Por Jânsen Leiros Jr.
A fé cristã é racional
porque se fundamenta em evidências e experiências, ainda que transcenda a
razão.” - Alister McGrath; teólogo anglicano e
cientista; Dúvida: Certeza e Compromisso na Vida Cristã
"A luz da razão
e a luz da fé provêm ambas de Deus; por isso, não se podem contradizer entre
si." - Santo Tomás de Aquino; Fides et Ratio,
Encíclica de João Paulo II citando Aquino
"A soberania de
Deus nunca anulou a responsabilidade humana. Deus age conforme Sua vontade, e
nossa confiança deve repousar em Sua providência." - Augustus Nicodemus; teólogo e pastor
presbiteriano
"Que não nos
envergonhemos da doutrina bíblica da absoluta soberania de Deus, não peçamos
desculpas pela verdade de Deus, mas que antes, venhamos a proclamá-la." - A.W. Pink; teólogo reformado
"A espera em
Deus é uma lição que poucos aprendem plenamente." - Charles Spurgeon; pregador; Sermões
"Logo, pois,
compadece-se de quem quer, e endurece a quem quer." -Romanos 9:18
Nos
dias atuais, tem se tornado comum encontrar publicações que romantizam a chamada
“fé cega” como virtude superior, exaltando a atitude de Pedro no episódio da
pesca milagrosa (Lucas 5) como uma obediência inquestionável, fruto de uma fé
pronta, convicta e até exemplar. Alguns chegam a usar esse modelo como prova de
que é justamente a fé desmedida, irracional e submissa que move o coração de
Deus. No entanto, uma leitura mais acurada e conectada ao contexto bíblico e
humano do episódio revela nuances muito mais profundas — e, paradoxalmente,
mais reveladoras sobre o que é, de fato, a fé cristã.
Em
Lucas 5:5, quando Pedro responde a Jesus: "Sob a tua palavra, lançarei as
redes", muitos estudiosos e pregadores interpretam essa atitude como uma
obediência absoluta, uma confiança plena no que Jesus dizia. Contudo, ao
analisar o contexto, fica claro que Pedro não estava, de fato, demonstrando uma
fé cega ou incondicional. Em vez disso, ele estava fazendo uma aposta — uma
aposta na possibilidade de que Jesus fosse mais do que o "mestre
itinerante" que as multidões falavam. Ele não estava apenas obedecendo sem
questionar; ele estava disposto a testar se, de fato, Jesus era quem ele dizia
ser. E, nesse ato de testar, Pedro se posiciona no limiar entre a dúvida e a
fé, entre o ceticismo e a possibilidade de um encontro genuíno com o Divino.
Pedro,
como pescador experiente, sabia que a melhor hora para pescar era durante a
noite, quando os peixes estavam mais ativos. Ele havia passado toda a noite sem
sucesso, e sua experiência e conhecimento técnico o haviam levado a concluir
que nada mais seria possível. Quando Jesus, sem ser pescador, sugeriu que ele
lançasse as redes novamente, Pedro não estava simplesmente obedecendo. Ele
estava, talvez de forma relutante, dando a Jesus a chance de provar algo novo.
O texto revela a complexidade da resposta de Pedro: “Mas, já que tu mandas, vou
lançar as redes.” Ele não se entregou a uma fé sem questionamento, mas aceitou
um desafio, disposto a ir além do que a razão e a experiência lhe diziam.
A
visão de que Pedro obedeceu sem questionar é uma simplificação excessiva do que
realmente aconteceu. Ao invés de uma fé sem razão ou sem questionamentos, Pedro
foi fisgado pela possibilidade de que algo extraordinário poderia acontecer, o
que, de fato, aconteceu quando as redes se encheram de peixes. Esse milagre não
foi apenas um teste da fé de Pedro, mas uma manifestação do poder soberano de
Deus, algo que transcende nossa capacidade de compreendê-lo completamente, mas
que não exige nossa aceitação passiva ou irracional.
Essa
dimensão do questionamento como parte do caminho da fé é recorrente nas
Escrituras. Abraão, o “pai da fé”, questiona a Deus sobre como poderia se
tornar pai de uma grande nação se já era avançado em idade e Sara, sua esposa,
estéril e idosa (Gênesis 15:2-6; 17:17). Moisés, diante da sarça ardente,
hesita diante da missão divina, apontando suas limitações pessoais e seu receio
de não ser ouvido pelo povo (Êxodo 3:11; 4:1,10). E Maria, ao ouvir do anjo a
promessa da concepção virginal, indaga: "Como se fará isso, pois não
conheço homem algum?" (Lucas 1:34). Em todos esses casos, Deus não
repreende o questionamento. Ao contrário, Ele reafirma sua promessa e revela o
“como” realizará sua vontade. A fé, portanto, não exclui o desejo de
compreensão; ela se fortalece na Palavra explicada, sustentada pela própria
revelação divina. É nesse chão de diálogo — entre o humano que pergunta e o
divino que responde — que nasce uma fé vigorosa, comprometida e real.
