segunda-feira, 6 de outubro de 2014

X Eu tenho um medo e é bom que todos tenham também





“Todos aqueles que se julgam possuidores da verdade são inquisidores.
... A tentação dos absolutos é uma característica universal do espírito humano. Todos queremos possuir a verdade. E para possuir a verdade é preciso que se a engaiole. E para engaiolar a verdade é necessário engaiolar a liberdade e o pensamento”.
                                         Rubem Alves em Religião e Repressão

Enfim a primeira fase da disputa pela eleição presidencial terminou, e com isso uma nova e mais acirrada disputa se iniciou desde as primeiras horas, logo que os eleitos para o segundo turno foram conhecidos. Novas alianças e apoios são buscados e novos discursos são definidos. Novas táticas e estratégias são planejadas. Tudo outra vez com vistas ao mesmo objetivo; a presidência da república.

Até aí nada novo. Esse balé de movimentos contundentes e pouco sutis é próprio do jogo político que se desenrola como num tabuleiro de xadrez. Tudo sempre muito bem estudado. Atitudes claras para fins nem tanto, encerram em si intenções muitas vezes incompreendidas de tão óbvias. Os dois lados querem chegar ao poder e para isso não medem esforços.

Mas o que vem me preocupando na verdade, é a novidade da militância digital. Nunca na história desse país, as redes sociais foram tão abertamente utilizadas no processo de difamação, desqualificação, desconstrução, apoio e defesa desse ou daquele candidato. E nas últimas semanas essa utilização cresceu assustadoramente, não só no facebook, mas também pelo whatsapp e outros tantos aplicativos e redes sociais.

Não que eu seja contra o uso dessas tecnologias e modelos de comunicação com essa finalidade. Muito pelo contrário. Considero tal utilização bastante inteligente e interessante, porque aumenta a abrangência e as possibilidades de informação e conhecimento dos candidatos, suas características e propostas.

Mas o que vejo com pesarosa e crescente preocupação, é que essas redes sociais, a princípio formadas por pessoas que têm algum tipo de vínculo de amizade ou conhecimento, estão se tornando arenas de batalhas de verdades absolutas, onde opositores anteriormente amigos entre si, chegam mesmo a se descartarem, em nome da defesa de suas posições, crenças ou convicções. É claro que na maioria das vezes, tais descartes ocorrem entre pessoas cujos vínculos já eram bastante frágeis. Mas presenciamos particularmente casos em que amigos de longa data colocaram fim em suas relações, por pura intolerância à opinião do outro.

Ora, se as defesas acirradas de pontos de vistas divergentes, vêem sendo capazes de abalar ou mesmo terminarem relações de amizade, que tamanhos prejuízos não poderão causar entre oponentes ideológicos, que sequer se conhecem ou experimentaram qualquer nível de consideração mútua? Assusta-me, na verdade, e o que me dá medo, é a crescente demonstração de intolerância com a opinião alheia, com as preferências do outro, sejam elas de que ordens forem. Na verdade me apavora a escalada galopante do pensamento rancoroso; nós contra eles. Quase todos têm se colocado intoleravelmente a favor ou contra alguma coisa ou alguém. Alarmados, presenciamos o crescimento do ódio.

Alguns poderão achar exagero o que estou dizendo, mas a verdade é que toda onda de intolerância se inicia na crença e na convicção de que a razão ou a verdade absoluta e incontestável está de um só lado e a esse lado pertence. E coincidentemente é sempre do meu lado que está essa pretensa verdade. E creiam; esse processo é silencioso e sutil. Ele se espalha rápido, mas em silêncio. Ele avança sobre as relações, sobre as amizades, camaradagens e circunstantes. Logo nós somos os corretos e eles os errados. Nós os mocinhos e eles os bandidos. Nós merecemos a vitória e eles a derrota. Num estágio mais a frente, nós merecemos a vida e eles a morte. Morte a todos eles se não pensarem como nós.

Por mais que um e outro candidato se entenda o eleito, por mais que essa ou aquela ideologia se apresente como a salvadora em detrimento da outra, podemos e devemos conviver com nossas divergências e crenças individuais. Ninguém nem instituição alguma jamais será dona da verdade absoluta. A verdade não se deixa engaiolar em preceitos e declarações que a tentam seqüestrar e dela se apropriar. A verdade é livre para caminhar pela história e pelas circunstâncias, de modo a transitar adequada e convenientemente de um lado a outro conforme sua pertinência. Um dia dorme conosco. Outro dia amanhece com eles.

Portanto, se ninguém é dono da verdade, que tal debatermos nossas convicções com alegria e camaradagem, entendendo e aceitando que afinidades podem ir além de escolhas políticas, de um time para torcer, ou de uma religião para seguir. Que tal ouvirmos com tolerância e indulgência o que o outro tem a dizer ou opinar. Ou alguém duvida que batalhas, guerras e suas conseqüentes mortes e destruição, nada mais são do que a expressão máxima da intolerância levada às últimas conseqüências?

Assim, vote em quem quiser. Acredite no que quiser e bem entender. Predileção não é agressão; é apenas uma escolha por afinidade. Opção não é declaração de guerra; é exercício da liberdade, conquistada ou imanente. Vamos todos respeitar o pensamento do outro, dando uma lição de cidadania e maturidade, aos que pretendem nos inflamar com o discurso do ódio e do medo. Discursos tão ultrapassados em conteúdo, mas ainda muito eficazes na motivação à intolerância e ao separatismo.

Não posso crer que lutamos tanto para termos a democracia de volta em nosso país, para acabarmos retrocedendo na história, até aos anos das guerras de classes, das inquisições e do fascismo.

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