“Todos
aqueles que se julgam possuidores da verdade são inquisidores.
...
A tentação dos absolutos é uma característica universal do espírito humano. Todos
queremos possuir a verdade. E para possuir a verdade é preciso que se a
engaiole. E para engaiolar a verdade é necessário engaiolar a liberdade e o
pensamento”.
Rubem
Alves em Religião
e Repressão
Em
outubro do ano passado, motivado pela crescente onda de calor que atravessou a
discussão política no Brasil por conta das eleições presidenciais, manifestada
até e talvez principalmente pelo Facebook, escrevi dois textos, um no dia 06 e
outro no dia 18, falando do receio de que determinadas posições intransigentes,
viessem a gerar uma forte onda de intolerância às diferenças e às divergências.
Na época, tinha em mente algumas amizades e relações afetivas abaladas, não
pela discordância, mas pela falta de aceitação de que o outro possa pensar e
sentir diferente.
Ontem
o mundo inteiro foi sacudido pelo atentado terrorista à sede do Charlie Hebdo,
onde chargistas foram cruelmente assassinados pela ação intolerante de quem
acredita defender não só a pureza de suas crenças, mas também e principalmente,
demonstrar que quem não pensa exatamente igual não merece e não pode sequer
existir. Estágio último da intolerância; a eliminação dos diferentes e a
execução sumária dos divergentes.
Há
quem diga, como bem me chamou a atenção meu amigo marcos França, que os
chargistas “pegaram pesado ao publicarem charges consideradas ofensivas e
desrespeitosas”. Mas isso seria o mesmo que dizer que a culpa do estupro foi da
vítima e não do estuprador. E é uma analogia bastante coerente, pois somos
continuamente tentados a atenuar o crime, desqualificando a vítima. Crime é
crime e vítima é vitima. Se alguém se sente afetado ou ofendido que acione a
justiça. Por isso temos leis e tribunais. Um atentado como esse é crime de ódio
em seu mais alto grau de manifestação.
Mas
se ainda assim quisermos discutir as motivações dos terroristas eu pergunto:
qual o problema em sofrer críticas e confrontações no que seja considerado em
uma caricatura de nossas crenças e atitudes? Sim, porque não há charge senão do
que se evidencia pelo exagero e pelo descolamento do comportamento médio
social. A crítica do humor nasce dos absurdos. Recebem críticas as incoerências
dos políticos, os desmandos dos estadistas, a violência dos cruéis e a
hipocrisia dos religiosos. Aliás, criticar hipocrisia religiosa já mandou gente
pra cruz!...
A
história universal está repleto de exemplos terríveis, das conseqüências
devastadoras da intolerância política, racial e religiosa. Multidões de vidas
ceifadas simplesmente por pensarem diferente, terem na pele um tom diferente,
possuírem hábitos e costumes diferentes, ou ainda crerem diferente. É preciso
manter em alta atividade a indignação com a intolerância e redobrarmos a
atenção, pois não há quem esteja livre dela. A intolerância não se fixa em um
único aspecto. Ela se transforma e se espreita perseguindo tudo que não é igual
ao que é, pensa ou faz o intolerante. Um dia ela chega até qualquer um de nós.
Como diria minha avó: pau que dá em Chico
dá em Francisco.
Se
a crítica é bem vinda sempre que exacerbamos ou erramos, com humor é ainda mais
gostosa, porque empresta à confrontação o lirismo necessário para que o
incômodo do reconhecimento do erro, se transforme em graça e simplicidade,
ajudando a superar a falha com menos dor e culpa. Até porque, como diz Caetano
(acho que é ele mesmo quem diz. Se não me desculpe o autor original), de perto ninguém é normal. Ora, se ninguém
está livre de cometer excessos, logo ninguém está livre de receber crítica. Que
venham as críticas sempre e de preferência com muito bom humor.
Enfim,
o atentado de ontem em Paris tenta calar e algemar a liberdade de expressão em
suas diferentes possibilidades e manifestações. Defender a liberdade não é
necessariamente concordar com as atitudes ou pensamento dessa ou daquela
pessoa, mas é antes de mais nada, defender e garantir que ela tenha, como eu, o
direito de manifestar-se, com a legitimidade que a liberdade lhe outorga, sem
que por isso seja eliminada ou retaliada. Garantindo a liberdade do outro,
garantida estará a minha.
Que
Deus nos ensine a aceitar o diferente, entender o divergente e acolher os
débeis. Mas que nos livre da intolerância e do fim de nossas liberdades.
"Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las." (Voltaire)
ResponderExcluirO pensador iluminista nos ensina de forma bem simplificada, como respeitar e valorizar as ideias e pensamentos do outro.
A liberdade de expressão é uma conquista da nossa civilização e devemos sempre defendê-la.
Expor nossas opiniões é sempre muito complicado e o humor existe para amenizar os ânimos. Porém, nem sempre a tolerância está por traz da interpretação alheia e sendo vista nessa perspectiva, ficamos diante de um cenário cruel e desumano.
Voltaire nos convida a mudarmos as nossas concepções e mentalidades.
Os conflitos culturais, étnicos e religiosos sempre existiram, estamos vendo apenas, mais um desdobramento dessa necessidade absurda de ser detentor da verdade absoluta, como se isso fosse possível no mundo em que vivemos.
Quanto às diferenças e intolerâncias religiosas, concluo novamente com Votaire:
"Respeito o meu Deus, mas amo o universo."
Um abraço.
Gladys.
Adorei suas colocações! Enquanto o ser humano não for capaz de aceitar e conviver com as diferenças, a paz, que todos dizem almejar, não será possível.
ResponderExcluirRespondendo aos dois comentários acima, posso afirmar que venho acompanhando com preocupação ainda mais crescente o avanço dessa intolerância, que agora começa a tomar corpo também na outra extremidade, sugerindo que em breve estaremos vivenciando uma terrível polarização de crenças, que reivindicarão para si, a verdade absoluta sobre Deus.
ExcluirOra, a partir do instante em que alguém se julgar capaz de deter a verdade sobre Deus, o próprio deus que julga conhecer deixa de sê-lo, pois estaria limitado às compreensões humanas, completamente incapazes de explicar em sua totalidade quem é Deus. É portanto uma das tarefas mais inglórias e idiotas que um ser humano pode empreender.
Por isso creio que no fundo, toda essa pretensa defesa religiosa, que aceita como metodologia de imposição da crença pela violência e pelo condicionamento, não passa de fachada ideológica, involuntária ou não, que encobre o instinto mais selvagem de dominação a que uma pessoa ou um grupo pode sucumbir. Sim, porque a partir do momento em que tal dominação, ainda que aparentemente religiosa se traduz nas esferas pragmáticas da vida cotidiana, agindo e direcionando a política, a economia e tudo o mais que se desenvolve na vida prática, nada mais é que ditadura humana disfarçada de sagrada, com vistas a locupletação oportuna de seus lideres e convenientes simpatizantes.
A religião nesses casos, como nas "Noites São Bartolomeu" da vida, não passam de estandarte da camuflagem dos reais interesses desses movimentos. Não passa de um oportuno e conveniente estandarte para se empunhar como defesa devotada e apaixonada.
Obrigado pelos comentários e incentivo de ambas...