terça-feira, 31 de março de 2015

=> O Leão, o Cordeiro e Eu





“No dia seguinte João viu a Jesus, que vinha para ele, e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo."
     João 1:29 - RA


“Expurgai o fermento velho, para que sejais massa nova, assim como sois sem fermento. Porque Cristo, nossa páscoa, já foi sacrificado."
     1 Coríntios 5:7 - RA


“E disse-me um dentre os anciãos: Não chores; eis que o Leão da tribo de Judá, a raiz de Davi, venceu para abrir o livro e romper os sete selos."
     Apocalipse 5:5 - RA

Mesmo o mais desavisado e incauto observador da história, sabe que poderosos impérios se seguiram na história da humanidade. Na escola estudamos com mais freqüência e detalhes os impérios egípcio, babilônico, persa, grego e o romano. Pelo menos na minha escola foi assim. Mas também não importa, pois não falaremos em nenhum deles agora, senão para alusão de seus poderes e domínios.

Qualquer que fosse sua origem, todos os grandes impérios tinham por característica a imposição pela força. E pelo medo a que eram submetidos, os dominados sempre se curvaram com uma subserviência conveniente, estratégica e sobrevivente. Mas em nada submissa. E aqui vale a licença poética para diferençar subserviência de submissão. Mas falaremos disso mais à frente.

Obrigados a submeterem-se ao poder de seus dominadores, diversos povos subjugados alimentavam sonho de liberdade e expulsão do dominador de suas terras, e de suas vidas cotidianas. Ora, se tais dominadores se impuseram pela força, nada mais óbvio que se imaginasse a liberdade como resultado de aplicação de força ainda maior, mais poderosa, temida sobre todas as demais.

Entre os povos dominados por esses poderosos impérios, esteve com certo destaque o povo de Israel. Ainda que a Bíblia narre com clareza a ação divina corrigindo seu povo por meio da dominação por povos chamados pagãos, jamais tal domínio foi visto com bons olhos, ou mesmo arrefeceu em seus contemporâneos, o sonho de liberdade e por que não dizer também, vingança, pela opressão e domínio.

Nesse cenário, a identificação do sonho de liberdade com a figura do leão, poderoso e feroz foi mais do que natural. Outros povos ao longo da história reeditaram tal identidade, mas em particular, o povo judeu viveu a esperança no Leão da tribo de Judá, por cujo simples rugido tremiam os inimigos e a uma batiam em retirada. O poder e a força representada pela figura do leão, era tudo o que lhes convinha utilizar, na esperança de liberdade e redenção nacional através da força. Uma força necessariamente superior e mais poderosa que a de seus dominadores.

Ainda que até agora tenhamos falado de nações e povos dominados, em populações inteiras sofrendo a opressão inimiga, elas bem que personificam em boa medida nossos comportamentos individuais e até certo ponto naturais, diante das circunstâncias e desafios que a vida nos impõe no cotidiano de nossos dias. Sim, porque os povos dominadores de ontem, são substituídos em nossa realidade particular e cotidiana, pelos patrões e chefes no trabalho, por colegas que por ganância ou inveja almejam nossas posições, ou por qualquer outra pessoa que se encaixe nessa condição de opressor, e que se torna objeto de nosso mais profundo sentimento de liberdade e por que não dizer, eliminação.

Legítimo ou não, volta e meia nos flagramos sonhando com a liberdade. Volta e meia sonhamos e planejamos ser livres. E se o domínio percebido é forte e opressor, tão mais forte e intenso é o sentimento de que a revolta é o caminho para essa liberdade. Preciso ser mais forte que o dominador. Preciso de força e poder. Preciso feri-lo e matá-lo. Obviamente falo do que passa pela cabeça. Na prática remoemos apenas, e vivemos essa guerra hipotética diariamente. Mas também é verdade que o dia da revolta às vezes chega para alguns.

Falando do que nos é pessoal, fica mais fácil entender porque os judeus esperavam tanto por um Messias poderoso, um Messias arrasador. Um Ungido forte como um leão, capaz de ferir o inimigo com o olhar e colocá-los para correr apenas com seu rugido feroz. Sonhamos dar esse rugido contra nossos opressores diários. Bradamos imaginariamente no cafezinho da esquina, na sala de aula, na sala do chefe, no trânsito, em casa. Bradamos um rugido silencioso que ecoa internamente, revelando-nos o quanto gostaríamos de ser viris e poderosos como um leão.

