sábado, 12 de abril de 2025

A "intimidade com Deus" e a armadilha do sentimentalismo evangélico

Por Jânsen Leiros Jr.


Quando a emoção vira critério de espiritualidade, e a linguagem piedosa esconde uma teologia rasa, é hora de revisitar os fundamentos da fé. 

John MacArthur

“Muitos cristãos modernos não querem ser ensinados, querem ser entretidos. Confundem lágrimas com arrependimento, arrepio com presença de Deus, e euforia com fé.”

Martyn Lloyd-Jones

“O maior perigo para a fé é quando se busca experiência em vez da verdade. Porque a verdade transforma, a experiência apenas impressiona.”

Francis Schaeffer

“Se não há verdade, não pode haver fé cristã. Se a fé cristã é apenas uma experiência subjetiva, então ela não é diferente de qualquer emoção religiosa pagã.”

Jonathan Edwards

“As afeições religiosas verdadeiras nascem da luz da verdade que ilumina o coração — e não do calor da emoção que apenas aquece a superfície.”

C.S. Lewis

“Se você busca uma religião feita para o seu conforto, eu certamente não lhe recomendaria o cristianismo.”

A espiritualidade evangélica contemporânea, especialmente nos círculos mais carismáticos e afetivos da fé, tem adotado com entusiasmo a expressão “intimidade com Deus”. É um mantra repetido nos louvores, sermões, devocionais, livros e conselhos pastorais. A ideia seduz, encanta e emociona. Afinal, quem não gostaria de ser íntimo do Criador, aquele que governa os céus e a terra, e que nos ama com amor eterno?

Mas será que essa “intimidade” é uma categoria teológica legítima? Ou será que estamos usando uma palavra bonita para tentar expressar uma experiência que não compreendemos completamente — ou, pior, que reinventamos à nossa imagem e semelhança?

Conhecimento mútuo: a exigência que a intimidade impõe

Intimidade, no conceito comum, não é apenas proximidade ou convivência; é o conhecimento mútuo e voluntário entre dois seres conscientes de si. É quando duas pessoas se revelam uma à outra, se expõem, se abrem, se permitem ser conhecidas sem reservas. E aqui reside a primeira dissonância com a relação entre o ser humano e Deus.

Porque, se é verdade que Deus nos conhece de forma total e absoluta — “Antes mesmo que a palavra me chegue à língua, tu já a conheces inteiramente, Senhor” (Sl 139.4) —, também é verdade que o contrário jamais se dá. Nós jamais O conheceremos dessa forma, nem nesta era e, possivelmente, nem na glória, uma vez que o ser de Deus é infinitamente transcendente. Nosso conhecimento dEle se dá unicamente por Sua auto-revelação — nas Escrituras, em Cristo e na ação iluminadora do Espírito Santo (Jo 1.18; 1Co 2.10-12). Como lembra Karl Barth, “Deus se revela, Deus se revela a si mesmo, Deus se revela como amor.” Ou seja, o acesso a Deus não é espontâneo, mas concedido.

Portanto, se o nosso conhecimento de Deus é unilateralmente concedido, assimétrico por natureza e mediado pela fé, como podemos falar em intimidade nos moldes humanos? Intimidade pressupõe igualdade de acesso ao outro, mas, no caso de Deus, é Ele quem estabelece os termos — e não nós.

A espiritualidade sentimentalóide e o risco do autoengano

É nesse ponto que a crítica se intensifica. Intimidade, no conceito moderno, parece mais uma fantasia emocional do que uma realidade teológica. Tornou-se uma ideia moldada por uma cultura afetiva, terapêutica e centrada no eu, onde experiências emocionais intensas são confundidas com profundidade espiritual.

Na prática, essa busca por "intimidade" acaba funcionando como uma espécie de substituto para a verdadeira transformação espiritual. Confunde-se calor emocional com presença de Deus, confissão com vulnerabilidade terapêutica, lágrimas com santidade. O que se deseja é uma “presença divina” que nos cause arrepio, mas sem necessariamente nos transformar segundo o caráter de Cristo. Há uma ânsia por ser tocado por Deus, mas não necessariamente por ser moldado por Ele.

Paul Washer alertou certa vez: “A evidência da salvação não é um sentimento de que você está salvo, mas uma vida que demonstra que você foi transformado.” A Palavra ecoa essa mesma lógica: “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama” (Jo 14.21). Em nenhum momento Jesus sugere que a emoção seja critério de proximidade; Ele fala de obediência, de permanência, de transformação.

Uma fé que se refugia no universo gospel

O que se convencionou chamar de “intimidade com Deus” tem, muitas vezes, funcionado como porta de entrada para um estilo de vida “gospelizado”, em que tudo gira em torno de um submundo cultural cristão: a música é gospel, a moda é gospel, as amizades são gospel, o consumo é gospel. Uma bolha onde a vida é protegida da realidade, mas não necessariamente santificada por ela.

Esse fenômeno, por vezes, se aproxima perigosamente de um novo tipo de nacionalismo judaico — onde a pertença ao grupo "dos íntimos de Deus" substitui a vivência da cruz. Mas a verdadeira espiritualidade não se limita à cultura que nos cerca. Ela se manifesta na entrega: Eis-me aqui, como disse Isaías (Is 6.8), ainda tremendo diante da santidade de Deus. Essa disposição é o cerne da fé bíblica: não um desejo de sentir, mas uma prontidão para obedecer.

O que as Escrituras realmente propõem

A Bíblia não nos convoca à intimidade, mas à comunhão (koinonia), à obediência, à reverência, à santidade. A espiritualidade bíblica é relacional, sim, mas marcada por assimetria, temor e redenção. Não há cumplicidade emocional entre Criador e criatura. Há aliança. E ela é baseada na fidelidade dEle e na nossa resposta a essa fidelidade.

O apóstolo Paulo nunca disse que buscava intimidade com Deus. Disse que queria “conhecê-lo, e o poder da sua ressurreição, e a participação dos seus sofrimentos” (Fp 3.10). Queria ser conformado com Cristo, não acariciado por Ele.

Portanto, talvez devamos parar de romantizar uma relação que, na verdade, exige obediência, humildade e entrega — não emoção contínua. A pergunta que deveria ecoar em nossos corações não é "quão íntimo estou de Deus?", mas sim: tenho vivido de modo digno da vocação que recebi? (Ef 4.1).

 


2 comentários:

  1. Genial e oportuna essa reflexão! Pensar nas camadas mais profundas é pensar fora da caixa. esta é a verdadeira arte. Parabéns!

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  2. Obrigado pelo incentivo, Lucy. Deus abençoe vc sempre!

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