uma redenção do condenado ainda no corredor da morte do tribunal celestial.

Como pode um homem ser justo para com Deus?[2] - pergunta Jó, acusado de ter cometido alguma injustiça diante de Deus, que explicasse sua desventura. Mas não somos todos injustos? - seria uma continuação possível de sua argumentação. Sim, eu diria a Jó, certamente somos todos injustos perante Deus. Como está escrito: Não há justo, nem sequer um.[3] Então a punição é justa e adequada. E não há quem possa dela escapar. Pelo menos não com subterfúgios, barganhas, ou mesmo sacrifícios de adulação. Pois todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças como trapo da imundícia; e todos nós murchamos como a folha, e as nossas iniqüidades, como o vento, nos arrebatam.[4] Fizeste-me compreender que nem oferendas e sacrifícios desejaste; não requereste de mim holocaustos para remir meus pecados.[5] De modo que não só somos todos injustos, como também não há nada que possamos fazer por nós mesmos para nos resgatar da punição iminente.


“E creu Abrão no Senhor, e o Senhor imputou-lhe isto como justiça."
                      Gênesis 15:6  - JFA

É muito importante notar o que revela esse pequeno versículo, que mais tarde será citado no livro de Hebreus, já no Novo Testamento. Ele diz que a justiça não é realizada por Abraão, mas sim imputada a ele, atribuída, por um princípio de natureza e não de origem. Ele passa a estar justo (natureza), mas não foi ele que realizou tal justiça (origem). A quem pois então pertence a justiça? Pertence a Deus. E que justiça é essa? Essa justiça é o resgate do homem de sua condição de injusto, e que por injusto passível da punição.

Ora, quem é que depende da justiça de Deus? Todos. Mas a quem é que Deus a atribui? A quem crê. A quem reconhece que depende de Deus e sabe de sua pobreza espiritual. A quem pranteia essa condição de pobreza e chora. A quem aguarda o favorecimento imerecido de Deus, e não tenta agir por conta própria, se fazendo justo pelas próprias mãos. Por fim, a quem se encontra faminto e sedento por ela. Portanto a justiça de Deus é o resgate de quem crê. É o resgate do faminto e do sedento, fazendo dele um bem-aventurado.


1Justificados, pois, pela fé, tenhamos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, 2 por quem obtivemos também nosso acesso pela fé a esta graça, na qual estamos firmes, e gloriemo-nos na esperança da glória de Deus."
                      Romanos 5:1 e 2 - JFA

Eis, portanto, a finalidade última da justificação; o resgate da relação entre Criador e criatura. A restauração de uma relação genuína, renovada e legítima. Profunda e muito mais abençoadora. Insaciável e capaz de fazer dessa fome e dessa sede, uma motivação decisiva na direção de uma conduta justa, que exceda à falsidade e à fantasia pseudo-devotada dos escribas e fariseus. Bem-Aventurado os famintos e sedentos dessa justiça; desse resgate. Bem-Aventurado os que se alimentam da vontade de Deus, e saciam suas sedes em poços abertos pela providência e pelo amor de Deus. Porque aquele que beber da água que eu (Jesus) lhe der nunca terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que jorre para a vida eterna.[6] Bem-Aventurado é aquele cuja iniqüidade é perdoada, cujo pecado é coberto.[7]

É portanto dessa relação que temos fome e sede. É desse convívio íntimo que dependemos por predileção. Bem-Aventurado somos por marcharmos nesse ciclo virtuoso, em que a carência jamais se esgota, ainda que a fartura jamais se acabe.



[1]  Mateus 5:20
[2] Jó 9:2
[3] Romanos 3:10
[4] Isaías 64:6
[5] Salmos 40:6
[6] João 4:14
[7] Salmos 32:1
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