Enquanto o povo judeu aguardava um Messias poderoso, surge um carpinteiro, eloqüente sim, mas completamente avesso às armas e resistente a força física. Em vez de revidar ao romano violento ele incita a oferecer a outra face. Em vez de lutar pela capa arrancada à força, ele manda entregar também a túnica. Quando oprimido a carregar a carga do romano por uma milha, ele diz para caminhar com esse mesmo opressor duas milhas. Para quem aguardava um leão, é bem natural que não haja nada além de decepção.

Na verdade, o que buscamos em nossa vida, é a confiança de que sempre poderemos andar seguros. E nada melhor para nos dar segurança, do que a sensação de que os outros nos enxergam poderosos e capazes de reagir com força superior à investida, qualquer que seja sua natureza e intenção. E assim, mesmo que nossa realidade individual seja bem diferente, nos vestimos de leão, andamos como leão, olhamos como leão. Tentamos nos impor como leão.

Nada disso, nos diz Jesus no sermão do monte. Em vez de altivos, pobres de espírito. Em vez de risonhos, chorosos. Em vez de viris, mansos. Mansos? Mas leão não é manso! Leão é feroz. Pois então, em vez de querer ser um leão, que tal experimentar ser cordeiro? Porque a falsa sensação de poder que o leão pode trazer, não é mais poderosa do que a força e a liberdade que a submissão a Deus é capaz de proporcionar. Submissão não é subserviência. Esta não passa de servidão bajuladora que se pretende a oportuna barganha. Submissão é a sujeição livre, obediente e humilde, de quem é acolhido e não dominado.

Ser cordeiro não é sinônimo de fraqueza. Enquanto o leão é a imagem da força e do poder, o cordeiro é a imagem da submissão e do sacrifício voluntário. A mansidão é antes de uma resignação, uma opção pela paz. Não por falta de força ou poder, mas por amor. Jesus poderia sem sombra de dúvida ter sido um leão, como ainda o veremos ser como narra o Apocalipse. Mas naqueles dias, optou por ser um cordeiro. O nosso Cordeiro Pascal, que a exemplo do cordeiro que livrou da morte os primogênitos judeus e libertou o povo do cativeiro no Egito, também nos livra do domínio da morte. Não por força, mas por mansidão e sacrifício próprio. Dando-se à morte por optar pela vida de muitos.

E nós? E eu? O que quero ser? Um leão bramindo e assustando, por também assustado, tentando manter longe os inimigos e opressores? Ou um cordeiro, manso e seguro, garantido de que a vida é cuidada pelo pastor de nossas almas? A quem submissos, por amor, nos sujeitamos a uma vida que aguarda o seu Reino. O Reino de um leão, conquistado por um cordeiro.

Que nessa páscoa, nem ovos, nem coelhos ou mesmo chocolate, nos sejam mais simbólicos do amor de Deus, do que o seu Cordeiro, que esvaziou-se do Leão, para calado dar-se em sacrifício pela humanidade, por mim, e por você.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Se cremos por convencidos, convertidos?





1 Ora, a fé é a certeza de que haveremos de receber o que esperamos, e a prova daquilo que não podemos ver. 2 Porquanto foi mediante a fé que os antigos receberam bom testemunho.
3 Pela fé compreendemos que o Universo foi criado por intermédio da Palavra de Deus e que aquilo que pode ser visto foi produzido a partir daquilo que não se vê. "
     Hebreus 11:1-3 - RA

Ainda falando da fé como independente de provas e contra-provas, seria interessante reafirmarmos o caráter incondicional da crença no contexto da redenção. Sim, porque num mundo que se caracteriza pelo pragmatismo das utilidades e de seus resultados, tudo o que um indivíduo empreende necessita, por vício de adequação social, estar ligado a alguma utilidade que conduza a um certo resultado prático. Nesse contexto maniqueísta, qualquer conjunto de crenças precisa estar sustentado por alguma racionalidade, algum sentido lógico, mesmo que não resistam tais crenças a argumentações preliminares sobre suas coerências e pertinências. O importante é ter fé em alguma coisa, diz a sabedoria popular.

Mas na prática, em que é que se deve crer, para que a defesa do conjunto das crenças que nos tocam, seja aos mesmo tempo capaz de satisfazer a consciência que se percebe necessitada do sagrado, bem como capaz de conferir um certo status de admiração e respeito pela racionalidade pretendida por essa mesma fé. Assim, quanto mais comprovações daquilo que se acredita puder ser reunida, sobre qualquer pretexto, é preciso relacionar em um conjunto de argumentações bem organizadas e arrumadas criteriosamente, para que a defesa daquilo que se crê, possa ter grande penetração e convencimento.

