segunda-feira, 7 de abril de 2025

Quando o milagre não depende de você

Por Jânsen Leiros Jr. 

A fé cristã é racional porque se fundamenta em evidências e experiências, ainda que transcenda a razão.” - Alister McGrath; teólogo anglicano e cientista; Dúvida: Certeza e Compromisso na Vida Cristã

"A luz da razão e a luz da fé provêm ambas de Deus; por isso, não se podem contradizer entre si." - Santo Tomás de Aquino; Fides et Ratio, Encíclica de João Paulo II citando Aquino

"A soberania de Deus nunca anulou a responsabilidade humana. Deus age conforme Sua vontade, e nossa confiança deve repousar em Sua providência." - Augustus Nicodemus; teólogo e pastor presbiteriano

"Que não nos envergonhemos da doutrina bíblica da absoluta soberania de Deus, não peçamos desculpas pela verdade de Deus, mas que antes, venhamos a proclamá-la." - A.W. Pink; teólogo reformado

"A espera em Deus é uma lição que poucos aprendem plenamente." - Charles Spurgeon; pregador; Sermões

"Logo, pois, compadece-se de quem quer, e endurece a quem quer." -Romanos 9:18

Nos dias atuais, tem se tornado comum encontrar publicações que romantizam a chamada “fé cega” como virtude superior, exaltando a atitude de Pedro no episódio da pesca milagrosa (Lucas 5) como uma obediência inquestionável, fruto de uma fé pronta, convicta e até exemplar. Alguns chegam a usar esse modelo como prova de que é justamente a fé desmedida, irracional e submissa que move o coração de Deus. No entanto, uma leitura mais acurada e conectada ao contexto bíblico e humano do episódio revela nuances muito mais profundas — e, paradoxalmente, mais reveladoras sobre o que é, de fato, a fé cristã.

Em Lucas 5:5, quando Pedro responde a Jesus: "Sob a tua palavra, lançarei as redes", muitos estudiosos e pregadores interpretam essa atitude como uma obediência absoluta, uma confiança plena no que Jesus dizia. Contudo, ao analisar o contexto, fica claro que Pedro não estava, de fato, demonstrando uma fé cega ou incondicional. Em vez disso, ele estava fazendo uma aposta — uma aposta na possibilidade de que Jesus fosse mais do que o "mestre itinerante" que as multidões falavam. Ele não estava apenas obedecendo sem questionar; ele estava disposto a testar se, de fato, Jesus era quem ele dizia ser. E, nesse ato de testar, Pedro se posiciona no limiar entre a dúvida e a fé, entre o ceticismo e a possibilidade de um encontro genuíno com o Divino.

Pedro, como pescador experiente, sabia que a melhor hora para pescar era durante a noite, quando os peixes estavam mais ativos. Ele havia passado toda a noite sem sucesso, e sua experiência e conhecimento técnico o haviam levado a concluir que nada mais seria possível. Quando Jesus, sem ser pescador, sugeriu que ele lançasse as redes novamente, Pedro não estava simplesmente obedecendo. Ele estava, talvez de forma relutante, dando a Jesus a chance de provar algo novo. O texto revela a complexidade da resposta de Pedro: “Mas, já que tu mandas, vou lançar as redes.” Ele não se entregou a uma fé sem questionamento, mas aceitou um desafio, disposto a ir além do que a razão e a experiência lhe diziam.

A visão de que Pedro obedeceu sem questionar é uma simplificação excessiva do que realmente aconteceu. Ao invés de uma fé sem razão ou sem questionamentos, Pedro foi fisgado pela possibilidade de que algo extraordinário poderia acontecer, o que, de fato, aconteceu quando as redes se encheram de peixes. Esse milagre não foi apenas um teste da fé de Pedro, mas uma manifestação do poder soberano de Deus, algo que transcende nossa capacidade de compreendê-lo completamente, mas que não exige nossa aceitação passiva ou irracional.

Essa dimensão do questionamento como parte do caminho da fé é recorrente nas Escrituras. Abraão, o “pai da fé”, questiona a Deus sobre como poderia se tornar pai de uma grande nação se já era avançado em idade e Sara, sua esposa, estéril e idosa (Gênesis 15:2-6; 17:17). Moisés, diante da sarça ardente, hesita diante da missão divina, apontando suas limitações pessoais e seu receio de não ser ouvido pelo povo (Êxodo 3:11; 4:1,10). E Maria, ao ouvir do anjo a promessa da concepção virginal, indaga: "Como se fará isso, pois não conheço homem algum?" (Lucas 1:34). Em todos esses casos, Deus não repreende o questionamento. Ao contrário, Ele reafirma sua promessa e revela o “como” realizará sua vontade. A fé, portanto, não exclui o desejo de compreensão; ela se fortalece na Palavra explicada, sustentada pela própria revelação divina. É nesse chão de diálogo — entre o humano que pergunta e o divino que responde — que nasce uma fé vigorosa, comprometida e real.