A
interpretação da fé de Pedro como sendo um “teste” e não uma fé cega também nos
ajuda a entender melhor outros episódios da vida de Pedro. Ele era um homem
cheio de falhas e incertezas, como evidenciado por sua reação ao ser convidado
a andar sobre as águas (Mateus 14:28-31) ou pelo episódio de negar a Jesus
(Mateus 26:69-75). A fé de Pedro não foi uma fé inquestionável e sem falhas;
foi, sim, uma fé construída por meio de provas, questionamentos, dúvidas e,
acima de tudo, encontros com Jesus que o transformaram.
A
fé cristã não se constrói em um vazio de ignorância ou passividade. A fé que a
Bíblia nos chama a ter é aquela que se baseia na revelação de Deus, que é tanto
racional quanto experimental, que se desenvolve por meio do relacionamento com
Deus e não por uma simples obediência a um conjunto de regras ou palavras.
Quando Jesus confronta Pedro, não está chamando à obediência cega, mas à
confiança baseada no que Ele estava prestes a mostrar.
O
mesmo se aplica a outras histórias que destacam o caráter soberano de Deus na
realização de milagres. Por exemplo, no episódio da viúva de Naim (Lucas
7:11-17), vemos uma mulher que perdeu seu único filho e estava em um lamento
profundo. Ela não pediu nada a Jesus, mas Ele, movido por compaixão, restaurou
a vida de seu filho. O milagre não foi resultado da fé ou do pedido da mãe; foi
uma ação soberana de Jesus, que não aguardou que a mulher pedisse ou
demonstrasse uma fé específica. Isso é uma evidência clara de que os milagres
de Deus não dependem de nossa fé ou de nossas palavras, mas de Sua misericórdia
e soberania.
A
ideia de que Deus responde apenas à nossa fé, como se Ele fosse movido por
nossas atitudes, pode levar a uma visão distorcida de Deus, como se Ele fosse
um ser que faz negócios conosco, em vez de um Deus soberano que age de acordo
com Sua vontade. O perigo de afirmar que o milagre depende exclusivamente de
nossa fé é colocar Deus na posição de um "ídolo", de quem esperamos
algo em troca de nossas ações ou palavras. Isso pode transformar a fé em uma
moeda de troca, onde nossa confiança em Deus é condicionada a resultados
visíveis e imediatos, algo totalmente alienado da verdadeira essência do
cristianismo.
Essa
concepção de que Deus tem uma “caixa de milagres” individual, que seria aberta
à medida que alcançamos certo grau de fé ou demonstramos as atitudes
"certas", se aproxima perigosamente de uma espiritualidade
meritocrática, onde a graça se torna uma recompensa e não um dom. Reduz-se a
providência divina a um sistema de “input e output” espiritual, como se Deus
estivesse preso a um roteiro que depende exclusivamente de nossas emoções,
palavras ou gestos. Essa leitura condiciona o agir de Deus ao nosso desempenho,
como se o Criador estivesse limitado por nossos acertos, e não fosse Ele mesmo
a origem de toda boa dádiva (Tiago 1:17).
A
ideia de que Deus funciona segundo um “algoritmo espiritual”, abrindo
compartimentos de bênçãos conforme a intensidade ou qualidade da nossa fé, de
fato distorce completamente a doutrina da graça e coloca o ser humano no centro
do processo, como se fosse ele o protagonista do milagre, e não Deus. Esse é um
dos grandes desvios da espiritualidade contemporânea, que é o culto ao “mover”
como espetáculo e à fé como técnica.
Trata-se,
no fundo, de uma tentativa de controlar o incontrolável — de transformar o
mistério da ação de Deus em uma fórmula previsível. Uma espécie de “misticismo
evangélico” em que a bênção é tratada como um prêmio por obediência
performática, ou a fé como um mecanismo mágico que aciona o céu. Essa
perspectiva enfraquece a confiança na soberania divina e nos afasta da
experiência bíblica, que mostra um Deus que age conforme Sua vontade, movido
por misericórdia e compaixão — e não por regras humanas ou expectativas de
comportamento espiritual. O Deus revelado nas Escrituras não é um gênio da
lâmpada acionado por frases certas, mas um Pai que conhece nossas limitações e cuida
de nós com liberdade, graça e soberania.
Por
isso, o verdadeiro milagre é o próprio Deus vindo ao nosso encontro, mesmo
quando não temos forças para buscá-Lo. Não é sobre “se posicionar”, mas sobre
ser alcançado. Não é sobre acionar promessas, mas sobre confiar em um Deus que
age por quem n’Ele espera (Isaías 64:4).
E esperar, às vezes, é tudo o que conseguimos fazer. E, por graça, é tudo o que Ele pede.