Convencimento! Essa então parece ser uma palavra mágica, capaz de inebriar algumas pessoas na perseguição do poder de impor a outros aquilo em que acredita. Quanto mais convincente, atraente. E quanto mais atraente, sedutor. A sedução é capaz de encantar as massas; e encantadas, as massas são manipuláveis. A manipulação confere poder. E poder é tudo que mais interessa, àqueles que argumentam sobre a pertinência de suas próprias crenças, com vistas a sobrepujar a fé de outros.

Ora, nem precisamos ir tão longe de onde estamos, para conferir se o que proponho tem algum fundo de realidade. Na internet, nas diversas comunidades teológicas, evangélicas, e em milhares de vídeos pelo Youtube, lideranças religiosas e estudiosos proeminentes se digladiam diuturnamente, buscando convencer seus interlocutores de que seus pressupostos são mais verdadeiros que os de seus oponentes, utilizando textos bíblicos e pensamentos de toda ordem. Às vezes o fazem baseados em um mesmo texto bíblico, contextualizados obviamente nas conveniências particulares de cada um.

Ora, se hipoteticamente eu me coloca-se entre esses diversos defensores de suas crenças particulares, e de suas argumentações depende-se para decidir em que é que eu iria crer, aquele que me fosse mais sedutor, dado o seu contundente esclarecimento, teria sobre mim exercido poder, convencendo-me de que suas idéias fazem mais sentido que a do outro. Ou seja, finda a batalha pela minha alma, o vencedor levaria por despojos de guerra uma mente convencida da razoabilidade de um determinado conjunto de crenças, que se tenha demonstrado mais aceitável ou provável, segundo minha capacidade de percepção. No entanto, meu coração não necessariamente estaria cativo junto com a minha mente. Aliás, as sensações costumam mesmo não seguir a razão. Convencimento, portanto, não é conversão.


6 Em verdade, sem fé é impossível agradar a Deus; portanto para qualquer pessoa que dele se aproxima é indispensável crer que Ele é real e que recompensa todos quantos se consagram a Ele."
     Hebreus 11:6 - KJA

Quando Deus se revela ao longo da narrativa bíblica, Ele não o faz para tornar-se provável em sua existência, ou mesmo para definir um modelo de conduta, ou uma filosofia de vida que deva ser seguida por um grupo de pessoas a quem denomina Seu povo. Aliás, a existência de Deus é um conceito não problematizado pela Bíblia. Não há nela trecho algum que se ocupe em defender sua existência. Ao contrário, partindo do pressuposto de que quem de Deus se aproxima crê que Ele existe, a Bíblia ocupa-se em revelar Deus e toda sua essência pessoal,

Perdoem-me a analogia improvisada, mas a entendo plenamente adequada ao que queremos demonstrar. A coisa funciona mais ou menos como em um chat pela internet. Duas pessoas, sem trocar fotos, iniciam um papo interessante e agradável. Um e outro vão se revelando em gostos e predileções, escolhas e formas de ver o mundo. Ao longo de muitas conversas essas pessoas se encantam mutuamente, mesmo sem terem se visto. Nem rosto ou silhueta, uma da outra. Passado algum tempo, percebem que já não sabem mais viver uma sem a outra. A vida de ambas se resume em horas intermináveis diante do computador, e o fato de ainda não se conhecerem fisicamente já não faz a menor diferença. Suas verdades intrínsecas, suas personalidades desnudas, revelaram mutuamente que foram feitas uma para a outra. Suas essências se encontraram antes de suas formas temporais e corruptíveis. Desse encontro às cegas nasceu o amor.

Mal comparando, repito, esse é o propósito da Bíblia. Revelar o Criador de forma crescente e harmoniosa, cadenciada, de modo que o desvelo de seu ser vá descortinando um alguém impressionantemente interessado por mim. Amoroso e zeloso, que ainda que não faça qualquer distinção entre as pessoas, move tudo e qualquer coisa para me buscar e me manter perto d'Ele. E diante desse insondável ser, flagrando-me completamente envolvido por seu cuidado e encantado por seu amor, já não me importa nem um pouco qualquer coisa que se pretenda provar a seu respeito. Porque informação alguma, argumento algum, por mais racional que seja, por mais contundente que se apresente, mesmo que extremamente sedutor, me afastará, ou me fará desistir desse amor, que surgiu não de mim para Ele, mas que nasceu em mim em resposta ao amor revelado n'Ele.