A interpretação da fé de Pedro como sendo um “teste” e não uma fé cega também nos ajuda a entender melhor outros episódios da vida de Pedro. Ele era um homem cheio de falhas e incertezas, como evidenciado por sua reação ao ser convidado a andar sobre as águas (Mateus 14:28-31) ou pelo episódio de negar a Jesus (Mateus 26:69-75). A fé de Pedro não foi uma fé inquestionável e sem falhas; foi, sim, uma fé construída por meio de provas, questionamentos, dúvidas e, acima de tudo, encontros com Jesus que o transformaram.

A fé cristã não se constrói em um vazio de ignorância ou passividade. A fé que a Bíblia nos chama a ter é aquela que se baseia na revelação de Deus, que é tanto racional quanto experimental, que se desenvolve por meio do relacionamento com Deus e não por uma simples obediência a um conjunto de regras ou palavras. Quando Jesus confronta Pedro, não está chamando à obediência cega, mas à confiança baseada no que Ele estava prestes a mostrar.

O mesmo se aplica a outras histórias que destacam o caráter soberano de Deus na realização de milagres. Por exemplo, no episódio da viúva de Naim (Lucas 7:11-17), vemos uma mulher que perdeu seu único filho e estava em um lamento profundo. Ela não pediu nada a Jesus, mas Ele, movido por compaixão, restaurou a vida de seu filho. O milagre não foi resultado da fé ou do pedido da mãe; foi uma ação soberana de Jesus, que não aguardou que a mulher pedisse ou demonstrasse uma fé específica. Isso é uma evidência clara de que os milagres de Deus não dependem de nossa fé ou de nossas palavras, mas de Sua misericórdia e soberania.

A ideia de que Deus responde apenas à nossa fé, como se Ele fosse movido por nossas atitudes, pode levar a uma visão distorcida de Deus, como se Ele fosse um ser que faz negócios conosco, em vez de um Deus soberano que age de acordo com Sua vontade. O perigo de afirmar que o milagre depende exclusivamente de nossa fé é colocar Deus na posição de um "ídolo", de quem esperamos algo em troca de nossas ações ou palavras. Isso pode transformar a fé em uma moeda de troca, onde nossa confiança em Deus é condicionada a resultados visíveis e imediatos, algo totalmente alienado da verdadeira essência do cristianismo.

Essa concepção de que Deus tem uma “caixa de milagres” individual, que seria aberta à medida que alcançamos certo grau de fé ou demonstramos as atitudes "certas", se aproxima perigosamente de uma espiritualidade meritocrática, onde a graça se torna uma recompensa e não um dom. Reduz-se a providência divina a um sistema de “input e output” espiritual, como se Deus estivesse preso a um roteiro que depende exclusivamente de nossas emoções, palavras ou gestos. Essa leitura condiciona o agir de Deus ao nosso desempenho, como se o Criador estivesse limitado por nossos acertos, e não fosse Ele mesmo a origem de toda boa dádiva (Tiago 1:17).

A ideia de que Deus funciona segundo um “algoritmo espiritual”, abrindo compartimentos de bênçãos conforme a intensidade ou qualidade da nossa fé, de fato distorce completamente a doutrina da graça e coloca o ser humano no centro do processo, como se fosse ele o protagonista do milagre, e não Deus. Esse é um dos grandes desvios da espiritualidade contemporânea, que é o culto ao “mover” como espetáculo e à fé como técnica.

Trata-se, no fundo, de uma tentativa de controlar o incontrolável — de transformar o mistério da ação de Deus em uma fórmula previsível. Uma espécie de “misticismo evangélico” em que a bênção é tratada como um prêmio por obediência performática, ou a fé como um mecanismo mágico que aciona o céu. Essa perspectiva enfraquece a confiança na soberania divina e nos afasta da experiência bíblica, que mostra um Deus que age conforme Sua vontade, movido por misericórdia e compaixão — e não por regras humanas ou expectativas de comportamento espiritual. O Deus revelado nas Escrituras não é um gênio da lâmpada acionado por frases certas, mas um Pai que conhece nossas limitações e cuida de nós com liberdade, graça e soberania.

Por isso, o verdadeiro milagre é o próprio Deus vindo ao nosso encontro, mesmo quando não temos forças para buscá-Lo. Não é sobre “se posicionar”, mas sobre ser alcançado. Não é sobre acionar promessas, mas sobre confiar em um Deus que age por quem n’Ele espera (Isaías 64:4).

E esperar, às vezes, é tudo o que conseguimos fazer. E, por graça, é tudo o que Ele pede.

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