38 Portanto, estou seguro de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, 39 nem altura nem profundidade, nem qualquer outra criatura poderá nos afastar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor."
     Romanos 8:38-39 - KJA

Portanto a Bíblia revela o encontro de Deus com a humanidade. A narrativa bíblica apresenta um Deus Criador, cuidadoso e dedicado. Detalhista nas condições de sustentabilidade e autonomia, gerando um ser humano capaz e cheio de potencialidades. A relação com sua criação é próxima e interativa, porém compulsória, à medida que esse homem desconhece qualquer outra possibilidade. Assim, tal relação ainda que intensa é desprovida de plena liberdade. O amor não é pleno em ambiente em que não haja liberdade. O amor pleno só pode existir legitimamente, quando há liberdade para que os amantes decidam entre amar e não amar.

A Bíblia avançou na história, e revelou uma humanidade rebelada, desejosa de uma independência capaz de lhe atender os próprios interesses. O homem abandonou o Criador, em atitude unilateral, supondo que esse mesmo criador lhe escondia algo; uma capacidade encoberta de ser tão deu,s quanto Deus era o Criador. Já não bastava ser essencialmente imagem do Criador. Era desejável e atraente o seu poder e conhecimento irresistível. Se o homem pudesse ser tão deus quanto Ele, o Ser criador já não seria tão primordial e necessário. A humanidade então exerceu o pleno direito de liberdade e rejeitou Deus e sua relação com Ele.

Longe de Deus e exilado de seu cuidado, uma vez que dele mesmo partiu a iniciativa de ser livre, a humanidade inteira caminhou errante, protagonizando situações alternadas de aproximação e afastamento, que construíram ao longo dos séculos um conhecimento do Criador, a quem ela mesma virou as costas. Acontecimentos narrados de modo a revelar um Deus constantemente desejoso de resgatar e reaproximar o homem.

Assim, a narrativa bíblica subverte a lógica das relações, em que o ofensor deve buscar o ofendido para resgate da relação rompida. E em vez disso, o próprio Deus, o ofendido, o abandonado, aquele a quem viramos as costas, faz o caminho no sentido da humanidade. E na impossibilidade do homem se fazer deus, Ele se faz homem, redimindo toda sua criação e resgatando a relação com todos nós, um a um, por intermédio de Jesus, o seu Cristo. O redentor.

Findo o registro histórico na Bíblia, inaugura-se um tempo de salvação em que a relação Deus-humanidade se faz fruto da decisão divina de nos amar. Passamos a desejar outra vez ser iguais a Ele, mas agora com Ele e para Ele, e não mais como Ele e no lugar d'Ele.

Resumindo-se assim, pretensiosamente, a revelação divina contida na Bíblia, pode alguém apontar em que parte caberiam incondicionalmente? A Bíblia não fala de regras, mas da incapacidade dessas mesmas regras aproximarem o homem de Deus. Não fala de filosofia de vida ou inteligência de comportamento; isso privilegiaria uns em detrimento de outros conforme circunstâncias inimputáveis. A Bíblia, em lugar disso tudo fala de amor, revela um Deus amoroso, que espera que por esse seu amor sejamos atraídos. E não por provas. Afinal, bem-aventurados aqueles que não viram, mas creram.

sábado, 28 de março de 2015

"Só acredito vendo". E quem não viu?





24 Contudo, Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava com eles quando Jesus apareceu. 25 Os outros discípulos, no entanto, anunciaram-lhe: “Nós vimos o Senhor!” Mas ele respondeu-lhes: “Se eu não vir as marcas dos pregos nas suas mãos, não colocar o meu dedo onde estavam os pregos e não puser a minha mão no seu lado, não acreditarei.”
26 Após oito dias, os discípulos estavam reunidos ali outra vez, e Tomé estava com eles. As portas estavam trancadas; quando Jesus apareceu, pôs-se no meio deles e disse: “A paz seja convosco!” 27 Então dirigiu-se a Tomé, dizendo: “Coloca o teu dedo aqui; vê as minhas mãos. Estende tua mão e coloca-a no meu lado. Agora não sejas um incrédulo, mas crente.” 28 E Tomé confessou a Jesus: “Meu Senhor e meu Deus!” 29 Ao que Jesus lhe afirmou: “Tomé, porque me viste, acreditaste? Bem-Aventurados os que não viram e creram!"
     João 20:24-29 - KJA

Quando decidi criar esse blog, pretendia ocupar-me com abordagens diferentes, mas nem sempre e não necessariamente contrárias. Na prática, significaria que os conceitos teológicos comumente aceitos seriam em sua maioria os mesmos, mas as abordagens e as argumentações buscariam observar e encaminhar os assuntos por trilhos menos frios e duros, do que aqueles por quais costumam trilhar o pensamento apologético de comprovações e de certezas. E nesse tema, em especial, não poderia ser diferente.

Assim, em vez de gastarmos tempos infinitos na discussão sobre a inerrância da Bíblia e na defesa de sua inspiração, pretendendo apresentar provas que garantam uma crença insofismável naquilo que ela nos relata, prefiro deixar que o exercício epistemológico se encarregue de defender-se a si mesmo, garantindo-se ou não por afirmações que se pretendem absolutas e inequívocas. Na verdade há mestres maravilhosos que fizeram isso com maestria. Eu, por minha vez, prefiro concentrar-me no objetivo final da narrativa bíblica, cujo exercício de exposição dispensa o enfadonho labor da comprovação, trocando a exaustão do fato, pela sensação do afago, ainda que sem desprezar a verdade; mas essa desejada e percebida, jamais imposta ou obstinada. A Bíblia pretende tão somente revelar Deus, anunciando seu amor e apresentando sua redenção.

Partindo da premissa de que Deus não é um ídolo, e muito menos um objeto inanimado, a cuja observação e estudo se presta imóvel, aguardando impassível pelo resultado das análises humanas, não podemos e nem devemos implementar avaliação qualquer que seja, partindo do pressuposto de que nossas conclusões de hoje serão as mesmas de amanhã ou depois. Estaria assim hereticamente defendendo alguma mutabilidade em Deus? Não, de forma alguma, mas é impossível imaginar que tanto as circunstâncias dos observadores, quanto o momento histórico em que tais observações acontecem, não influenciam direta ou indiretamente o resultado de qualquer análise responsável e honesta. Em outras palavras, o encontro com Deus se altera em sua ambiência e relevância, bem como em seus conteúdos e propósitos, a medida que avançam no tempo e na história da humanidade, e por suas próprias percepções do mundo em que habita. Sim, porque ainda que Deus seja o mesmo, o homem que com Ele se relaciona e o observa obviamente não o é, transformado que foi pela soma dos encontros anteriormente protagonizados por seus antepassados. O encontro com Deus é necessariamente transformador.

Desse modo, entendo que se torna mais pragmática e enriquecedora, a experiência da análise das afirmações bíblicas, não a partir dos atributos imutáveis de Deus, ou das comprovações sôfregas de sua pertinência na atualidade, mas a partir da narrativa simples e por assim dizer romanceada de seus fatos e ilustrações em seus respectivos contextos históricos, nas quais Deus se revela em todos os aspectos de seu ser, convivendo com as oscilações e contradições da humanidade em transformação. Uma história de relacionamento dinâmico, em que as circunstâncias se alternam no desvelo de Suas pretensões e vontade. Mais do que um manual contendo regras de conduta e bem viver, a Bíblia é uma fonte inesgotável de histórias e possibilidades da relação Deus-humanidade, onde o seu amor se apresenta desde a criação, atraindo essa mesma criatura de volta para perto de Si mesmo, e redimindo-a de vez, ao fazer-se tão humano, quanto mais humano um homem pode ser.

Por essa razão, a Bíblia assim considerada, como o grande romance da relação de Deus com a humanidade, ganha aspectos de causa e efeito simultaneamente e em um só volume, sendo responsável tanto por levar o homem ao conhecimento do que o encontro com Deus é capaz de realizar em sua vida, quanto por servir de sustentação e orientação para a caminhada de fortalecimento nessa mesma relação. Ou seja, a Bíblia tanto exerce o fascínio da atração, quanto acolhe o desejo pelo conhecimento do Deus a quem anuncia e revela. Sendo assim, não foi a verdade garantida ou comprovada que atraiu o crente à Bíblia, mas o amor revelado e sentido na seqüência de suas páginas. Realidade ou não, fato ou mito, o amor de Deus revelado e concebido arrebata o homem que se enche de amor de volta, preferindo-O a tudo o mais que viveu, vive ou poderia viver adiante.

Imagino que a essa altura, os defensores da teologia clássica e das acadêmicas defesas apologéticas já tenham rasgado suas vestes, ou popularmente falando, já tenham colocado meu nome na boca do sapo. Azar, porque ainda lhes darei razões supinamente mais contundentes para me execrarem. Isso porque, segundo penso, qualquer comprovação que se pretenda tornar irrefutável aquilo que afirma a Bíblia, retira dela o propósito de registro da história da fé humana e da relação de Deus com o homem, passando a lhe conferir um perfil de livro técnico-científico, onde se registram fatos comprovados e por assim dizer irrefutáveis. Em outras palavras, a Palavra deixa de ser uma revelação para ser uma constatação. E por óbvia constatação, não mais uma comunicação de fé, mas sim de inevitável realidade, incondicional e irresistível. A verdade comprovada se impõe à opção de nela se crer. Suprime a liberdade de se colocar ou não fé.

Creio que em outro texto eu já tenha utilizado essa analogia, mas a repetirei aqui por ser bastante adequada, ainda que resumidamente. Na antiguidade cria-se que a Terra era quadrada ou um plano que se estendia até ao horizonte dos olhos. Galileu foi condenado por afirmar não só que ela era redonda, mas que também era ela que girava em volta do sol, e não o contrário. Por tempos a discussão se arrastou, e ainda algumas pessoas resistiam com alguma dúvida disso, até que a primeira foto da Terra foi tirada a partir do espaço. Pronto, não cabia mais qualquer dúvida. Comprovada que foi a tese de que a Terra é redonda e que é ela que orbita em volta do sol, quem tinha convicção disso passou a ter certeza. E por sua vez, quem duvidava deixou de ter o privilégio da dúvida, sob pena de ser considerado louco, por alienado que se fizesse de uma realidade incontestável. Assim não há mais crença ou fé em um pressuposto. Uma prova inconteste que aceita-se irresistível, acata-se, sem qualquer valor de crença.


1 Ora, a fé é a certeza de que haveremos de receber o que esperamos, e a prova daquilo que não podemos ver. 2 Porquanto foi mediante a fé que os antigos receberam bom testemunho.
3 Pela fé compreendemos que o Universo foi criado por intermédio da Palavra de Deus e que aquilo que pode ser visto foi produzido a partir daquilo que não se vê. "
     Hebreus 11:1-3

Portanto, para que haja fé não pode mesmo haver comprovação. Na fé, a verdade que se percebe não se constata; é antes uma convicção incondicional que independe da realidade. Logo, a verdade da fé é aquilo que se comprova apenas pela sensação de se estar no caminho certo. Suspeitas tão intensamente palpáveis, quanto concretas são suas esperanças. Um fundamento do que se espera surgir do nada.

Ora, então se alguém depende de provas ou indícios táteis para crer em Deus e naquilo que a Bíblia narra, ainda que entenda a algo semelhante ter alcançado, nada sabe, nada entende, e na verdade em nada crê. Como diz Hebreus, a fé é a certeza... a fé é a prova.


Finalizando, ou começando; quem sabe onde isso vai parar? Luto para que o diálogo teológico se torne mais humano, como coisa de humanas é. De exatas, já bastam a matemática e a física, que jamais alteram seus produtos, ainda que se troquem a ordem dos tratores, na montagem do viaduto.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Somos mordomos desde o princípio - Parte 1





“Então Deus os abençoou e lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra e sujeitai-a;"
     Gênesis 1:28a - RA

Sujeitai-a... Com essa ordem Deus inaugurou um dos conceitos mais interessantes que a humanidade conhecerá. O conceito da mordomia. Sim, porque se sujeitar tem o sentido de dominar, submeter, subjugar (ou ainda mais adequadamente ao nosso propósito aqui de obrigar à obediência, atender a interesse ou necessidade), mordomo é aquele que administra, ou fica encarregado de cuidar daquilo que outro lhe confiou.

Em outras palavras, foi-nos dada total possibilidade de manejar e utilizar algo que não nos pertence. Temos o uso mas não a propriedade, o que significa em termos conceituais, que podemos utilizar, podemos usufruir, mas deveremos dar contas do que nos foi concedido. Isso vos será para mantimento. Ou seja, todos os recursos necessários para a subsistência da humanidade pode e deve ser extraído do manejo dos recursos existentes no planeta, não havendo qualquer problema com esse uso. Mas o problema está é no abuso.

A tão sonhada e perseguida sustentabilidade, nada mais é do que o uso e não o abuso desses recursos. Precisamos e devemos utilizar toda nossa capacidade criativa e de gestão, para que os mesmos recursos estejam disponíveis às gerações futuras. E isso é muito mais do que uma postura militante de um grupo ecológico qualquer. É nossa responsabilidade desde a criação da humanidade. O que significa que a assim chamada sustentabilidade não é só uma questão ecológica, mas também e primordialmente uma questão antropológica, uma vez que diz respeito a uma tarefa definida e confiada à humanidade.

Mas podemos ir além na análise no conceito de mordomia. Ela não encerra apenas a idéia de cuidado e manutenção do que nos é confiado. Antes abrange também e preferivelmente como objeto último, o princípio do desenvolvimento e ampliação dos recursos disponíveis, criando a partir da natureza a nós confiada, tudo o que nos for possível e necessário criar para o bem-estar social. É importante explorar e promover as potencialidades funcionais e produtivas dos recursos oferecidos pela natureza. A humanidade pode e deve interferir criativamente, no uso de suas capacidades, adicionando a esses recursos tudo o que puder ser traduzido como melhoria das condições existenciais humanas.

Portanto, a eventual demonização das conquistas tecnológicas e do avanço das ciências, é incoerente tanto com a potencialidade criativa do ser humano, criado à imagem de Deus, como também diminui a amplitude da tarefa dada pelo próprio Criador; sujeitai-a. Nossa capacidade criativa é divina. Nosso poder imaginativo e realizador é divino. Avançar no conhecimento, basear um invento em outro anterior, organizar o caos primordial entre o que é necessário e sua existência, é vivenciar, como humanidade, o trabalho compassado e crescente do Criador, nos narrados dias da criação. Criar, fazer, moldar e desenvolver, são capacidades intrínsecas ao caráter realizador de Deus, que habita em nós por sua imagem e semelhança.


“Ao contrário da opinião popular, o judaísmo não se opõe à modernidade, principalmente se ela promove a honra do Eterno... O desafio não está em rejeitar as invenções, mas sim, em como refiná-las; não está em censurar a modernidade, mas sim, em como santificá-la"
     Rabino Shlomo Riskin - em Luzes da Torá; pg. 33

Como nos alerta o Rabino Shlomo Riskin, não há problema intrínseco no avanço do conhecimento humano e em suas conquistas modernas. O problema está em o que é feito delas e/ou a partir delas. Portanto essa é uma questão moral e ética, e não de origem - Isso é coisa do diabo! E o que não faltam são exemplos, que vão desde a invenção do avião e sua utilização bélica, subvertendo seu objetivo primordial, até a descoberta do átomo e o desenvolvimento de armas genocidas. Seria o poder dualista do fruto do bem e do mal?

Arar a terra, torná-la fecunda e produtiva, sempre esteve no propósito criador de Deus. Mesmo antes do pecado, dar funcionalidade ao planeta e utilizar-se dele, foi uma tarefa dada pelo próprio criador. O homem a realizou, participando ativamente do desenvolvimento pretendido, integrando-se no contexto de tudo aquilo que era bom[1]. Não fomos criados para uma existência contemplativa, mas sim realizadora. E é nosso dever, como cristãos e mordomos responsáveis, influenciar decisivamente o comportamento humano, para que nossas conquistas científicas e tecnológicas ganhem utilidades beneficiadoras, e não sejam utilizadas para o mal e o horror.

Que Deus, que nos outorgou mordomia capaz e criativa, nos inspire ao cuidado e ao desenvolvimento sustentável, e a descobertas e usos adequados, para que a incoerência dos abusos, do desequilíbrio e das desigualdades sejam reduzidos. De modo a devolvermos um mundo melhor do que recebemos, Àquele que nos destinou tão espetacular tarefa.

Um forte abraço a todos...



[1] veremos com mais atenção ao falarmos sobre o capítulo 2 de Gênesis

terça-feira, 17 de março de 2015

Há perigos na igreja. E eu com isso?






“Vejo o liberalismo perigoso, assim como o ascetismo. Nossas igrejas estão lotadas de desconhecimento de Deus, ou vazias de conhecimento. Como preferir. Mas temos gente crendo em tudo e qualquer coisa, agarrando-se por conveniência e casuísmo, a tudo que lhe absolva a consciência, e a tudo que pode condenar o outro. Mantras e palavras de ordem tomaram conta dos cultos, assim como o dia a dia convive bem com um dualismo que divide o "dentro da igreja" e o "fora dela". - Eu sei separar as coisas! Ainda se laureiam por isso!!!...
A cabeça é fraca, o coração inquieto... São meninos inconstantes levados por todo vento de doutrina, movimentos, visões e moveres... Crêem em um deus ídolo, que lhes sacia desejos e vive para lhes satisfazer vontades e blindá-los do mundo. Um deus-servo a quem manobram por barganha.
Concordo com você. Há inúmeros perigos nas igrejas. Mas quem os está levando lá para dentro somos nós mesmos; falo como membro do corpo e tão infectado como todos os demais..."
                      JLjr - em um comentário em alguma comunidade da internet

Venho acompanhando com especial interesse diversos textos e manifestações plurais em sua forma e conteúdo, que se esforçam por um fim comum; apontar para uma profunda e perigosa onda de mundanismo invadindo as igrejas de todas as denominações, através de um sutil e disfarçado liberalismo, que segundo os que defendem esse argumento como real, apoderou-se das agendas de eventos e dos púlpitos Brasil afora.

Na contra-mão, e com não menos interesse, percebo também uma resistência que se pauta em um ascetismo renitente e legalista, que se pretende defender as últimas fronteiras do que chamam de puro evangelho, reivindicando o conhecimento e o domínio do que se acredita ser o mais genuíno modelo de cristianismo.

O que se percebe nesse campo em que as pretensões se declaram, é que de um lado e de outro, diversos movimentos pleiteiam pela legitimidade de definir e normatizar em que e de que forma deve-se crer em Deus e qual o modelo ideal de relacionamento Ele estabelece com aqueles que lhe devotam crença.

Nesse processo de pretenso apoderamento de Deus, nem tanto de seus atributos mas principalmente de suas manifestações, enquanto multidões têm sido ensinadas e estimuladas a um frenesi alucinante, com vistas a experimentar Deus de forma empírica ou extra-sensorialmente, outras tantas o desenham um juiz rancoroso e implicante, transbordante de regras e formalidades, onde uma possível relação espontânea com Deus, se perde em meio a rituais e liturgias engessadas, incapazes de conferir ao ser piedoso a compreensão de conforto presente, e da redenção iminente.

Assim o que encontramos hoje pela maioria de nossas igrejas evangélicas, é um emaranhado de ativismo raso, liberal ou radical, que não promove nem o conhecimento de Deus até a estatura de varão perfeito, nem tão pouco uma profunda e relevante comunhão dos santos, através do que o mundo inteiro deveria nos reconhecer.


1 Bem-aventurados aqueles cujos caminhos são íntegros e que vivem de acordo com a Lei do Eterno! 2 Felizes os que guardam suas prescrições e o buscam de todo o coração; 3 e, não se entregando à prática de iniquidades, seguem seus caminhos no SENHOR. 4 Promulgaste teus preceitos, para que sejam observados com diligência.
5 Tomara se firme minha conduta, para que eu observe teus decretos! 6 Então, não terei de me envergonhar, se ficar atento a todos os teus mandamentos."
                      Salmos 119:1-6 - KJA

Quando falo isso, não me eximo de responsabilidade. Não, de forma alguma. Porque ninguém depende de titulo, cargo ou posição na igreja, para fazer a sua parte no Reino. Eu não preciso. Na era da informação e da democratização dos meios de comunicação, aliada que está em nosso país, a uma extremada liberdade de expressão - e que continue sempre assim, todos podemos desempenhar o papel que entendemos ter no mundo. Todos podem desenvolver e operar suas potencialidades e dons, oferecendo-se a Deus em sacrifício vivo, santo e agradável.

Ora, não nos foram dados talentos? Que os utilizemos e frutifiquemos, pois sem dúvida logo nos pedirão contas do que tivemos à mão para realizar. Conscientes que somos de que um é o que semeia, outro o que rega, mas que é Deus que dá o crescimento, somos responsáveis apenas por aquilo que nos foi dado a fazer. Precisamos, portanto, pregar a Palavra. Ensinar a Palavra. A tempo e fora de tempo. O que não falta no mundo, é fome e sede de conhecimento de Deus.

Que o Senhor de todo o entendimento nos capacite a realizar aquilo que nos determinou, para que sua vontade seja cumprida em nós com a alegria. Pois a boca fala do que o coração está cheio.

Terno e forte abraço...
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